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NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO
QUESTÕES SOCIAIS E POLÍTICAS NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: ONTEM E HOJE III – CLÍNICAS REPUBLICANAS E DEMOCRÁTICAS, CLÍNICAS PÚBLICAS E ABERTAS
Nos dias 26 e 27 de outubro realizou-se no Instituto Sedes Sapientiae a terceira etapa do evento Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje, que veio sendo promovido pelo Departamento de Psicanálise ao longo deste 2018. Nesta edição do Boletim Online, publicamos a abertura da primeira mesa, por Tiche Costa Carvalho, o comentário poético de Bela Sister em torno do documentário Eu + 1: uma jornada de Saúde Mental na Amazônia, dirigido por Eliane Brum, e um dos trabalhos de cada uma das mesas subsequentes ABERTURA DA MESA-REDONDA EM TORNO DO FILME EU + 1 E DO TRABALHO CLÍNICO REALIZADO EM ALTAMIRA MARIA BEATRIZ COSTA CARVALHO VANNUCHI [i] 7 integrantes da Clínica do Cuidado, Renata, Tiche, Ilana e Christian. Foto de Noemi Moritz Kon.
Boa noite a todas e a todos. É muito bom estarmos aqui para ouvir e debater a apresentação de Christian Dunker[i] e Ilana Katz[ii] e equipe sobre a Clínica do Cuidado, importante iniciativa de trabalho de escuta daqueles que estão tão distantes do acesso aos consultórios e mesmo aos serviços de Saúde Mental. A proposta de aprofundar nossas discussões sobre as diversas experiências psicanalíticas de clínica ampliada faz parte da sequência de encontros sobre as Questões Sociais e Políticas na História da Psicanálise. Pensar as clínicas públicas, as clínicas abertas, as clínicas do cuidado, e mesmo as clínicas do testemunho ou a clínica com refugiados, que espero caibam num outro momento desta série de debates, constitui um dos desafios da Psicanálise hoje no Brasil. Desafio não só pela extensão do seu campo de atuação, mas também pela contribuição que a clínica psicanalítica pode dar num momento tão delicado. O risco de hegemonia de um discurso totalitário com a figura do “inimigo interno” e a adesão de uma grande parte da população a uma política de “faxina” social se apresenta como um fenômeno de massa opressivo, donde as singularidades são desconsideradas e a imposição da uniformidade destina aos “discordantes” a condição de absoluta vulnerabilidade. Em nossos consultórios, nos grupos, nas instituições temos visto e escutado o incremento do ódio, do medo, da desconfiança e da solidão assemelhados a um cenário de guerra. Recentemente alguns de nós, psicanalistas, dentre os quais eu me incluo, tivemos a experiência das Clínicas do Testemunho, programa de reparação psíquica através da escuta a pessoas atingidas pelo terror de Estado na ditadura civil militar entre 1964 e 1985. Neste trabalho, testemunhamos os efeitos de devastação que o terror de Estado pode causar não só em suas vítimas diretas e suas famílias, mas em todo o tecido social. Temos uma longa história de violência que vem dos tempos da escravidão, história que nunca foi, de fato, enfrentada. A última ditadura, violentíssima, com a disseminação da prática da tortura, teve essa realidade sistematicamente desmentida como verdade histórica, chegando a ser ironicamente tratada como uma “dita-branda”, por alguns jornalistas. Apesar dos esforços e trabalhos das Comissões da Verdade para recuperar e registrar esses fatos, ninguém e nenhuma instituição teve que responder por isso e os torturadores permaneceram anistiados. Recusa e denegação de uma sociedade que agora se defronta com o retorno da invasão da crueza da língua do torturador no cenário social. Invasão que se preanunciou, desde a sessão de impeachment da presidenta, através de um voto pela sua destituição acompanhado da homenagem ao chefe do centro de tortura no qual esta mesma presidenta havia sido detida e brutalmente torturada em sua juventude. E isso se passou como se nada fosse. Estamos agora assustados e angustiados diante da multiplicação de cenas de constrangimento, espancamentos, ameaças de morte, aos ativistas vermelhos, homossexuais, negros, indígenas, às mulheres, aos transexuais, aos emigrantes. Muitos de nós que estamos aqui nos sentimos convocados, como psicanalistas, a um posicionamento ético político. Nosso instrumento é a escuta e apostamos na construção dos espaços de circulação da fala, como importantes dispositivos na lida com o sofrimento psíquico e na resistência à fetichização e perversão dos laços sociais de um discurso de uniformização massacrante. Nesse sentido, saudamos a abertura e a sustentação de todos esses espaços de prática e pesquisa clínica, distintos e singulares e também a uma recente iniciativa aqui em nosso Instituto - as Rodas de Conversa Escuta Sedes -, como lugares de fertilização de uma rede de clínicas psicanalíticas democráticas. Temos muito trabalho pela frente! RIBEIRINHOS SEM RIO BELA M. SISTER [iii] Um mais dois mais três mais 10 Foram 16 a escutar os refugiados de Belo Monte Pará ribeirinhos sem rio desalojados deslocados apartados a escutar e tratar laços desatados despedida partida casas caídas barro cortado sofrido Um mais dois mais três mais 10 numa rede a enredar escutar destravar a palavra doída de uns alguns eus nunca dantes um desassistidos da barragem invadidos desencontrados morada barco casa lar não mais rio peixe pedra planta plantar pescar banhar ali lá não mais Concreto cimento desordem desiludida peleja adoecida casa com grade um a um medo insônia melancolia solidão traição tristeza cansaço morte sacrifício esquecimento desimpaciência mundo outro Um mais um filmou e registrou palavras dos que escutaram amparados na rede rastros de vida enredando contar um mais dois mais três mais 10 a fazer lembrar abrir porta onde não há desconjuntar remontar resgatar rejuntar palavras e escuta feito mundo Abandono abandonado silêncio silenciado árvore pássaro floresta bicho vento parado calado pescador sem rio barrado destruído Nas palavras do um mais dois mais três mais 10 os eus de muitos não vistos numa ética da imagem falada não vista como em Shoah no silenciamento da imagem da dor se vê o que se ouve na quase ausência de rostos e corpos de vozes e nomes chinelos boneca garrafas lodo restos dejetos escombros vidas destroçadas olhos inchados coração que range Do impronunciável do sofrimento da tragédia indizível o que se vê é o que se ouve imagem da dor na palavra do um mais dois mais três mais 10 corta recorta costura toca Insignificância que faz sentido nos escutantes escutados no silêncio resguardado precavido sonhado uma vida risca a outra Catástrofe imagem não há quase vazio Impacto pensante que põe um mais dois mais três mais... a doer sentir imaginar na distância para a palavra brotar o pensar Um mais dois mais três mais eu ... Quem vai pagar? [i] Psicanalista, Analista Membro de Escola Fórum do Campo Lacaniano, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP. [ii] Psicanalista, pesquisadora de pós doutorado no Instituto de Psicologia da USP. [iii] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, co-autora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Ed. Escuta).
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