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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    59 Julho 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

VIVEMOS PARA TRABALHAR OU TRABALHAMOS PARA VIVER?


TEXTO APRESENTADO NO EVENTO TRABALHO E SAUDE MENTAL
EM TEMPOS DE PANDEMIA NO SESC VILA MARIANA EM 07/04/21


Mesa: Vivemos para trabalhar ou trabalhamos para viver? O valor do trabalho e da vida.


CLEIDE MONTEIRO [1]


Boa noite a todos e todas, que se encontram presentes desta forma digital.

Vamos apresentar uma visão sobre o trabalho, que nos permite compreender a relação dos homens e mulheres com o trabalho e qual potencial tem essa relação para a saúde ou para o adoecimento mental do trabalhador.

O trabalho de forma ampla busca, em suas variadas formas, uma transformação do mundo material a partir de certos procedimentos, conhecimentos ou experiências. Ganhou ao longo da história humana diferentes configurações. O trabalho artesanal de produção foi uma forma que perdurou por muitos séculos. O artesão era proprietário de um saber/ fazer em várias áreas da necessidade humana da época e mantinha em alguma delas um lugar de mestria, pois agregava aprendizes de seu ofício. A partir da revolução industrial que configurou espaços (fábricas) que tinham um dono (proprietário) que contratava trabalhadores para produzir e com o advento da mecanização, a busca pelo aumento da produção foi ampliada, assim como o aumento do mercado de produtos e a criação de novas demandas. Para esses objetivos desenvolveram-se métodos de organização da produção, sendo hoje utilizado o trabalho prescrito através do controle, prescrição e uniformização de saberes, das condutas, dos gestos, e dos movimentos dos trabalhadores objetivando maior produtividade, mais rapidez e maior lucro. As tecnologias digitais, que se agregaram a esse movimento recentemente, também produzem grande impacto nos modos de trabalho, criando novas divisões sociais.

Estamos neste tempo contemporâneo, ao qual tem sido acrescentada a perda dos direitos trabalhistas, a precarização do trabalho e, com a pandemia, a instauração do trabalho home office, o desemprego, o trabalho de alto risco.

Mas como pensar o sentido do trabalho para o trabalhador? Sua única função é a de garantir a sobrevivência? O único lugar do trabalho é o do sofrimento de se ver obrigado a realizá-lo?

O TRABALHO ENVOLVE MUITAS DIMENSÕES:

1 - Relações entre homens e mulheres: O trabalho permite superar as desigualdades nas relações de gênero com repercussões no trabalho doméstico e na economia do amor e na vida erótica.

2 - A esfera política: o trabalho desempenha um papel central no que diz respeito à totalidade da evolução política de uma sociedade.

3 - A dimensão do indivíduo trabalhador: o trabalho é central para a formação da identidade e para a Saúde Mental do trabalhador.

Será essa última dimensão que irei abordar.

Adotarei a definição da psicodinâmica do trabalho que afirma: de uma perspectiva humana o trabalho é tudo o que envolve o fato de trabalhar, ou seja, os gestos, os saber-fazer, o engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir a diferentes situações, é o poder de sentir, de pensar, de inventar, de transformar, etc....

Nessa perspectiva se evidenciam aspectos menos visíveis e conhecidos das situações de trabalho, tais como seu papel na construção identitária; as relações de sofrimento e prazer que envolve; a construção de defesas individuais e coletivas para lidar com as circunstâncias nas quais emerge o sofrimento no trabalho, o desenvolvimento da inteligência intuitiva, os riscos de alienação e a construção da intersubjetividade, entre outros.

Portanto, o trabalho não é em primeira instância, a relação salarial ou empregatícia. É o “trabalhar”, ou seja, um modo específico de engajamento da personalidade para enfrentar uma tarefa definida por coerções e cerceamentos (materiais e sociais).

