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NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO
UM COLETIVO PARA PENSAR COM E A PARTIR DE LAPLANCHE E SILVIA BLEICHMAR
Maria do Carmo Vidigal Meyer Dittmar (Lila) [1] O grupo de trabalho Investigações a partir de Laplanche e Silvia Bleichmar[2] teve seu início em 11 de setembro deste ano. Sua segunda reunião ocorreu na semana seguinte e será quinzenal, ocorrendo sempre nas primeiras e terceiras sextas-feiras do mês, das 14h às 15h30. Venho dar notícias de nossos primeiros passos. Quando do início desta escrita, ao pensar por que caminhos apresentaria a proposta do grupo, resolvi ler um texto que havia publicado no Boletim 41, chamado Laplanche redescoberto 2 [3] . Naquele texto, encontrei, com relativa surpresa, os mesmos motivos que me levaram a propor agora este grupo de trabalho e pesquisa no Departamento, já explicitados por mim três anos atrás. No texto, eu contava sobre o debate ocorrido após a publicação da Percurso 46/47, em homenagem a Laplanche, recuperava aspectos da elaboração daquele número da revista e escrevia ainda aquecida pelo evento Psicanálise contemporânea - A geração pós-Lacan e a clínica do negativo. Estes acontecimentos, naquele momento tão vívidos, me suscitavam questões que eu desejava que circulassem entre nós.
Sem que me desse conta, a proximidade daquele texto com a proposta atual é tamanha, que propus iniciarmos o grupo lendo uma entrevista de Laplanche e o artigo “Contracorrente” [4], o mesmo que eu havia mencionado naquele momento.
Para esta ocasião, não desejando repetir nem o texto do projeto e tão pouco Laplanche redescoberto 2, ambos acessíveis on line, pareceu-me interessante contar um pouco mais por que a aproximação entre estes dois autores é interessante. Dentre inúmeras possibilidades, recorri a um fragmento de A tina [5], Problemática V, no qual, pela primeira vez em sua obra, Laplanche menciona Silvia Bleichmar. É um livro no qual o autor busca circunscrever a situação psicanalítica e as transferências que nela se desenvolvem. Foi assim que encontrei, quase que por acaso, uma figura que Laplanche utiliza para falar da infância e que de imediato suscitou em mim a lembrança de falas, permeadas de angústia, de muitos adultos tentando equilibrar, em uma complexa balança, o cuidado às crianças e as dificuldades que as contingências impõem a suas próprias vidas. Creio que o momento atual tenha feito que esta imagem, por si só já tão significativa, ressoasse de forma mais forte, pedindo para ser compartilhada.
Laplanche, neste trecho do livro, propõe que a infância deveria ser concebida como crisol, figura bastante interessante para pensar a experiência das crianças, em especial na experiência daquelas muito pequenas.
A infância como crisol
Trata-se da aula ministrada por Laplanche em 6 de dezembro de 1983 [6].
O que é um criso? O crisol é um recipiente utilizado para fundir metais e que resiste a altas temperaturas. Alguns metais são depurados no crisol, adquirindo assim maior pureza. No livro, crisol se relaciona tanto à tina analítica como ao sonho [7]. As ideias de alta temperatura, fusão e de que algo se origina, mas também depura ou decanta lhe são associadas. Diz Laplanche: a infância deveria ser concebida “como o crisol de onde irá nascer, de onde irá cair, poderíamos dizer, de onde irá se depositar a realidade psíquica” [8].
