TIDE SETUBAL [1]
Há tempos pandêmicos estou querendo escrever para elaborar essa sobrevivência a tudo, tão inacreditavelmente, isso. Entre golpes de saúde e política, morro e vivo a cada dia. É uma enxurrada tão difícil de ser tragada que ainda, mesmo após um semestre dessa vida impensável de isolamento e crise sanitária, sigo surpresa com o que estamos vivendo. Insisto que, nem nos meus delírios mais ousados, eu seria capaz de imaginar um ano em que as crianças estão em casa, sem ir para escola; os pais, em casa, sem ir ao trabalho. Tudo no tal on-line, as ruas povoadas de máscara, álcool gel e medo. Impensável. Tragédia coletiva, difícil de ser representada psiquicamente, experiência que faz fissura na História.
Outro dia, li uma charge que mostrava um sujeito numa entrevista de emprego em que o entrevistador, lendo o curriculum do candidato, perguntava: Você fez tantas coisas na sua carreira, mas o que você fez no ano de 2020? E o personagem respondeu: Eu lavei a mão.
Nesse estranho ano tivemos que parar. Aprendemos a lavar a mão cantando parabéns, aprendemos a ficar em casa dias seguidos. Vimos muitas séries e lives. Num mundo em que estávamos condicionados a uma velocidade frenética do fazer, produzir, viajar e comprar, tivemos que dar um cavalo de pau e parar. Parar para pensar, parar para olhar o outro, parar para ajudar as populações mais vulneráveis, parar para agradecer os profissionais de saúde que foram trabalhar enquanto a gente se protegia em casa. Parar para se repensar. Encarnamos um ritmo de vida mais paulatino, sem trânsito, sem eventos sociais, sem viagens a terras longínquas.
No entanto, me senti vivendo uma espécie de paradoxo: ao mesmo tempo que algo do ritmo acalmou, também outro algo agitou. Habitei um cotidiano pautado pelas telas minhas e dos meus filhos, que demandavam ajudas na escola on-line, trabalhos on-line, provas on-line. Ao final dos dias, inúmeras vezes me recolhi exausta, mesmo sem ter saído de casa. Sugada pelas telas, pelas demandas extras dos pacientes e da família e, ainda por cima, de uma passada escola que de repente se tornou parte do meu atual. Estudei formações rochosas, relembrei as regras de acentuação das paroxítonas (a regra das proparoxítonas é tão fácil que não foi preciso relembrar), brinquei de formas geométricas. Acelerei enormemente meus aprendizados tecnológicos. Zoom, Google Meet, Teams eram verdadeiros desconhecidos que hoje, quase íntimos, fazem parte da minha rotina.
No consultório-casa me surpreendi com as análises que depois de um primeiro susto foram se desdobrando num ritmo profundo, mesmo sem a presença dos corpos. Sonhos e mais sonhos, inconscientes borbulhando em noites agitadas que, assim como as minhas, também escutava sendo as dos meus pacientes. Alguns insistiam, com toda razão, em denunciar a falta do corpo presente, do espaço de privacidade mas, mesmo assim, não se cansaram de inventar maneiras de seguir com suas análises. Nos carros, nos quartos, nas garagens. Me emociono ao flagrar a força das transferências, do laço afetivo e do desejo de seguir um trabalho de transformação psíquica mesmo em um contexto tão adverso ou talvez por isso mesmo.
Não tenho nem a qualidade de gostar do isolamento, nem das telas. Sonhei repetidas noites com abraços e corpos presentes. O cheiro, o toque, a sutileza da presença me fizeram uma baita falta. No consultório, nas aulas, no Sedes, nas reuniões, na análise, nos projetos novos e antigos, nas ruas. Tenho saudades da espontaneidade dos encontros. Mas, reconhecendo as contradições, penso que esse parar também me trouxe ganhos pessoais apesar de.
Então, de um início angustiada, perdida e com enormes medos, aos poucos meus dias foram se tornando mais conhecidos. Vivi uma proximidade intensa com meus filhos e meu marido. Afinal, foram 24 horas do dia convivendo. Uma intimidade de quem partilha uma estratégia de sobrevivência para lidar com os tempos de peste. Nesse contexto, tenho visto de tão pertinho minha filha ir se tornando a cada dia - para não exagerar dizendo a cada hora, apesar de assim me parecer - mais adolescente. Ri um monte quando ela dramatizou um diálogo com os seus futuros filhos que estariam (como ela já tantas vezes fez) reclamando de irem para escola, então, ela vai dizer indignada: “Vocês estão reclamando de ir para escola?! Vocês não sabem o que é passar meses presa em casa sem poder ir para a escola! Isso me aconteceu em 2020!”.
Foi nesse todo dia que comecei a perceber os aprendizados pessoais mas também os coletivos. A humanidade que (tomara) amplificou a percepção da necessidade coletiva do cuidado com o outro. A generosidade e preocupação com os próximos e os distantes. A importância gigante do laço afetivo, das trocas com familiares e amigos. A saúde mental que de golpe passa a fazer-se mais presente, tornando-se tema central do debate na atualidade. A crise de saúde, a crise econômica, a crise de saúde mental. E, sobretudo, vi um tema de importância visceral ir tomando as ruas, as lives, as conversas, as manchetes de jornais e revistas: o racismo. Li a maravilhosa Grada Kilomba. Assisti profundamente emocionada inúmeras lives de psicanalistas negros contando suas trajetórias. Quanto mais escutava, mais fui me tornando branca, pálida mesmo, entendendo profundamente os inúmeros privilégios visíveis e invisíveis que essa condição de branquitude abarca.
Envelheci uns muitos anos quando me vi valorizando e curtindo ao máximo a natureza. Me lembrei de quando era pequena que eu via meu avô caminhando pela sua casa de interior em Águas das Prata e admirando a beleza das árvores, aquilo me parecia coisa de gente muito velha que não tinha mais o que fazer. Nessa quarentena fui meu avô muitas vezes quando nos fins de semana em que escapei do fechado apartamento para o campo, respirei com um prazer incomensurável a natureza. Verde claro, verde escuro, verde musgo, verde água. Por do sol amarelo, laranja, vermelho, rosa. Ah! Que maravilha! Foi verdadeira felicidade íntima.
Termino esse balanço de um semestre impensável de quarentena refletindo sobre uma frase que escutei outro dia: seja água. Para criar vida, molhar terra fértil, se adaptar a novos rios, se misturar nas coisas, chover, regar plantas, se tornar lágrimas de tristeza mas também lágrimas de alegria. Aliás, me vi lágrimas muitas vezes nesses tempos pandêmicos.
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo, da equipe do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e da equipe editorial deste Boletim.