Trabalhar, na verdade, não é apenas exercer atividades produtivas, mas também “conviver”. Assim, uma organização do trabalho racional deve antes de tudo preocupar-se com a eficácia técnica, mas deve também incorporar argumentos relativos à convivência, ao viver em comum, às regras de sociabilidade, ou seja, ao mundo social do trabalho, bem como argumentos relativos à proteção do modo de ser e das formas de satisfação dos trabalhadores, ou seja, à Saúde Mental.

Trabalhar não é apenas uma atividade, é ainda uma relação social, pois ela se expande em um mundo humano caracterizado pelas relações de extrema injustiça, de poder e de dominação.

Trabalhar não é nunca apenas produzir: é também e sempre viver junto.

Não há, portanto, neutralidade no trabalho, pois ele nos afeta, nos toca em vários âmbitos.

TODO O TRABALHO ENVOLVE SOFRIMENTO: porque põe a prova o domínio de um fazer/saber que o trabalhador deseja ter sobre seu objeto de trabalho e que em muitos momentos ou ocasiões, surpreendentemente, não se verifica. Por mais prescrito que seja, pode sempre algo escapar a suposta previsibilidade.

CHAMAMOS DE REAL OU REALIDADE o que no desenvolvimento do trabalho surpreende, irrompe sem que saibamos a razão. Há uma resistência do real, que nem sempre é de fácil superação. Apresenta-se como um desafio lidar com algo que não esteja previsto, algo novo que se impõe. Esse sofrimento é o que move o sujeito a trabalhar, a buscar soluções para se libertar desse sofrimento.

O desenvolvimento da subjetividade passa pela relação entre o sofrimento e o real. O trabalho é sempre uma provação para a subjetividade que se empenha em vencer a resistência do real e que poderá sair dela ampliada, engrandecida ou ao contrário reduzida, mortificada. O trabalho é transformador, é uma ocasião oferecida à subjetividade de provar-se, de realizar-se.

E isso é o trabalho, a passagem pela subjetividade. Caminho que passa pelo corpo, pela inteligência, insônia, sonhos... longo circuito pelo qual chegamos finalmente à intuição da solução que é, na verdade, um desenvolvimento da inteligência, a transformação da relação de si consigo mesmo. É isso que nós chamamos de Trabalho Vivo.

O TRABALHO ENVOLVE TAMBÉM RECONHECIMENTO que é o que pode transformar o sofrimento em prazer. Reconhecimento pelo trabalho, pela sua qualidade. O reconhecimento imprime ao trabalho o seu sentido subjetivo e também o sentido de pertencimento a uma categoria, uma profissão, um coletivo. É porque o Trabalho pode oferecer gratificações essenciais no registro da identidade que se pode obter a mobilização subjetiva, a inteligência e o zelo dos que trabalham.

A IDENTIDADE: Para a maioria das pessoas a identidade, no término da adolescência, não está concluída, findada, estável, completamente madura. Houve impasses na construção desta identidade e, toda doença mental, toda crise psicopatológica é centrada em uma crise de identidade. De repente, duvidamos do que somos, da continuidade e do reconhecimento de nós mesmos... ou seja, temos dúvidas para afirmar esta identidade... e a maioria de nós precisa do olhar do outro para isso. E o trabalho é uma oportunidade de mobilizar o olhar do outro não sobre mim diretamente, mas sobre a produção do meu trabalho.

Vamos então à questão de como se dá esse processo, que permite a expansão da subjetividade pela relação com o trabalho, no mundo do trabalho na atualidade?

As formas de organização do trabalho hoje têm o predomínio da gestão por objetivos e resultados, gerenciado por administradores. Os processos psíquicos envolvidos na manutenção do funcionamento do trabalhador na relação com o trabalho nessas novas formas se enfrentarão, ou melhor, se chocarão com a gestão e a organização do trabalho como é realizada na atualidade, na qual a produtividade medida em metas se expandiu de forma indiscriminada, não diferenciando modos, processos, objetos da produção. Custo/benefício tornou-se a única lógica que devemos pensar a quem beneficia.

Toda a adaptação ao trabalho exige uma atividade intelectual e cognitiva que estará proibida nesse modelo no qual os gestos e movimentos estão pré-determinados ou o resultado tem um tempo de realização arbitrário e muitas vezes uma forma já definida de ser realizada.

