POTENCIALIZAR A SAÚDE MENTAL NO TRABALHO. UM DESAFIO[1].
Evento do SESC / SEDES Projeto Rede Inspira. Ações para uma vida saudável
7 a 18 de abril de 2021
PEDRO MASCARENHAS[2]
Falo a partir de uma posição de atendimento clínico de pessoas que se reconhecem em sofrimento psíquico relacionado ao trabalho ou desemprego, desenvolvido desde 2014, no Projeto Laborar do Departamento de Psicanálise do SEDES. Vou apresentar alguns flashes clínicos para pensar sobre o trabalho e a vida em tempos de pandemia no Brasil e, assim, poder contribuir para encarar o desafio de construir um mundo mais saudável e justo. É um ponto de vista que aponta para um campo de cruzamento da Política com a Clínica Psicanalítica.
É pouco suficiente tudo que se fala das condições específicas de trabalho, seu envolvimento com o psiquismo do trabalhador ou trabalhadora, seus sofrimentos, inerente a qualquer que seja a condição de trabalho (Dejours 2012) e suas possibilidades de desenvolvimento criativo coletivo, fundante de espaços comuns que valorizam a vida ou alienado, cruel, torturante, produtor de ruptura com os laços sociais e produtor de patologias. Sem esta discussão, dificilmente poderá haver progresso do bem-estar social. Por acreditar nisso, saúdo este evento e as instituições que o promovem e apoiam. Evidentemente este evento aponta para este objetivo, qual seja, criar espaços coletivos de discussão e criação de pensamento sobre o trabalho e a vida, hoje no Brasil.
As condições de trabalho no Brasil e no mundo não estavam num céu de brigadeiro quando surgiu a pandemia. Pelo contrário, citando o sociólogo Ricardo Antunes, “antes da pandemia mais de 40% da classe trabalhadora brasileira encontrava-se na informalidade ao final de 2019. No mesmo período, uma massa em constante expansão de mais de cinco milhões de trabalhadores/as experimentava as condições de uberização do trabalho, propiciadas por aplicativos e plataformas digitais, o que até recentemente era saudado como parte do “maravilhoso” mundo do trabalho digital, com suas “novas modalidades” de trabalho on line que felicitava os novos “empreendedores”. Sem falar da enormidade do desemprego e da crescente massa subutilizada, terceirizada, intermitente e precarizada em praticamente todos os espaços de trabalho”. (Antunes 2020).
Sempre, no Brasil, convivemos com a intensa exploração do trabalho e a consequente precarização ilimitada das vidas. A pandemia veio atingir a todos, porém as condições de enfrentamento desta calamidade pública são diferentes e bastante cruéis para os que dependem do trabalho para sobreviver. Amplia enormemente o empobrecimento e a miserabilidade da classe trabalhadora.
Flash clínico 1:
– “ou morro de infarte ou de acidente”.
Homem, 46 anos, vistoria veículos. Seu trabalho é externo e sofre muita pressão, pois padece no trânsito e com o atraso dos clientes . “É tanta pressão que às vezes quando estou no trânsito fico querendo jogar a moto ..., acabar com tudo...”. O tempo todo é monitorado para ver onde ele está. Seu chefe o destrata e não confia nele. À noite, trabalha como entregador terceirizado para restaurantes. Nos dois empregos, trabalha sozinho, ao relento, sem um colega para conversar . “Tem períodos que surto, aí eu paro de trabalhar e fico meio parado deitado em casa ”. Tem saúde deteriorada, ideias suicidas e abuso de álcool.
Foi atendido antes da pandemia, após o surgimento da pandemia, migramos para atendimento on line e ele sumiu.
A passagem do trabalho presencial para o trabalho on line aumentou a exclusão de pessoas mais pobres dos serviços.
