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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    53 Abril 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

FALA DO DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE NO LANÇAMENTO DO LIVRO OFÍCIO DO PSICANALISTA 2



ANA MARIA SIGAL [1]



Queridos amigos e colegas, é uma alegria estar neste evento de lançamento do segundo livro do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras e maior a satisfação de realizarmos este evento conjuntamente, dois dos departamentos que se ocupam da formação em Psicanálise dentro do Sedes. Entendemos que o diálogo e a troca de ideias podem beneficiar as produções conjuntas, sem perder as marcas que constituem cada grupo, com suas especificidades. Tentamos assim reproduzir o espírito do Movimento Articulação.

Também é um momento de mobilização e luta. Depois de 19 anos de trabalho ininterrupto, momento no qual se apresentou pela primeira vez um projeto de lei para regulamentar a psicanálise, este é o momento mais perigoso que temos vivido na história do movimento. Não é por acaso, o que acontece tem a ver também com o movimento político que está regendo a política geral.

Por este motivo, este evento ganha duplo sentido. Esclarecer e discutir com o coletivo as razões dos perigos que assolam a psicanálise com sua regulamentação - o que, por sua vez, se transforma em um momento de resistência e luta.

A publicação do segundo livro da Movimento Articulação apresenta um apurado trabalho do que pensam as diferentes instituições de formação, deixa impressa a história e nos permite ter elementos mais diferenciados para encampar esta resistência.

As decisões transitam na calada da noite e, apesar de nossa intensa vigilância, persiste o iminente perigo de que se aprove a regulamentação.

Hoje em dia as vozes são menos escutadas e as bancadas têm uma representação de senadores que vão atrás de aprovar projetos que lhes proporcionem mais votos para a reeleição. De toda forma, quero ressaltar como nossa experiência neste trabalho foi generosa ao nos ensinar uma nova forma de trabalhar, na qual, mantendo cada escola ou instituição sua marca preponderante, conseguimos, durante estes anos todos, levar em frente uma luta comum, sem apagar as diferenças e valorizando a diversidade.

Nós, dos dois Departamentos que enviaram sua representação, concordávamos com frequência na direção política que dava conta da forma como entendíamos a psicanálise. O Departamento de Psicanálise e o Departamento de Formação em Psicanálise há 19 anos mantêm sua presença ininterrupta neste Movimento. Posso dizer que foi um processo muito importante estarmos juntos e, mantendo nossas diferenças, ter feito sempre uma representação que, na maioria das vezes, coincidia quanto às decisões políticas a serem assumidas. O fato de estar na Instituição Sedes, sustentados pelos princípios políticos que regem esta instituição, mostrava os indicadores que permeavam nosso discurso. Foi assim um trabalho que permitiu a aproximação dos dois Departamentos.

Enorme foi o esforço que fez cada instituição do Movimento Articulação para manter ativo, criar e consolidar este novo espaço de trabalho. Foi necessária muita discussão para entender e atuar com a ideia de Movimento. Essa ideia orientou esse grupo, que se constituiu e se desfez a cada reunião com o objetivo de não se institucionalizar.

Foi também uma forma de romper a endogamia que regia cada grupo, incluindo-nos em um movimento interinstitucional que foi se consolidando e hoje tem um reconhecimento e uma força política muito destacada. É o único espaço reconhecido no Brasil e no exterior do qual formam parte instituições de diversas orientações teóricas trabalhando em conjunto pela defesa da psicanálise. Nossa ideia foi sempre manter nossa voz ativa neste processo de articulação das diversas instituições que só tinham em comum a defesa da psicanálise e o desejo de que ela não fosse regulamentada.

Quais dificuldades enfrentamos?

Em primeiro lugar, entender que não se estava criando uma nova instituição e sim um espaço comum que se revitalizava a cada encontro e ia determinando trabalhos e prioridades. Nosso desafio foi sempre não nos constituirmos como fiscalizadores dizendo quem é ou não psicanalista, porque, nesse caso, seriamos nós os primeiros a estar regulamentando a psicanálise – ainda que sempre nos perguntemos sobre como agir frente às propagandas aberrantes de instituições que se denominam como psicanalíticas, anunciando, na sua publicidade ou nos seus estatutos, ideias que estão em absoluto desacordo com a ética que nos constitui como psicanalistas. Uma ideia geral que nos rege é participar e denunciar todas as tentativas oficiais de regulamentação, como são os projetos de lei que hoje estão no Senado.

