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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    55 Setembro 2020  
 
 
CRÔNICAS DA QUARENTENA

SONHOS DE UM PACIENTE ENTUBADO


SILVIA GONÇALVES [1]

Enquanto eu observava uma paciente entubada, a enfermeira se aproximou e comentou o quanto esse procedimento, antes da pandemia, era considerado delicado e excepcional, e que agora ficou tão comum. A imagem de um paciente entubado sempre me perturbou, pela passividade e vulnerabilidade em que ele se encontra, totalmente entregue aos cuidados da equipe de saúde e à incógnita da sua evolução. Vida nua.


A entubação torna-se necessária como intervenção num momento de queda da saturação do paciente e é um momento de muita angústia. Antes da entubação, o paciente assina um documento permitindo a realização deste procedimento, tão necessário quanto delicado. Muitos relatam uma segunda despedida. A primeira seria no momento da internação hospitalar. A certeza da separação do familiar, dos entes queridos e de um período de isolamento e de incógnitas da sua evolução aponta para um marco que traz muitas angústias. No momento da entubação o paciente escolhe uma pessoa que será a sua referência e contato com a equipe de saúde.

A pandemia trouxe uma realidade muito dura para os pacientes internados. Desamparo e desalento trouxeram sequelas de quadros ansiosos e depressivos após a entubação e também após a alta hospitalar. Medicações utilizadas nesse processo mantêm o paciente sedado. Ao ser extubado, há algumas vezes um breve processo de agitação e de confusão mental e não há lembranças de qualquer experiência vivida no período de entubação.

Quando chamada para ver R, a médica comentou a respeito de sua ansiedade, antes mesmo da pandemia. Os médicos relataram uma agitação dele durante a entubação. Um deles me disse que R afirmava ter certeza de que iria morrer. Entendiam que ele devia utilizar alguma substância que poderia tê-lo deixado assim. Entraram, então, em contato com sua mãe, pessoa escolhida por ele como referência. Não encontraram qualquer justificativa para aquele quadro. Sugeriram que seria um paciente com sérios distúrbios psiquiátricos.

Após a alta, R me procurou para iniciar uma análise, que não conseguiu sustentar por mais de três encontros. Nestes pôde me contar de uma infância difícil, com um pai alcoólatra e uma mãe que tinha explosões de humor que o assustavam e não o deixavam se concentrar nos estudos. Vivia assustado, esperando nova discussão entre os pais. Apesar disso, referia que sua mãe representava seu “porto seguro”. O pai sempre alcoolizado e mulherengo representava a instabilidade da família. Desenvolveu, no decorrer da vida, sintomas hipocondríacos que a COVID só veio reforçar.

No nosso último encontro, surpreendentemente me relata sonhos que tivera quando entubado, durante o período de internação, de nove dias. No primeiro sonho era levado por um médico numa cadeira de rodas até a recepção do hospital onde estavam pacientes que haviam sido curados pela COVID. O médico retorna para o seu leito. Ele pergunta se não iria embora, o médico lhe responde que ainda não.

Em outro sonho está com uma criança chinesa ao seu lado e com os pais dela do outro, no seu leito hospitalar. Reclama aos profissionais por estar ao lado de uma criança e dos riscos desse descuido.

Noutro sonho ouve dos médicos que será entubado novamente. Fica desesperado e pede para os pais o tirarem do hospital. Estes vão vê-lo e lhe dizem não ter dinheiro para isso. A mãe reclama ao seu pai que, com as “vagabundas”, ele tinha dinheiro para gastar. Ele acaba por achar bom eles não terem dinheiro, pois assim não o manteriam desnecessariamente no hospital, já que não tinham como pagar por isso.

Esse rapaz trabalhava num hospital ao lado do morgue, onde ficam os cadáveres. Em dois outros sonhos ele se aproximava do morgue, mas conseguia desviar.

No último sonho ele passa por uma ponte que levava a uma estrada, que quase cruza. A esposa pergunta por que ele não a acompanha. Ele retorna da ponte a ponto de se juntar a ela e não cruza a estrada. Sua esposa teve COVID, mas não precisou ser internada.

Quando peço associações, ele diz que, devido à sua religiosidade, as mensagens de esperança e de tranquilidade que os sonhos trouxeram, vinham de Deus.

Ao questionar o médico das lembranças deste paciente, ele me responde que há casos de alguns pacientes não ficarem totalmente sedados, mas que não é o habitual. O médico que o entubou associou também a sua agitação à certeza de que iria morrer. Também suspeitava que R utilizava alguma substância psicoativa, dado que não foi confirmado nos nossos encontros.

Acompanhar esse caso tão forte em meio a essa trágica pandemia, me mobilizou a fazer uma hipótese: a função dos sonhos de R seria a de trazer uma mensagem de apaziguamento frente à vivência do terror da entubação? Neles, por mais de uma vez, R escapava do destino mortífero, mesmo que tão próximo dele. Pareceu-me assim que a função dos sonhos de R era então acalmá-lo em relação ao seu medo da morte e ajudá-lo a resistir, a lutar pela vida. Os sonhos foram, acima de tudo, guardiões da sua vida, não só de seu sono.

Hoje caminho pela UTI imaginando o que se passa na mente destes seres aparentemente sem vida, mas torcendo para que eles estejam sonhando muito. Sonhando e lutando também assim pela vida. Sonhando como forma de agarrar-se ao trabalho psíquico possível, ao sopro de vida.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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