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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

QUESTÕES SOCIAIS E POLÍTICAS NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: ONTEM E HOJE III – CLÍNICAS REPUBLICANAS E DEMOCRÁTICAS, CLÍNICAS PÚBLICAS E ABERTAS


Nos dias 26 e 27 de outubro realizou-se no Instituto Sedes Sapientiae a terceira etapa do evento Questões sociais e políticas na história da psicanálise: ontem e hoje, que veio sendo promovido pelo Departamento de Psicanálise ao longo deste 2018. Nesta edição do Boletim Online, publicamos a abertura da primeira mesa, por Tiche Costa Carvalho, o comentário poético de Bela Sister em torno do documentário Eu + 1: uma jornada de Saúde Mental na Amazônia, dirigido por Eliane Brum, e um dos trabalhos de cada uma das mesas subsequentes

ABERTURA DA MESA-REDONDA EM TORNO DO FILME EU + 1 E DO TRABALHO CLÍNICO REALIZADO EM ALTAMIRA


MARIA BEATRIZ COSTA CARVALHO VANNUCHI [i]


7 integrantes da Clínica do Cuidado, Renata, Tiche, Ilana e Christian. Foto de Noemi Moritz Kon.




Boa noite a todas e a todos.

É muito bom estarmos aqui para ouvir e debater a apresentação de Christian Dunker[i] e Ilana Katz[ii] e equipe sobre a Clínica do Cuidado, importante iniciativa de trabalho de escuta daqueles que estão tão distantes do acesso aos consultórios e mesmo aos serviços de Saúde Mental.

A proposta de aprofundar nossas discussões sobre as diversas experiências psicanalíticas de clínica ampliada faz parte da sequência de encontros sobre as Questões Sociais e Políticas na História da Psicanálise. Pensar as clínicas públicas, as clínicas abertas, as clínicas do cuidado, e mesmo as clínicas do testemunho ou a clínica com refugiados, que espero caibam num outro momento desta série de debates, constitui um dos desafios da Psicanálise hoje no Brasil. Desafio não só pela extensão do seu campo de atuação, mas também pela contribuição que a clínica psicanalítica pode dar num momento tão delicado.

O risco de hegemonia de um discurso totalitário com a figura do “inimigo interno” e a adesão de uma grande parte da população a uma política de “faxina” social se apresenta como um fenômeno de massa opressivo, donde as singularidades são desconsideradas e a imposição da uniformidade destina aos “discordantes” a condição de absoluta vulnerabilidade.

Em nossos consultórios, nos grupos, nas instituições temos visto e escutado o incremento do ódio, do medo, da desconfiança e da solidão assemelhados a um cenário de guerra.

Recentemente alguns de nós, psicanalistas, dentre os quais eu me incluo, tivemos a experiência das Clínicas do Testemunho, programa de reparação psíquica através da escuta a pessoas atingidas pelo terror de Estado na ditadura civil militar entre 1964 e 1985. Neste trabalho, testemunhamos os efeitos de devastação que o terror de Estado pode causar não só em suas vítimas diretas e suas famílias, mas em todo o tecido social.

Temos uma longa história de violência que vem dos tempos da escravidão, história que nunca foi, de fato, enfrentada.

A última ditadura, violentíssima, com a disseminação da prática da tortura, teve essa realidade sistematicamente desmentida como verdade histórica, chegando a ser ironicamente tratada como uma “dita-branda”, por alguns jornalistas. Apesar dos esforços e trabalhos das Comissões da Verdade para recuperar e registrar esses fatos, ninguém e nenhuma instituição teve que responder por isso e os torturadores permaneceram anistiados. Recusa e denegação de uma sociedade que agora se defronta com o retorno da invasão da crueza da língua do torturador no cenário social. Invasão que se preanunciou, desde a sessão de impeachment da presidenta, através de um voto pela sua destituição acompanhado da homenagem ao chefe do centro de tortura no qual esta mesma presidenta havia sido detida e brutalmente torturada em sua juventude. E isso se passou como se nada fosse.

Estamos agora assustados e angustiados diante da multiplicação de cenas de constrangimento, espancamentos, ameaças de morte, aos ativistas vermelhos, homossexuais, negros, indígenas, às mulheres, aos transexuais, aos emigrantes.

Muitos de nós que estamos aqui nos sentimos convocados, como psicanalistas, a um posicionamento ético político.

Nosso instrumento é a escuta e apostamos na construção dos espaços de circulação da fala, como importantes dispositivos na lida com o sofrimento psíquico e na resistência à fetichização e perversão dos laços sociais de um discurso de uniformização massacrante.

Nesse sentido, saudamos a abertura e a sustentação de todos esses espaços de prática e pesquisa clínica, distintos e singulares e também a uma recente iniciativa aqui em nosso Instituto - as Rodas de Conversa Escuta Sedes -, como lugares de fertilização de uma rede de clínicas psicanalíticas democráticas.

Temos muito trabalho pela frente!

RIBEIRINHOS SEM RIO



 

BELA M. SISTER [iii]

Um mais dois mais três mais 10
Foram 16 a escutar os refugiados de Belo Monte Pará
ribeirinhos sem rio
desalojados deslocados apartados
a escutar e tratar
laços desatados
despedida partida
casas caídas
barro cortado sofrido
Um mais dois mais três mais 10 numa rede a enredar
escutar
destravar a palavra
doída
de uns alguns eus nunca dantes um
desassistidos da barragem
invadidos
desencontrados
morada barco casa lar
não mais
rio peixe pedra planta
plantar pescar banhar
ali lá não mais
Concreto cimento
desordem desiludida
peleja adoecida
casa com grade
um a um
medo
insônia melancolia
solidão traição tristeza
cansaço morte sacrifício
esquecimento
desimpaciência
mundo outro
Um mais um filmou e registrou
palavras dos que escutaram amparados na rede
rastros de vida enredando contar
um mais dois mais três mais 10 a fazer lembrar
abrir porta onde não há
desconjuntar remontar
resgatar rejuntar
palavras e escuta
feito mundo
Abandono abandonado silêncio silenciado
árvore pássaro floresta bicho vento parado calado
pescador sem rio
barrado
destruído
Nas palavras do um mais dois mais três mais 10 os eus de muitos não vistos
numa ética da imagem falada não vista como em Shoah
no silenciamento da imagem da dor
se vê o que se ouve
na quase ausência de rostos e corpos de vozes e nomes
chinelos boneca garrafas lodo
restos dejetos escombros
vidas destroçadas olhos inchados
coração que range
Do impronunciável do sofrimento
da tragédia indizível
o que se vê é o que se ouve
imagem da dor na palavra do um mais dois mais três mais 10
corta recorta costura toca
Insignificância que faz sentido
nos escutantes escutados no silêncio resguardado
precavido
sonhado
uma vida risca a outra
Catástrofe imagem não há
quase
vazio
Impacto pensante que põe um mais dois mais três mais...
a doer sentir imaginar
na distância
para a palavra brotar o pensar
Um mais dois mais três mais eu ...
Quem vai pagar?



[i] Psicanalista, Analista Membro de Escola Fórum do Campo Lacaniano, Professor Titular do Instituto de Psicologia da USP.

[ii] Psicanalista, pesquisadora de pós doutorado no Instituto de Psicologia da USP.

[iii] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, co-autora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Ed. Escuta).




 
 
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