Ultimamente, temos tido uma luta ativa e conseguimos enviar cinco representantes do Movimento, que irão a Brasília, e têm entrevistas marcadas com vários senadores que formam parte da Comissão de Assuntos Sociais, encarregados de votar na próxima reunião, para esclarecer e alertar sobre os motivos que nos fazem nos posicionarmos como contrários à aprovação deste Projeto de lei. Nesta semana, funcionou uma articulação poderosa, que mostra o vigor de nosso movimento.

Por que somos contra a regulamentação e o projeto de lei de profissionalizar a psicanálise?

Com frequência se escuta dizer que regulamentar a psicanálise seria uma forma de proteger este saber, já que impediria que fosse exercido por qualquer um. No entanto, pensamos exatamente o contrário - cumprir leis enunciadas externamente torna estes enunciados vazios, se estes não são enunciados a partir de um pensamento ético-político interno ao próprio saber. Esta ética nos diz que a psicanálise é um saber subversivo que enfrenta o sujeito com sua verdade e que o caminho que se percorre, tanto no tratamento quanto na formação, é singular e único.

É precisamente sobre a burocratização destes elementos que se apoiam os grupos que desejam lucrar ou se apropriar do prestígio que a psicanálise tem alcançado em mais de 100 anos de prática.

A lei propõe estabelecer os requisitos educacionais, ou seja, enunciar e fixar as normas a serem cumpridas para a formação de um psicanalista, e poder outorgar o título de psicanalista a quem cumprir uma análise pretensamente educativa. O que será que isto quer dizer? Como se estabelece esta definição a partir de fora do pensamento psicanalítico? Insistimos que estas regras não podem ser enunciadas por uma instância estatal e que sim, cada escola se ocupa com rigor e cuidado do caminho proposto para a formação em função do corpo teórico ao qual responde, mantendo a ética que resulta do estudo teórico e da prática clínica da psicanálise. As instituições têm seus mecanismos de ética e controle a partir da experiência singular que significa uma análise e que se depreende da teoria. Que regras podem ser impostas para legislar um tratamento psicanalítico, determinar um fim de análise ou entender que o praticante cumpriu objetivos determinados se, em nossa própria compreensão do que é um tratamento, este não pode ser regido por um fim específico e responde sempre à singularidade de um processo? Profissionalizar a psicanálise ataca seu ideário constitutivo, implicando que nosso fazer estaria controlado por uma instância que o regimentaria. Freud foi preciso quando se referiu a que a psicanálise é uma psicoterapia, trabalha com um conceito próprio de verdade que é singular e único a cada tratamento, não há verdades universais, dogmatizantes, nem objetivos de conduta a serem alcançados.

Dizer que a psicanálise tem por objetivo “educar” nos coloca em uma posição contrária e nos faz pensar que quem elabora a lei não está imbuído do pensamento psicanalítico. Na psicanálise se parte do conflito, resultado da própria condição cindida do sujeito e o que está em jogo é se confrontar com essa condição. Não se propõe a apagar sintomas, mas a fazê-los falar através da disponibilidade da escuta. A respeito destes princípios, todas as instituições do Movimento Articulação têm pontos de coincidência.

Faz mais de cem anos que trabalhamos respeitando a autonomia na formação, considerando que os enunciados e princípios se encontram na própria teoria psicanalítica.

Também determina a lei que, entre suas funções, o psicanalista emita diagnósticos e laudos técnicos científicos, propondo que entre suas funções esteja o diagnóstico, a avaliação dos distúrbios emocionais e mentais e a adaptação social. Neste sentido, o tratamento teria por objetivo a orientação e a educação dos pacientes.

Como psicanalistas nunca poderíamos compactuar com esta forma de definir a função de uma análise. Isto pode avalizar o desejo de dizer o que é o normal ou patológico, e referendar posições como a “Cura gay”.

Seguindo as balizas da teoria, facilmente detectamos também a formação enganosa e leviana que propõem certas propagandas, que evidentemente não se regem pelos princípios da psicanálise.