Neste momento do livro, o autor segue tentando circunscrever a especificidade da situação analítica e das transferências que nela se desenvolvem e articulá-las à situação originária, que é o encontro entre um adulto e uma criança que dele depende, inevitavelmente. Diz ele: “as situações de transferência estão em ressonância com essa imersão do pequeno humano num universo de significância que preexiste a ele, que o ultrapassa, o invade e o traumatiza” [9]. Laplanche defende a hipótese de um hiper-realismo originário, sendo a condição inicial do ser humano de abertura ao outro que é anterior ao sujeito. Outro de quem procedem mensagens inevitavelmente infiltradas pelo inconsciente sexual e que ingressarão sendo transformadas no psiquismo nascente da criança. Situa-se, assim, em contraposição à concepção de narcisismo originário entendido como mônada fechada - mesmo que aí se inclua a presença do adulto que cuida e mesmo que este adulto esteja muito tranquilo no exercício de sua função - a partir da qual tratar-se-ia de sair para se ter acesso à realidade objetiva. Ele busca pensar como se origina a realidade psíquica, em torno da qual gravita a situação psicanalítica, e como esta se diferencia de outros níveis de realidade. Neste ponto de sua reflexão, considera que, nos momentos iniciais, a realidade subjetiva (a minha vivência subjetiva singular...), a realidade objetiva e a realidade psíquica se confundem, nada está definido quanto à diferença entre elas.
A tese de Silvia Bleichmar, que estava ainda para ser defendida naquele momento, consiste em um apoio à hipótese de Laplanche sobre o hiper-realismo originário. Bleichmar busca pensar a metapsicologia a partir da clínica e dos dados de observação da criança real, não a considerando como relativa a tempos míticos. Laplanche ressalta que ela destaca um fato já assinalado por Freud em Hans: “que a criança, no início, relata seus sonhos sem situá-los como sonhos, sem fazer deles um domínio à parte do real” [10]. Segue Laplanche: “A partir daí a autora se interroga sobre a maneira como se opera a clivagem ulterior, isto é, como a criança separa um domínio que irá tornar-se o inconsciente, no seio deste estar no mundo inicial. É nessa instauração da clivagem entre o consciente e o inconsciente, e por via indireta também da clivagem entre o psíquico e o não psíquico, que intervém o recalque originário, que concebemos como a constituição de um inconsciente radicalmente clivado, ou seja, de uma realidade psíquica no sentido estrito do termo” [11].
Laplanche não deixará de reconhecer a importância do trabalho de Bleichmar. No artigo “Da teoria da sedução restrita à teoria da sedução generalizada” [12] de 1986, ele diz: “O recalcamento originário, como diz Silvia Bleichmar, é um processo que, não podendo ser percebido diretamente, pode ser indicado e delineado na evolução individual. Mas entre suas maiores características está o fato de ser ele próprio, no seu conjunto, sob a dependência do après-coup. A constituição do Ego, isto é, o tempo do narcisismo originário, desempenha aí um papel essencial. Precipitante, mas não como momento último. Pois somente o recalcamento secundário, correlativo do Édipo e do complexo de castração, vem selar a constituição do inconsciente” [13].
A densidade das formulações teóricas contidas neste breve parágrafo é evidente. Permanecerão presentes e ganharão desdobramentos múltiplos no pensamento de cada um dos autores e no diálogo que se estabelecerá entre ambos, no qual prevalecerá não apenas a continuidade, mas também os estilos singulares e as diferenças entre eles. É, no entanto, inegável, nestas duas referências que faz Laplanche à Bleichmar, a importância que ele lhe confere por trazer para o centro da reflexão o crisol da criança real.
A figura do crisol e sua ressonância para pensar a infância, a tina analítica e o sonho, merecem um trabalho mais aprofundado, no sentido de estabelecer a proximidade e a diferença dos processos de neogênese e elaborativos em cada uma destas condições. Suscita também reflexões sobre o traumático, não só o traumatismo fundante e não só na criança, mas também no aparelho psíquico já constituído aberto à incidência do real.
Uma experiência como a atual tem especificidades. Ao mesmo tempo em que se estende no tempo e é coletiva, falada e compartilhada de variadas formas, é também repleta de múltiplos traumatismos singulares, por vezes muito intensos, e que incidem de forma muito específica em cada um. Aguardamos por um fim, creio que na esperança de um après-coup mais definitivo, enquanto que no atual já estamos permanentemente impelidos a dar conta das intensidades provenientes do jogo incessante entre a realidade interna, necessariamente conflitiva, e a particular incidência da realidade exterior em cada um de nós.