A organização do trabalho ocasiona insatisfação: há esvaziamento do sentido do trabalho, violentação da economia psicossomática singular, há imposições que ferem o amor próprio, confronto com as crenças morais e muitas vezes violação do sistema ético do trabalhador.

A ansiedade pelo cumprimento das tarefas dentro do previsto impede o processamento do pensamento, a metabolização da experiência e o corpo registrará essas dificuldades. Muitas descompensações ao nível físico se apresentarão, pois o corpo privado do seu protetor natural que é o aparelho mental corre o risco de adoecer.

Na atualidade essa realidade está acrescida de avaliações humilhantes que têm sido utilizadas como método de gerenciamento de chefias, elas também submetidas a essa lógica da produção máxima em qualquer condição. O assédio moral tornou-se uma forte componente da gestão. Algumas expressões clínicas da violência sócio laboral são: burn-out, quadros depressivos, transtorno de estresse pós-traumático, suicídio, fadiga nervosa, crises de pressão alta, alterações hormonais, etc.

Observa-se um aumento significativo do número de pessoas que adoecem mentalmente em decorrência do trabalho. Soma-se a isso o uso progressivo de substâncias psicoativas nos ambientes laborais. Trata-se não apenas de drogas ilícitas, como o álcool, mas também dos medicamentos psicotrópicos, como ansiolíticos, por exemplo.

Avaliação no trabalho: avalia-se o que se vê. Mas o trabalho é subjetivo. A subjetividade não pertence ao mundo visível e, em decorrência disso, não é mensurável. Não medimos sofrimento, prazer, amor, raiva, ódio. Isso não pode ser medido. Podemos caracterizá-los qualitativamente em certas condições; podemos perceber que existe agressividade, que há transformação de amor em ódio, mas a quantidade é uma metáfora.

Verifica-se também que os trabalhadores fazem tentativas para não adoecer mentalmente: são as “estratégias defensivas” que tem o objetivo de proteção contra o sofrimento, o medo, etc...

Essas estratégias são coletivas envolvendo uma negação da realidade dessubjetivante, ou de risco, que o trabalho apresenta, manifestando ao contrário, condutas que desafiam o risco, o medo. Criam-se realidades partilhadas em que cada um e todos sustentam a não existência do que causa sofrimento.

Porém a negação da realidade não tem o poder de anular totalmente os conflitos intrapsíquicos, pois o medo do acidente, da mutilação, ou da doença profissional, o receio de não estar à altura do exercício da tarefa ou das responsabilidades, a exasperação do absurdo das tarefas repetitivas e do excesso de demandas que permanecem no contexto do trabalho ameaçam a própria construção defensiva. O paradoxo desse processo de defesa consiste que sua manutenção tem a tendência de impedir ou dificultar o pensamento e, portanto, são propulsores subjetivos de servidão e de dominação e contribuem à formação da violência.

Mesmo diante dessa realidade, podemos perceber a subjetividade do trabalhador tentando manter de diversas maneiras o sentido do trabalho, para que se alcance a possibilidade de realização que o trabalho propicia, quando ele se adequa ao humano. Os trabalhadores em sua maioria colocam-se na posição desejante de realizar um bom trabalho e com isso receber o reconhecimento simbólico (nem sempre material) de que colabora para a finalidade de uma boa produção, que faz parte de um grupo que desenvolve saberes, etc.

Todas essas condições e elementos são absolutamente constituintes da subjetividade humana.

Se a constituição primária da subjetividade se dá pelo processamento das experiências infantis na forma de relações familiares e relações com o entorno social (escola e outras atividades fora do âmbito familiar), e formarão a base do funcionamento psíquico, na vida adulta é o trabalho que deverá continuar a propiciar a continuidade da construção psíquica, e da construção de um lugar social.