Dentro do mesmo movimento temos ideias bastante diferentes sobre algumas questões específicas, mas para poder trabalhar juntos em um espaço constituído por escolas tão diferentes, tivemos que assumir a necessidade de postergar os desejos narcísicos e entender que, no mesmo espaço, podem funcionar diversas instituições, renunciando à necessidade de poder, de ser o único, o mais ou o melhor, ou aquele que monopoliza a verdade sobre o conhecimento de Freud. Tivemos que trabalhar arduamente na aceitação das diferenças e entender que poderíamos nos unir em torno de pontos mínimos que nos incluíam a todos, fortificando o coletivo e aumentando nosso poder de luta. No livro aparecem as diferentes vozes, representadas por diversos autores das diferentes escolas.

Nos encontros do Movimento, cada instituição tem um voto, independentemente do número de seus associados. Não existe uma instituição hegemônica que tenha mais direitos que outra, é na presença, na argumentação e na discussão que se trabalham as ideias.

Somos todos analistas unidos, defendendo a psicanálise das tentativas de regulamentar seu campo e de impor o Estado como regulador de uma profissão que não existe como tal; pensamos que a psicanálise é um ofício, que só está regido e reconhecido entre nós pela ética que o constitui. O que nos une é poder trabalhar com as diferenças, entendidas como diversidade.

Há, no campo da metapsicologia, alguns pilares que nos permitem compartilhar este espaço e entender que estamos no campo da psicanálise independentemente da escola a qual pertencemos. Trabalhamos todos com o conceito de inconsciente, como o estrangeiro em nós, com a sexualidade infantil, que funda o caminho do devir subjetivo e com o conceito de pulsão que, por ter um objeto contingente, se diferencia do instinto - o que permite nos afastarmos do caminho da biologia, para adentrarmos o campo da fantasia e da linguagem.

No campo da clínica, a transferência como ferramenta fundante e a abstinência, entendida como a forma de permitir que emerja o desejo do paciente, sem que seja nosso desejo aquele que determinará a condição e o caminho da cura. Hoje em dia se faz necessário entender que abstinência e neutralidade não significam que o analista esteja fora da participação que o envolve como cidadão da história. Para a psicanálise permanecer e ser produtiva, precisamos de condições políticas onde reinem a democracia, a liberdade e que sejam respeitadas as diferenças.

Nestes sombrios tempos, nos quais testemunhamos condutas que jamais pensamos que poderiam ser o foco da condução política, em tempos de horror em que se fazem tentativas de desmontar universidades e planos de pesquisas, nos quais ensinar a pensar através da filosofia, da sociologia e da arte significam ameaças, porque é necessário que não se estimulem as mentes críticas, em momentos nos quais se pode defender a propriedade privada à bala e todo mundo pode estar armado e transportar armas, em que as diferenças e as escolhas sexuais têm que ser reguladas, nos perguntamos: O que, nós, psicanalistas, deveríamos fazer senão lutar contra estas aberrações?

Frente ao estado de desamparo em que chegamos ao mundo, estado que se reatualiza nos momentos de crises, as religiões avançam oferecendo a salvação e a certeza de um mundo seguro e mais garantido, utilizando-se da sugestão para marcar os horizontes. Como psicanalistas não podemos compactuar com isso: esta política traz uma grande ameaça também ao que especifica nosso trabalho. As bancadas evangélicas estão ativas tentando regulamentar a psicanálise. Contudo, na votação sobre a opinião pública a respeito da regulamentação, o resultado é 5600 votos pela não regulamentação, e 350 votos pela regulamentação. O movimento Articulação trabalhou intensamente para possibilitar estes resultados mobilizando suas instituições. Mesmo assim quem apresenta a lei está contra o diálogo. Mas é preciso sublinhar que frente à nossa ativa participação, outros senadores estão dispostos a nos escutar, e é seu voto o que conta.

A forma de estar vivos, e manter a psicanálise viva, é continuar a luta, como cidadãos da história na política geral e na micropolítica de nossa especificidade. Portanto entendemos este lançamento como um momento de união e alegria, e de resistência e luta, e é por isto que convocamos a todos para reativar as forças que nos permitam continuar trabalhando pela defesa da psicanálise.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.




 
 
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