Sobre os momentos iniciais do grupo
A proposta é começarmos com textos que permitam uma visão abrangente dos dois autores, Bleichmar e Laplanche, tanto no sentido de uma aproximação às principais temáticas abordadas por cada um deles, como também, e muito especialmente, à forma como se colocam no campo da psicanálise: sua inspiração, para usar um conceito laplanchiano. Já nesta primeira abordagem, alguns textos centrais dos autores serão lidos visando um aprofundamento no universo conceitual de cada um e, na sequência, delinear algumas das diferenças conceituais entre eles, inclusive a partir de um texto de Bleichmar escrito para debater o artigo “A revolução copernicana inacabada”, de Laplanche, ambos escritos em 1992. A proposta é também lermos uma entrevista como forma de chegarmos mais perto do que movimenta o pensamento de Bleichmar. Em um terceiro momento, uma das possibilidades é voltarmos no tempo na produção dos autores, para nos determos na questão do traumático, tão presente no momento atual e tão central na Teoria da sedução de Freud e na Teoria da sedução generalizada de Laplanche. A ideia é propor um diálogo entre a noção de trauma em Laplanche e aulas de um curso que Bleichmar proferiu para profissionais de Saúde Mental, por ocasião do terremoto no México, em 1985. Foi um momento de grande proximidade entre ambos. Bleichmar havia recém-publicado sua tese de doutorado, realizada com a orientação de Laplanche nos anos anteriores, e Laplanche foi ao México para participar do encerramento do curso.
Os momentos iniciais de um grupo são de surpresa para quem propõe e para quem responde ao convite. Creio que, após este trajeto inicial, teremos um solo comum e a inspiração (ou inspirações...) do grupo já tenha emergido, permitindo-nos compor um traçado mais ajustado a seus integrantes.
Compareceram ao chamado para esta proposta pessoas queridas de longa data e pessoas novas para mim e entre si, configurando, de fato, uma união nova, muito bem temperada, de pessoas interessadas em refletir tendo como eixo de referência o pensamento destes dois autores.
Não se trata de necessariamente concordar de forma global com nenhum autor. Trata-se de considerar que são dois autores que, pelo trabalho direto e incessante com o texto freudiano e pela forma como o fazem, nos oferecem um eixo consistente e organizador, que permite trabalhar com um campo tão múltiplo como o nosso a partir de balizas conceituais muito fortes. No entanto, trabalhar com diferentes modelos teórico-clínicos convoca não apenas impasses conceituais e clínicos, como convoca também nossa história, nossas transferências, nossas paixões. Não é fácil, mas é muito instigante.
Encerrei o texto do Boletim 41 enunciando um desejo, que segue válido: que nós também possamos pensar com Laplanche, com Green e Bleichmar, entre tantos outros, e, fundamentalmente, entre nós. Que o esforço coletivo nos ajude a ultrapassar as cenas primárias e não nos remeta incansavelmente a elas exatamente naqueles momentos em que mais nos empenhamos em pensar.
Correndo o risco de abusar um pouco da imagem, me ocorre que neste momento inicial nosso grupo é também como um crisol, sobre o qual recaem tanto nossos autores de referência como a matéria viva de 12 pessoas. [1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise e do Departamento Psicanálise com crianças, ambos do Instituto Sedes Sapientiae. Professora do curso Psicanálise com crianças e membro do Conselho editorial da revista Percurso. [4] Laplanche, J. “Contracorrente”, in Sexual: a sexualidade ampliada no sentido Freudiano – 2000 – 2006 , Porto Alegre: Dublinense, 2015. [5] Laplanche, J. A tina: a transcendência da transferência, São Paulo: Martins Fontes, 1993. [7] Em A tina, Laplanche também se refere ao sonho como crisol, para destacar sua função criadora, de perlaboração e neogênese do sexual. [12] Laplanche, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios, Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
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