Me sinto fora da língua
Me sinto fora do espaço
Desterrada, encontro solo:
Na fenda, na expressão,
De uma diferença
ANA LEAL [2]
Coube-me a tarefa de escrever sobre este evento. Quando se expõe um conhecimento, na forma de ensino, o mais eletrizante é o momento em que somos despertados de uma zona de conforto e nos lançamos no prazer de escutar o outro e o novo.
Alessandra Sapoznik, idealizadora deste encontro, apresentou nossos convidados, Thamy Ayouch [3] e Nelson da Silva Júnior [4], com uma narrativa [5] que já prenunciava o ritmo dos trabalhos que se seguiram.
Tratar do transitar entre diversas línguas e possíveis escutas para os estudos de gênero, fazendo desconstruções, procurando – na teoria psicanalítica, na filosofia e apoiados na clínica – um caminho que não seja de normatização. Partindo de pontos que lhes eram próprios, em muitos momentos os autores se aproximaram em suas digressões.
Thamy, encarregado da primeira parte do evento - um minicurso, e depois integrante da mesa-redonda, apresentou sua extensa pesquisa nos estudos de epistemologia e da relação entre política e psicanálise.
Coloca-se, já desde um texto anterior, a questão de se é possível - como psicanalistas inseridos na historicidade de nossa clínica - falarmos de um sexual-infantil absolutamente separado das formas sexuais da prática da sexualidade [6].
Aqui ele sustenta sua hipótese de que, mais além da lógica da identidade, uma identificação na psicanálise adviria de uma fundamentação sustentada a partir de sua exterioridade. Para isso, dá o exemplo de Moisés, egípcio, estrangeiro ao povo que o escolheu como chefe. Uma judeidade que acolhe o não judeu. Não é uma identificação pessoal ou nacional, é uma identificação pela alteridade. É uma alteridade que vem destituir e criar uma relacionalidade.
Essa hipótese pode ser estendida à psicanálise. A psicanálise não pode ser um modelo hermético. Não há psicanálise sem hibridação. Ela é necessária para sair de um modelo de constituição paranoico autorreferente. Qualquer produção de saber vem de outro saber deslocado. Avanço positivo, questão epistemológica e ética, produção de saber inventado de um não saber, processos vivenciados no primário, desconstrução.
O que seria esse saber inconsciente que unifica as correntes da psicanálise? Ele visa não o enunciado, mas a enunciação. A significância não reside nos conteúdos, mas na origem e no endereçamento. Quem fala, a partir de onde fala e para quem fala?
Esse saber do inconsciente na enunciação é objeto da psicanálise. Questão que a psicanálise faz a si mesma.
Thamy cita Jaques Derrida[7] para abordar a resistência à psicanálise e da psicanálise, ela mesma e seus exteriores. A inteligibilidade proposta não é médica, diagnóstica, e pretende deixar espaço para o analisando/a reescrever sua própria história.
Como dar alteridade ao outro? Questão do Universal, que importa na clínica e na teoria também, e que pode ser pensada a partir dos estudos queer, decoloniais e pós coloniais. Uma forma de saber não etnocentrada, eurocentrada. Colonização não é só uma questão política, militar, geográfica, econômica; trata-se de uma epistemologia que rompe com o imperialismo cultural como modelo único de pensar.
Judith Butler[8] chama de vidas inteligíveis essas vozes dissonantes. Novos militantes, produção de novas identidades latinas, de gênero, de raça. Uma psicanálise menor, modelo no diferente, como se diz da literatura menor de Franz Kafka. Utopia na psicanálise. Historização do universalismo.
A psicanálise só vai se manter psicanálise se puder se hibridar com outros discursos. Hibridez na concepção psíquica, hibridez na psicossexualidade, polimorfa, hemafrodita. Freud desbiologiza a sexualidade. A sexuação também. A pulsão não tem objeto físico. A divisão homem/mulher é desnecessária. Estrangeiridade. Quimera dos inconscientes.
Como a teoria pode ser colocada? Como estrangeiridade, de acordo com Pierre Fédida [9]. O psicanalista tem que virar estrangeiro. Trata-se de quando a angústia vem desfamiliarizar o íntimo. Tradução, elementos estrangeiros; primário e secundário, desejos e proibições. Tradução do inconsciente para o consciente.
Para Laplanche [10], a teoria da sedução generalizada. Sempre fica um resto, o inconsciente da criança. Tradução e sexual. O gênero é plural, o sexo é dual. Quando tentamos traduzir de uma forma dual, sempre fica um resto. A interpretação é um mote estrangeiro em algo familiar.