O trabalho só pode ser entendido dentro de sua complexa dialética com o capital. Marx já apontava isso desde meados do século XIX. A história e a política do Brasil, desde suas relações coloniais com Portugal e Inglaterra marca a ferro e fogo, na nossa pele e na nossa subjetividade, o trabalho e o capital e toda a complexidade destas relações. Muitas são as consequências desta relação subalterna colonizador/colonizado. Provoca uma despolitização e resistência nestas relações trabalhistas desde a escravidão, persistindo até hoje. Esta subalternidade nos espaços de trabalho destrói o trabalho vivo e o trabalhador. E encontramos em muitos modelos de gestão bem atuais com marcas deste ferro em brasa. (Mendes 2018).
Seguindo o pensamento de Ana Magnólia Mendes, podemos pensar que todas as patologias ligadas ao trabalho têm na sua raiz a apropriação do trabalho vivo pelo trabalho morto.
Trabalho vivo é um complexo conceito de Marx ligado ao corpo vivo, ao sujeito criador, ao real do trabalho, à produção de subjetividade, ao trabalhador, à produção do comum (Dardot and Laval 2017), ao instituinte. Para deixar algumas referências aqui e ainda seguindo Magnólia Mendes: trabalho vivo “é uma força, um poder de um sujeito, um ato, uma práxis que possibilita a transformação da natureza, o dar formas à matéria para que seja útil à vida. É subjetividade, a metamorfose do próprio homem pelo fazer, que transforma a matéria.”(Mendes 2018).
O trabalho vivo envolve a transformação do objeto de trabalho e do próprio trabalhador. Sujeito e objeto se transformam. Se organiza numa cultura de autogestão, de cooperação e reciprocidade.
Agora o capital, e particularmente os processos de trabalho ligados ao neoliberalismo globalizado, criam um discurso onde não há espaço para este reconhecimento do processo do trabalho vivo. Embora o capital necessite do trabalho vivo também, porém tudo sob controle, com agenciamentos regulados e raras possibilidades de escape, isto é, de linhas de fuga. Não há espaço para contradições. É um saber absoluto. E o trabalho é morto e alienado, submetido aos ditames da subalternidade. Destrói laços sociais através de seu discurso totalizador e absoluto. Despolitiza, entendendo político como uma dimensão da criação coletiva da vida social. Vende o consumismo do trabalhar, descarta o desamparo e inibe os processos criativos humanos. Estabelece metas desconectadas das condições humanas de trabalho e estimula a idealização da meritocracia e do empreendedorismo. Responsabiliza o trabalhador pelo fracasso e pelo seu próprio sofrimento.
Flash 2:
“sou obrigada a uma aglomeração no ônibus todo dia, não tem distanciamento. Uma ordem totalmente sem sentido do meu trabalho. Mas ninguém me ouve.”
Psicóloga, que trabalha numa ONG de atendimento de idosos. Eles são atendidos on line, mas os funcionários são obrigados a se deslocar até o trabalho para fazer o atendimento on line. Sem explicação.
Parece que o gestor não pensa ou finge que não pensa.”
“Agora o que eu penso, ele finge que não ouve.”
Flash 3:
“Não sei o que fazer com a minha colega professora que surtou ao ser cobrada pela dona da escola”
Fala de uma professora que não consegue trabalhar com crianças pequenas durante a pandemia e é cobrada pela dona da escola de uma maneira humilhante.
Como se dá a participação de trabalhadores na gestão? Como é possível construir um ambiente de reconhecimento da invenção e da improvisação necessária dos trabalhadores no seu ambiente de trabalho? Pela chefia e pelos próprios colegas? Como isto se dá antes e na pandemia?
