GISELE SENNE DE MORAES[1]
NATALIA GOLA[2]
CHRISTIANA FREIRE[3]
No sábado 19 de agosto realizamos, em nosso Departamento, o evento Psicanálise Contemporânea: A Geração Pós-Lacan e a Clínica do Negativo, com o psicanalista argentino Fernando Urribarri em debate com Renato Mezan, na primeira parte, e com Décio Gurfinkel, na segunda.
A renovação pós-lacaniana: novos fundamentos para os desafios da prática psicanalítica atual foi o tema da primeira mesa do evento. Fernando Urribarri começou sua apresentação observando que nós, latinoamericanos, temos possibilidade de valorizar matrizes psicanalíticas freudianas, pluralistas e em extensão a partir do movimento psicanalítico coletivo ocorrido na França ao longo da segunda metade do século passado, possibilidade que não é tão simples aos psicanalistas franceses hoje. A proposta de Lacan de um retorno a Freud, o fundador do campo, ecoou pela psicanálise francesa restabelecendo-o também como seu fundamento. Para Fernando Urribarri, um verdadeiro coletivo de psicanalistas criativos que debatiam em torno de ideias, ora em discordante contribuição, ora em cooperação, possibilitou o entorno necessário ao surgimento de inúmeros pensadores originais na psicanálise francesa, como André Green, Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, Piera Aulagnier, Joyce McDougall, entre muitos outros. Autores que se preocuparam tanto em retornar ao texto freudiano com suas contradições, como em retornar aos pós-freudianos e em debater com psicanalistas de sua geração para pensar a clínica, a verdade última da psicanálise, ajudando a construir uma epistemologia complexa a partir de um vocabulário freudiano comum. Fundamentos que contribuíram para a construção de uma matriz para a psicanálise contemporânea, conforme proposto por André Green. Renato Mezan seguiu a mesma linha de pensamento, revelando o papel de Conrad Stein para a construção do conceito de narcisismo primário, ideia central ao pensamento da psicanálise contemporânea. A partir do livro Rester Freudian Avec Lacan, de Danièle Brun, viúva de Conrad Stein (Paris: Odile Jacob, 2016), Mezan contou um episódio muito interessante da história da psicanálise francesa envolvendo Lacan e o próprio Stein, a partir do qual este último escreveu um texto não publicado em vida e recentemente encontrado por Danièle Brun. Evento que possivelmente influenciou também “O narcisismo primário: estrutura ou estado?”, escrito por André Green apenas um mês após o incidente. O texto de André Green está publicado no livro Narcisismo de Vida, Narcisismo de Morte.
Na segunda parte do evento, na mesa A Clínica Contemporânea do Negativo: Paixões de Vida e de Morte, Fernando Urribarri falou sobre a construção de um pensamento sobre a clínica contemporânea a partir de reflexões de Green e Pontalis sobre os limites da analisabilidade, questão proposta já nos anos sessenta na França e que se tornou um objeto de pesquisa. O tema levou os autores a pensar em um terceiro na relação analítica, saindo do par transferência-contratransferência, ou analista-analisando para pensar o enquadre analítico como terceiro. A clínica contemporânea também coloca em relevo o tema da pulsão de morte, trabalhado por Green como desligamento (em conjunto com o movimento de ligação, ambos necessários à vida) e que pode tornar-se patologia em determinadas circunstâncias. Em “A Mãe Morta”, André Green introduziu os conceitos da série branca (luto, angústia, psicose...), situações em que o desligamento radical da pulsão de morte produz estados de vazio. Décio Gurfinkel, seguindo o pensamento de André Green sobre a série branca, apresentou sua proposição de um sono branco. Questionando se sempre sonhamos ou se é possível haver sono sem sonhos, Décio respondeu afirmativamente e, apoiando-se em Pierre Marty, falou em situações nas quais comumente aparecem patologias psicossomáticas. O sono branco seria quando o paciente não sonha, quando não possui ou deixa de possuir capacidades de simbolizar. Com a impossibilidade do trabalho de simbolização há também a impossibilidade da construção do terceiro objeto analítico – já que este é resultado da criação e produção do par analítico. Impera o vazio, o esvaziamento do sentido, o colapso do sonhar. Em contrapartida ao sono branco, Décio sugeriu o termo sono pleno, quando o paciente sonha e é capaz de produzir simbolizações.
Foi um sábado de intensas trocas entre os conferencistas e entre o público presente que lotou o auditório. Pensar uma psicanálise questionadora e inquieta, pulsante e viva, aberta a intercâmbios de ideias e saberes parece fazer parte do pensamento não só da terceira geração, mas desta da qual fazemos parte.
________________________________
[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de leitura Contos de Green.
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Articuladora da Área de Cursos no Conselho de Direção, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, integrante do grupo Espaço de Trabalho.
[3] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; Articuladora da Área de Eventos no Conselho de Direção, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.