Outro ponto importante é o poder. Na concepção de Foucault [11], o poder não é só dominador sobre o dominado, mas também agir sobre a ação do outro. Poder é um sistema de resistência. O que está acontecendo conosco quando dizemos que a sexualidade é reprimida é que mascaramos outras formas de poder. Pois há uma proliferação de discursos, controlando e não reprimindo. Desta forma, o poder disciplinar é exercido não pela lei, mas sim pela norma. Foucault vai falar de heterotopia, um contra espaço, proliferação dos discursos, diferenças não aplacadas, mas mostradas. Heterotopia na psicanálise com outras ciências e consigo mesma. O processo de crioulização contra o latim e outras falas oficiais e de autoridade médica. Prolongar a discursividade. A psicanálise permite diferenças. Minoria menor numa língua maior. É a partir da fala dos analisandos que esse poder sábio, do médico, se desconstrói.
Não há separação entre realidade psíquica e social. Destaca-se o singular. Ato de discurso em ação de poder. Agenciamentos coletivos. A ideia de enunciação nunca é singular.
Tentativa reiterada em muitos psicanalistas de ver somente o mundo intrapsíquico, que acaba atuando como uma violência sobre o analisando.
Nós, sujeitos, escrevemos essa maneira reguladora entre nós: são as normas. Essas normas permitem uma gramática de subjetivação, sem elas não podemos nos subjetivar.
As normas ficam sufocantes quando não podemos considerar as contingências. Que os analisandos possam ver que esta é só uma maneira de se colocar (o sintoma). Que a norma apareça como contingente. Plasticidade psíquica.
Exercício de malabarismo: levantar o silenciamento que foi feito e ao mesmo tempo não transformar numa essencialização: sou isto, sou aquilo.
Essas vozes estão produzindo esta nova história, que foi abafada pela história oficial. Ainda em Foucault: o sujeito está se assujeitando e ao mesmo tempo, ele está se constituindo.
Já na mesa-redonda, Thamy Ayouch se referiu à clínica da língua, a partir de sua experiência em centros institucionais na França, recebendo em atendimento imigrantes residentes no país. E se perguntou, sobre estes atendimentos, quais os mecanismos conscientes e inconscientes que se ativam na passagem da língua nativa para a de acolhimento? É a relação interlinguística que, acompanhada do sistema consciente, transforma elementos inconscientes em sintoma. Essa destradução efetuada pelo terapeuta, comparada à tradução, é a interpretação em psicanálise.
O exílio da língua pode ser traumático. Isso acontece com a criança que fala. Todos somos exilados da língua. A combinação das palavras pode ser encobridora. A língua pode velar e revelar as coisas. A intrusão de uma outra língua (contato alucinatório) pode ser arbitrária. O inconsciente de uma língua estrangeira, ao viver em contato com o outro, pode reviver essa estrangeiridade. Mas na clínica encontra revitalização da língua nativa pela língua que acolhe.
Sobre a impossibilidade de monolinguismo, convida-nos a pensar que, quando uma língua se expressa, as outras estão em sofrimento; mas uma nova língua pode desmontar os significantes – ainda que ela também possa enevoar, possa colocar o analista numa posição imaginária, onipotente.
O significante em psicanálise não é só linguística, também é efeitos do corpo, das leis, das relações de poder. Uma língua nunca é neutra. Retornando ao que foi dito sobre a hibridez: a posição cultural de onde escutamos individual e coletivamente revela a posição política da língua. Mesmo coletivamente ela é subjetiva. Na perspectiva de Derrida, trata-se de ter uma língua e não ter esta mesma língua: não falamos senão uma língua que vem do outro, portanto não falamos nunca só uma língua.
Como a psicanálise, que se posiciona avessa à razão cartesiana, faz perpetuar alguns princípios? Como descolonizar alguns saberes? Será que a psicanálise pode se perguntar sobre a enunciação sem se perguntar sobre as condições pós culturais onde se dá a enunciação? Que fala é possível na análise? Como o subalterno psíquico pode falar? A resposta a tais inquietações nos remete à noção de dupla crítica: o que foi silenciado na sessão foi silenciado na cultura.
Uma desidentificação da psicanálise consigo mesma implicaria na possibilidade de reconhecer-se, mas sem se essencializar.