As novas formas de organização do trabalho foram destruindo a solidariedade e a cooperação entre os trabalhadores. A estimulação do individualismo, que não ocorre somente no universo laboral, mas é uma crença que se desenvolve amplamente em todo o campo social penetrou profundamente nas subjetividades contemporâneas. Este é um tema que precisa ser conhecido e reconhecido nas formas de convívio que ora desenvolvemos enquanto cidadãos. O questionamento dessa crença precisa ser feito.

É a análise do trabalho concreto e da experiência do trabalho que devem servir de base para a transformação da organização do trabalho.

É necessária a abertura de tempo e espaço no interior das organizações do trabalho para que os trabalhadores possam confrontar, discutir, debater sobre a forma como cada um desenvolve seu trabalho; sobre como cada um interpreta individualmente as prescrições, com vistas a caminhar para a compreensão, para a concórdia, modalidades de acordos e combinados entre diferentes membros de uma equipe ou de um coletivo de forma a construir uma interpretação comum das ordens e, então, um modo operatório comum.

E nos dias atuais temos que destacar o momento de profunda transformação nas formas de vida e de trabalho que se produziu a partir da Pandemia do Covid 19.

O trabalho home office produziu fortemente um embaralhamento da dimensão trabalho e vida privada/familiar. A dimensão traumática assustadora da imposição de novas regras para a vida cotidiana sustentada pelo perigo de um inimigo invisível, que leva à morte, uma guerra na qual também há discursos contraditórios sobre a necessidade dessas medidas extremas, produzem uma sobrecarga de sofrimento, insegurança, desamparo de intensas consequências.

Houve alteração na distribuição do tempo do que seria o trabalho e a vida. A exposição por longo tempo frente à tela, a permanência num mesmo ambiente produziu sensações de aprisionamento, cansaço. Dividir o espaço com outro membro da família que também trabalha em home office exigiu ajustes, acordos. A família reunida por todo o tempo escancarou conflitos. O equipamento e o mobiliário não se adequarem a tanto tempo de utilização produziu dores e irritação, a limitação do tempo de trabalho que se diluiu.

Os professores foram uma das categorias que viram o tempo de trabalho se multiplicar com a preparação do material para enviar on line, e com as questões que o equipamento, a conexão de internet não funcionava para muitos alunos.

Também trouxe benefícios destacados: possibilidade de poder distribuir seu tempo, portanto maior autonomia, não enfrentar o trânsito e o transporte precário, mudar para outros lugares distantes do trabalho. Curioso que são ganhos de tempo que não sei se serão usados para outros tipos de atividades que não trabalho, pois, também houve o acesso ilimitado de horários para ser convocado com questões de trabalho.

Esses efeitos bastante perturbadores e desestruturantes de um momento que parece não ter fim exigem análise de seus efeitos sobre os trabalhadores que devem servir de base para a transformação da organização do Trabalho, em que o trabalho respeite e se adeque ao ser humano cumprindo sua função propiciadora de crescimento subjetivo e desenvolvimento da civilidade e cidadania.



VIVEMOS PARA TRABALHAR OU TRABALHAMOS PARA VIVER?


EVA WONGTSCHOWSKI[2]


Vou começar contando uma história do livro de Eduardo Galeano, O livro dos abraços, onde ele relata fatos verídicos que foi recolhendo nas suas viagens.

A burocracia/3.

Sixto Martinez fez o serviço militar num quartel de Sevilha.
No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia por que se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita porque sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.

E assim continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca.

Vamos tecer algumas considerações:

1. Posso entender o Sr. Sixto Martinez. Soldado raso está lá cumprindo o serviço militar obrigatório, e logo, logo vai embora. Não cabe a ele a ousadia e o risco de perguntar por que afinal essa história de montar guarda a um banquinho. Sabe-se lá, a hierarquia militar não é brincadeira.

2. Mas um general ou coronel, patentes altas e de carreira supostamente teriam mais liberdade de fazer perguntas sobre ordens e determinações dos seus antecessores.
Por que uma ordem ou determinação adquire tamanha força a ponto de não ser questionada por tantos anos? O fato de não se saber mais quem deu a ordem faz alguma diferença?

3. A força de trabalho e a inteligência do soldado foram solenemente desrespeitadas. Se perguntado sobre o que faz no quartel o que será que ele vai responder?

