AURO DANNY LESCHER [i]
CARLA LAM [ii]
Clínicas republicanas e democráticas, mesa 2: Auro Lescher, Emilia e Jorge Broide, Thiago e Noemi Araújo. Foto de Noemi Moritz Kon.
Existe no centro de São Paulo um campo de refugiados em torno do qual gravitam centenas de pessoas, crianças e jovens, adultos moradores de rua, andarilhos apressados, outros nem tanto, traficantes e policiais.
O nome desse lugar faz referência à pedrinha que, fumada, arremessa o sujeito aos tempos da caverna do Neandertal. Abduzir-se à idade da pedra parece ser um exílio químico eficaz que torna suportável o insuportável.
A Cracolândia não é o fim da linha porque não é uma linha. É um novelo, um emaranhado. Ali o exilado tem lugar, tem visibilidade, sai na mídia, entra na agenda dos políticos e governos.
A droga acompanha frequentemente situações extremas que muitas pessoas são forçadas a viver – os foragidos da fome e da sede, da pobreza extrema, das catástrofes naturais, os soldados no
front, ou ainda aqueles que pedem asilo depois de ameaçados e expulsos por governos tiranos ou guerras civis: a ruptura com a terra de origem, com a família e comunidade.
Há 23 anos, quando iniciamos nossas atividades no Projeto Quixote, instituição ligada ao Departamento de Psiquiatria da UNIFESP que tem como objetivo atender crianças, adolescentes em situação de risco e suas famílias, era comum, em várias cidades, a internação compulsória das crianças que viviam nas ruas e que usavam drogas. Entidades assistencialistas que distribuíam alimentos e roupas acabavam perpetuando o ciclo. O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda era recém-nascido.
O Projeto Quixote, em parceria com uma rede de serviços públicos governamentais e não governamentais, busca oferecer a esses jovens o acesso a um outro circuito, alternativo à rua, que inclui arte, saúde, educação e cultura.
Na linha de frente dessa tarefa estão os Educadores Terapêuticos (ETs), munidos de suas mochilas lúdicas. Vão a campo e oferecem a disponibilidade de escuta, de testemunho, de curiosidade. Uma bola, um jogo, um tamborzinho, um gravador, um lápis com um papel. A presença contínua dos educadores nas ruas lhes confere legitimidade afetiva e vão se tornando bons conselheiros.
Um dia, Bruna chama a dupla de educadores até seu cobertor. Dá de presente um par de brincos e as pistas de um jogo de detetive: a região de onde ela veio e o nome da escola onde estudou. “Quero ver, tio, se você é bom detetive mesmo. Quero ver se descobre onde mora a minha mãe”.
Frente ao desejo onipotente de tirar cada um daqueles meninos imediatamente da rua, os educadores se lembram da complexidade do fenômeno. Apoiam-se uns nos outros e guardam para si seus ímpetos salvacionistas. E tudo o que fazem é marcar um encontro para o dia seguinte.
Os ETs são uma espécie de ego auxiliar, uma ponte entre a ficção, o delírio e a realidade.
A ideia central do trabalho no Projeto Quixote é a de um "repatriamento" possível. Tecendo junto com a criança sua história, seu presente e os seus desejos futuros. E junto às famílias acompanhamos a (re)construção de uma rede de cuidados sociais, de saúde, educação, cultura.
Os jovens da terra do
crack não são toxicômanos precoces, mas pessoas que buscam no exílio a afirmação de suas vidas.
De qualquer maneira, o que está em jogo é o reencontro tenso e intenso de alguém com seu território concreto e simbólico de procedência e pertencimento.
Poder transformar a própria história é uma declaração de amor-próprio. Matéria-prima da narrativa do sujeito como um ser autônomo, único, que fia sua vida com uma linha que não separa, aliena ou esquarteja, mas alinhava, define e protege.
Casarão No último ano acompanhamos de perto, em reuniões quinzenais de supervisão e reflexão, o trabalho de campo dos Educadores Terapêuticos do Projeto Quixote.
Chamou-nos a atenção a história da Elis, que vem sendo acompanhada pelo Projeto desde os 13 anos de idade (hoje ela tem 20).
Através do nosso vínculo pudemos entrar em contato com o universo
performático (BUTLER, 2009) da Casa Amarela, uma ocupação por parte de artistas e produtores culturais, que vivem e trabalham em seus ateliês distribuídos pelos 25 cômodos de um palacete abandonado, no final da Avenida Consolação, no Centro de São Paulo, e sua relação tensa e ambígua com a
vida nua (AGAMBEN, 2015) do Casarão, um mocó contíguo onde vivem crianças, jovens e adultos em uma situação de extrema vulnerabilidade. As duas construções localizam-se na mesma área, porém estão separadas por um muro que define (convenientemente) a diferença entre o que é forma de resistência cultural, as "vidas que merecem ser vividas", e aquelas pessoas cujas vidas estão fora das fronteiras físicas, simbólicas ou culturais, e portanto, desabrigadas da proteção formal da cidadania e do acesso aos direitos humanos. São os Refugiados Urbanos e suas
vidas nuas, que fazem aparecer na cena política aquela figura capaz de romper a continuidade entre homem e cidadão, nascimento e nacionalidade, destruindo a ficção originária da cidadania moderna.
Junto com os muros, são traçadas novas linhas de bloqueio, novas redes de "proteção" capazes de deter, ou retardar a invasão dos outros, a confusão entre dentro e fora, interior e exterior, nós e eles (Wermuth e Nielsson, 2017, p. 319).
Recentemente fomos visitar a Elis no Casarão e entre cheiros, sorrisos generosos de quem tem a honra de nos receber e os escombros, conhecemos o Black, um cachorro grande e assustador.
Foi irresistível a conexão com a história de Cérbero, o cão de três cabeças que guarda o mundo dos ínferos, o Reino de Hades. Ele é muito receptivo para quem chega mas impiedoso na sua função primordial de impedir a saída do Tártaro. Apenas Hércules, Orfeu, Psiquê, Ulisses e Enéas conseguiram escapar, através da inteligência, força, perspicácia e arte.
Aqui, o imaginário mitológico atualiza a linguagem literária e a experiência vivida, indissociáveis uma da outra, além de nos oferecer um roteiro para nossa reflexão daquilo que pode ser possível como estratégias de comunicação e porosidade afetiva entre esses dois mundos.
As vidas paralelas do Casarão e do Castelo não se encontram apenas no infinito. Encontram-se no presente perpétuo de experiências de atopia, que criam formas de um
princípio-esperança onde o sofrimento pode não ter a última palavra.
O RAP da Elis:
Já passei fome pelas ruas entre becos e vielas
hoje graças a Deus moro na Casa Amarela
muitos criticaram porque vim representar
as pretas da quebrada que sabem como chegar
solto a minha voz de preta perfeição
continuo na batalha buscando aqui irmão
o que fortalece os pretinhos e as pretinhas
a todas as quebradas e também minhas vizinhas
na maior satisfação respeite todas elas
um salve pra geral aí Casa Amarela.
Muitas vezes a vida nos derrubou
Mas em todas as vezes eu pude me levantar...
Pra continuar... Não posso parar.
Me mantendo de pé
seguindo a mesma batida
pois a vida é longa pros que vivem na rima
os falsos que se foram
os verdadeiros tão aqui
fechando com nossa casa
pra cultura não sair
peço a nossa permanência
nossa história está aqui
pois eu luto pela casa
Afro-guarani.
[i] Psiquiatra da UNIFESP, psicoterapeuta e coordenador do Projeto Quixote.