Será que a insistência na neutralidade do analista e no universalismo do inconsciente são suficientes para o reconhecimento das diferenças?
Thamy termina sua fala com seu romance pessoal: menino marroquino, classe média, escolarizado na França. Eu respondia em francês quando me falavam em árabe. E a minha língua pátria era o árabe, quando meu pai ficava bravo. Chegando com dezoito anos a Paris para dar continuidade aos estudos, diferente da literatura que havia pensado e produzido. Afastado do francês, fala do menino que aos catorze anos se recusou a falar árabe no Marrocos porque os marroquinos eram grossos. O árabe era língua estrangeira, ensinada por professores marroquinos no Liceu francês. Passando por branquinho, enquanto não perguntavam seu nome. Recusando a trabalhar sobre temas árabes e hebraicos. Morou em cinco países. Tentou encontrar um árabe literal que buscou nos ancestrais do Oriente. Separado nas aduanas. Vivendo num grupo de origem que é derrubado pelo próprio grupo. Exílio da língua. Francês num país marroquino e marroquino na França. Judeu para os árabes e árabe para os judeus, gay para os heteros e hetero para os homossexuais, filósofo para os psicanalistas e psicanalista para os filósofos. Dupla crítica, racionalizo meu romance familiar.
A mesa-redonda trouxe ainda Nelson da Silva Júnior para falar do tema: Gênero e língua materna. Alienação identitária, sexualidade e contingência. Nelson iniciou falando sobre o posicionamento político da psicanálise e a necessidade de reflexão sobre a economia de base de nossos conceitos, por exemplo, a fim de efetuamos uma reflexão crítica sobre concepções tais como as da função identitária, que pode operar como fator de negação do outro. Seu texto teria a função de desconstruir esses conceitos que rondam a questão da língua materna. A desconstrução da ontologia do sujeito é um tema sobre o qual vem trabalhando há muito tempo, desde sua tese sobre Fernando Pessoa como grande modelo de desconstrução da subjetividade.
Por que tomarmos a identidade como algo tão cego? O que nos permitirá nos afastarmos disso: a noção de gênero. Tomar o gênero como uma possibilidade tem nos servido para nos aproximar de uma fonte de pesquisa mais séria sobre as construções e desconstruções de identidade.
Judith Butler – para quem as identidades de gênero seriam apenas um dos efeitos ontológicos do discurso – cria uma nova estratégia nos debates sobre as questões de identidade, fundada na noção de performatividade, apontando que é na linguagem que esse efeito totalizante de significação pode se dissolver.
O recurso genético, biológico, apela para o histórico, para legitimar as identidades imutáveis. Recuperação que remontaria aos gregos – o orgulho da língua - e aos alemães na constituição do caráter nacional como uma visão de mundo. Língua materna como garantia de identidade individual e nacional. Nostalgia romântica, antes da separação entre significante e significado. Desconstruir o sintagma da língua e seus efeitos alienantes. Seria pela linguagem que a nossa crença poderia se dissolver.
Nelson remete à concepção de Derrida, em obra já citada neste debate, como suporte para fazer objeção à visão de Hanna Arendt de que a língua materna é insubstituível. Em uma entrevista de 1964, a filósofa chegou a afirmar: eu sempre me perguntava o que fazer durante a guerra, não é possível que a língua alemã tenha se tornado louca. Nada pode substituir a língua materna.
Derrida diz que a intenção de talvez encontrar isso, a fusão com a mãe, se encontra na origem de uma etimologia nostálgica, romântica, à procura de uma identidade primeira. Antes da separação de significante e significado, o sujeito se nutre de uma imersão no materno como insubstituível, tesouro onde se localizaria sua primeira verdade. Para o filósofo, nunca somos capazes de dominar nossa própria língua também porque ela não é nunca a única que temos de dominar. Para ele a verdadeira loucura seria considerar a língua materna, ou a mãe, como radicalmente insubstituível. A relação com a mãe é sempre única e portanto sempre lugar de loucura. Nada é mais louco do que a unicidade do um ou do uma.
Essa ideia de desconstrução da língua materna pode ser colocada em confronto com a teoria de Lacan, da entrada do sujeito na linguagem e de seus conceitos de alienação e separação. E com as tábuas da sexuação, de onde vem o seu princípio de que não há relação sexual. Em que medida o sexo é determinante para o nosso ser? Esse caminho nos leva à questão de uma complementaridade ilusória – tanto na linguagem como na relação sexual. Para Derrida, a língua tem uma relação incontornável com esta questão.