4. Essa história de algum modo conhecemos bem: olhamos, mas não vemos. Percebemos visualmente, mas não ligamos essa percepção com a rede de nossas lembranças e conhecimento. A percepção visual fica perdida, sem sentido associado. Diante de um fato estranho, não usual, ou mesmo dramático ou doloroso testemunhamos sua existência, mas sem nos afetarmos pelo que foi visto. Um testemunho burocrático e empobrecido.

5. O ponto central na história do Galeano é a questão do sentido do trabalho. Proteger as pessoas de se sentarem num banco recém pintado é nobre (embora um aviso por escrito fosse suficiente). O quartel propõe à Sixto que não pense, não use sua imaginação para cumprir sua tarefa, que não tome nenhuma iniciativa (querer saber qual a função do banco, por que está no meio do pátio, por que ele é tão valorizado a ponto de exigir um soldado montando guarda). É um convite à alienação. E a alienação não só empobrece mas, faz sofrer. Sixto fica ao lado do banco, mas não participa com sua inteligência, seu interesse pelo mundo, pelas pessoas, pelos desdobramentos do que faz. Trabalha maquinalmente. Albert Camus, escritor argelino diz que a vida sem trabalho não vale, mas quando o trabalho não envolve a alma a vida não se desenvolve e morre. Quanto mais complexo o circuito sujeito (pessoa), trabalho e significado maior o prazer que cada um tem com o que faz. O rompimento do circuito do significado do trabalho ocasiona, no mínimo, sofrimento. Um dos efeitos da pandemia, e dos seus desdobramentos trágicos, é justamente ignorar seus riscos, evitar pensar sobre seus cenários que assustam, no que as autoridades sanitárias se esforçam para que não aconteça. Que cada um deveria poder protagonizar sua proteção e dos que o cercam.


Sigmar Malvezzi, psicólogo e grande intelectual, numa palestra nesta casa, lá na Pompéia, conta a seguinte passagem do livro de Elizabeth Gaskell, escritora inglesa do século 19. Ela conta uma cena do começo da industrialização: uma família de nove pessoas trabalha em teares para produzir novelos de linha. Ganham 13 shillings por mês. Destes 13, 7 devem ser pagos pelo aluguel do tear, cujo dono é o patrão. Portanto sobram 6. Os seis devem pagar o leite, a aveia, as batatas com um pouco de sal, para o mês todo. No inverno um dos integrantes da família deixa o trabalho para recolher gravetos na vizinhança, com o propósito de mantê-los minimamente aquecidos. E a autora faz a seguinte observação (estamos em torno de 1850): essa família não tem tempo para apreciar o pôr do sol, a beleza das paisagens. De fato isso é uma questão, tanto é que Antonio Candido, num texto de 1988 (130 anos depois), “O direito à literatura”, que estenderíamos aqui como o direito à arte, afirma: a arte alimenta, sem cultura se perde a alma que dá vida ao trabalho. A arte nos ensina a pensar, a imaginar, a conversar, a propor soluções. Põem-nos em contato com nossas emoções, transmite experiências, organiza nossa visão de mundo. Ajuda-nos a superar o caos e o vazio. A arte, a cultura, recupera o sentido do trabalho. A pergunta de Elizabeth Gaskel: como era possível viver e trabalhar sem admirar as paisagens e o pôr do sol?

Para encerrar, quero contar para vocês um fragmento do livro do Santo Agostinho quando ele ouve pela primeira vez uma missa com canto (400 d.C.): “quanto não corei fortemente comovido ao escutar os cantos e hinos ressoando maviosamente na vossa igreja. Essas vozes insinuavam-me nos ouvidos, orvalhando-me de verdade o coração, ardia em afetos piedosos e corriam-me dos olhos as lágrimas, mas sentia-me consolado”. Não importa se for um hino religioso, uma música sertaneja falando de saudades, uma sinfonia de Beethoven ou uma boa comédia. Um afeto que a beleza e a provocação da arte nos proporcionam.




[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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