Tudo isso abre questões diversas para a sexualidade, mais além da polaridade homem/mulher. Por exemplo: para ser mãe, seria necessário ser uma mulher? Essa discussão não é especulativa. Hoje ela é uma questão clínica. São testemunhas disso muitos sujeitos transexuais que, após as intervenções médicas próprias às suas identificações masculinas, desejam ainda engravidar, parir e amamentar. Isso sem aderir, no entanto, a uma posição de identidade feminina. Podemos já pensar numa maternidade masculina em psicanálise? Talvez.
Para Derrida a maternidade coloca outras questões. Em que medida o gênero da mãe é determinante para o advento de sermos sujeitos falantes? A via de retorno que Lacan chamou de separação. Um intervalo. O sujeito está na dobra do significante, de natureza e essência alienante. É entre dois significantes que se aloja o desejo do sujeito no discurso do outro – da mãe, no caso. Na mãe, enquanto o desejo do outro está para além ou para aquém do que ela diz, do que ela intima, enquanto aquilo do que ela faz margem, enquanto sentido, impondo seu desejo. É nesse encontro de falta que se impõe o desejo do sujeito. A relação entre a dupla primitiva dos significantes é a causa da alienação.
Essa articulação tem um ponto fraco. A dupla primitiva não é indissolúvel. O sentido não está sempre garantido; ele tem, em seu interior, uma distância, uma diferença, entre o que ele diz e o que ele deseja, entre o enunciado e a enunciação.
Esse primeiro outro é a mãe, mas não necessariamente. A manutenção da mãe neste lugar permanece estruturalmente aberta.
Há outra série de enunciados que se encontram no hiato das línguas. Isso se dá pelo caráter intraduzível, sempre que tentamos traduzir uma língua na outra. A tradução de uma palavra na outra pode ter o mesmo sentido, mas não o mesmo valor. Esse valor depende da relação de cada palavra, na sua relação com as outras que são suscetíveis de substituí-las. Estranhamento que tenta ser substituído, suposto por uma língua mãe, que possa abarcar todas elas.
O monstro de Frankenstein – condenado a ter várias línguas, sem acordo entre elas, sem reconciliação sobre o sentido último do mundo – é condenado a uma tripla ausência: da mãe como mulher; ausência de um primeiro outro e ausência de sentido. Ao mesmo tempo, a presença deste monstro desfaz a necessidade de uma língua materna, da mãe e do sentido.
Na ausência de uma falta radical perante o desejo do outro, seria sempre possível ao pequeno outro se achar seu objeto complementar. Ser sexuado, condenado a uma incompletude no campo da significação. Ficamos diante de um duplo velamento, no horizonte da língua e da sexualidade da mãe.
Uma língua nada mais é do que a integração dos equívocos que sua história deixou nela permanecer (Lacan): eis uma alternativa potente à compreensão idealizada de uma língua, que implica em assumir a perda radical do sentido. Perda através da qual o sentido se desloca para um efeito de integração.
Como em A língua, de Caetano Veloso [12], fomos assim convidados à abertura a outras possibilidades de interpretação:
Gosto de sentir a minha língua roçar/ a língua de Luís de Camões/Gosto de ser e de estar/ e quero me dedicar a criar confusões de prosódias/ e uma profusão de paródias/ Que encurtem dores/ E furtem cores como camaleões/
Gosto do Pessoa na pessoa/Da rosa no Rosa/ E sei que a poesia está para a prosa/ Assim como o amor está para a amizade/ E quem há de negar que esta lhe é superior? (...)
A língua é minha pátria / E eu não tenho pátria; tenho mátria /E quero frátria /Poesia Concreta e prosa caótica /Ótica futura (...)
ABERTURA DA MESA-REDONDA CLÍNICA PSICANALÍTICA DA LÍNGUA:
O OUTRO, O ESTRANGEIRO E O UNIVERSAL
ALESSANDRA SAPOZNIK [13]
Boa noite,
Sou Alessandra Sapoznik e em nome do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae gostaria de dar as boas-vindas a todas e a todos que estão aqui para essa mesa-redonda.
Gostaria de começar contando que a princípio essa atividade estava pensada para ser uma conferência sobre a Clínica Psicanalítica da Língua, mas no meio do caminho o que era para ser uma fala única virou um diálogo, um diálogo sobre várias questões em torno do tema da língua materna, e creio que todos sairemos ganhando com isso.
Ao escrever essa pequena fala de abertura me dei conta de como o tema da língua circula nesse Departamento desde a sua origem. Um Departamento fundado por argentinos e brasileiros, por brasileiros filhos de imigrantes, todos atravessados pelo tema do estrangeiro não apenas pelo fato de que somos psicanalistas, mas também porque a experiência do exílio deixou marcas em muitos de seus membros. E também sabemos que o Departamento fala no mínimo duas línguas: o português e o portunhol.
O termo língua materna por si mesmo já suscita muitas questões: por que a língua de origem é sempre definida a partir do significante materno? Quais consequências subjetivas isso acarreta? Será possível que um segundo idioma se torne tão importante quanto a língua materna? Por que, quando vivemos em outro país e falamos a língua do país de acolhida, temos a impressão de que não são apenas as inflexões e o nosso tom de voz que se modificam, mas também algo da nossa forma de estar no mundo, de nossa subjetividade também muda?
Gostaria de trazer a referência de alguns pensadores e escritores que nos remetem à complexidade do tema:
Elias Canetti, apesar de sua origem búlgara, escrevia apenas em alemão. Curiosamente, havia uma espécie de hierarquia entre as línguas: o búlgaro era utilizado para falar com os empregados, o ladino – e mais tarde, o inglês – era o idioma que os pais utilizavam para falar com os filhos. Porém o alemão era utilizado pelos pais para falarem entre si, uma espécie de língua do amor que se constituía como uma espécie de território privado ao qual os filhos não tinham acesso. Portanto dominar o alemão era adentrar esse território parental, e de alguma maneira, torná-lo próprio. No artigo publicado em 01/06/2011, no jornal português Público, encontramos uma hipótese interessante sobre o uso que Canetti fazia dessa língua secreta: (...) Ele fez do alemão o seu território particular, uma espécie de espaço próprio, a sua "Heimatland", a sua pátria (parecendo evocar Pessoa) [14].
Por outro lado, me lembro do poeta Paul Celan, um romeno de raízes judaicas que, após perder quase toda sua família em campos de extermínio nazistas e dedicar grande parte de sua obra à tragédia da Shoah, escreveu toda sua obra em alemão – que, segundo ele, era a língua dos carrascos.
Deleuze e Guattari, ao dedicarem um livro brilhante ao estudo da obra de Kafka, consideram que a literatura produzida por Kafka é uma literatura menor. Menor não tem a ver com menos importante e sim com o fato de que todo escritor deveria buscar o estrangeiro da língua e que, portanto, para se fazer uma grande literatura é necessário sair do registro da literatura maior, da língua dominante, para escrever como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um uzbeque escreve em russo [15].
Interrompo aqui para apresentar os convidados que compõem essa mesa-redonda.
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[1] Evento realizado em 24/11/2015, no Auditório do Instituto Sedes Sapientiae, organizado pelo Departamento de Psicanálise. O evento constou de um minicurso e uma mesa-redonda.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3]Thamy Ayouch Psicanalista, Psicólogo clínico, maître de conférences (Professor Doutor) em Psicopatologia Clínica na Universidade de Lille 3. Professor estrangeiro visitante na USP.
[4] Nelson da Silva Júnior. Psicanalista, Doutor pela Universidade Paris VII, professor livre docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, Professor no Curso de Psicanálise e membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[5] Leia a seguir.
[6] AYOUCH, Thamy & BULAMAH, Lucas Charaffedine. “A homossexualidade dos analistas: história, política e metapsicologia”. In: Revista Percurso 51. São Paulo: 2013.
[7] DERRIDA, Jacques. O monolínguismo do outro ou a prótese de origem. Colecção Campo da Filosofia, 8. Braga: Campo das Letras, 2001.
[8] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminino e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[9] FÉDIDA, Pierre. O sítio do estrangeiro: a situação psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1996.
[10] LAPLANCHE, Jean. Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[11] FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité, Tome I , La volonté de savoir, Paris: Gallimard, 1976.
[12] Caetano Veloso gravou A língua em 1984, no LP Velô. Convidou, para interpretar parte da música, a cantora negra Elza Soares, rechaçada pela sociedade por manter um romance com o craque da Seleção Brasileira, Garrincha, que era casado.
[13] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, articuladora de Eventos no Conselho de Direção do Departamento de Psicanálise.
[14] Jornal Público, 01/06/2011:
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-lingua-como-patria-de-elias-canetti-286256?page=2
[15] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é uma literatura menor? In Kafka, por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 39.