Para Dejours, o trabalho é uma oportunidade de desenvolvimento contínuo da subjetividade. (Dejours 2012) Sendo assim o trabalho tem uma função central na vida dos sujeitos, que abrange diversas perspectivas: desde a permanente possibilidade de construção do psiquismo e da produção de subjetividade, passando pela ampliação das capacidades de ação, até a prática do viver junto e dos mecanismos coletivos que permitem seu exercício. Porém as reformas trabalhistas, implantadas a partir do neoliberalismo, destroem os pequenos avanços brasileiros que apoiavam os aspectos securitários, mas não só, o trabalho com cooperação, construção coletiva, reconhecimento da criação comum. Em outras palavras, e citando Dejours: “o neoliberalismo odeia cooperação e solidariedade”.
O modelo de gestão do trabalho que acompanha a uberização demonstra isso com clareza: você é empresário de si mesmo, isto é, o patrão não tem responsabilidade social com o uberizado.
Flash 4, de um filme:
Veja o filme de Ken Loach, Você não estava aqui (Sorry we missed you) (Loach 2019). Onde um desempregado, ex trabalhador da construção civil, Ricky, aceita um posto de motorista entregador em uma empresa de entregas da chamada nova economia. Sem qualquer vínculo empregatício, direitos trabalhistas ou qualquer outra garantia. Isto é, uberização. O filme mostra as consequências para a sociabilidade. Nele acompanhamos a aflição do ex operário buscando uma salvação para ele e sua família. Um diálogo do filme: Ricky diz querer trabalhar sozinho agora – “ser meu próprio chefe”. Não aceita o seguro-desemprego, sinal de fraqueza. “Prefiro morrer de fome.” O novo chefe gosta do que ouve e chama o operário de “guerreiro”. “Aqui você não é contratado, você embarca. Você não trabalha para nós, trabalha conosco. Presta serviço. Não temos contrato de emprego. Não há metas a cumprir, você alcança o padrão de entrega. Não há salários, há honorários. Você não bate ponto, fica à disposição. Você é senhor do seu destino, isso separa os perdedores dos guerreiros.” Um colega do novo trabalho se aproxima no primeiro dia e diz: “toma esta garrafa, você vai precisar para fazer xixi, pois não terá WC e nem tempo de procurar um.” E o carro para fazer entregas é do próprio funcionário. (Merlin 2018, Laborar 2020).
As plataformas definem o valor do pagamento e “só colocam em contato as partes interessadas”. Muitas vezes o uberizado nem conhece seu patrão imediato. É só um número na gestão. E não tem contato com colegas. Como o uberizado poderá se sentir parte de um coletivo criativo e ser reconhecido neste trabalho essencialmente morto?
Junta-se à uberização a crise pandêmica, levando a uma crise de um mundo que parecia imutável e que assegurava uma determinada ordem econômica, social, cultural e psíquica que se apresentava ou ainda se apresenta como natural e inquestionável. A sensação de incerteza e medo junto a nossa fragilidade humana questiona tudo. De um dia para o outro fomos empurrados para um outro mundo, com outros ritmos sendo impostos ao nosso corpo. Isso levou a uma fragmentação e até estilhaçamento do que, de maneira invisível em sua maior parte, nos sustenta, do nosso corpo, não só biológico, mas corpo emocional, erógeno, imaginário, simbólico, econômico, cultural, político. Todos estes diferentes corpos, segundo lógicas diferentes, constituem a nossa subjetividade. Assim, toda produção de subjetividade é corporal no interior de uma determinada organização histórico social. Este espaço de suporte intrassubjetivo, intersubjetivo, trans subjetivo, onde está a cultura e onde se assentam as trocas simbólicas e eróticas foi ou está profundamente abalado.
Na pandemia, o trabalho on line, ou teletrabalho, ou home office vem aparecendo em todas as áreas.
O home office já existia antes da pandemia, em menor escala.
Mas, na pandemia, transformou-se num laboratório de experimentação de práticas laborais ligadas às práticas de precarização que já vinham em plena implementação antes da pandemia.
Os ritmos corporais mudaram e a separação entre o que é profissional e o que é pessoal se borrou. Tudo é imprevisível e precisa ser muito pensado. Cansaço, angústia, tristeza e insônia se mesclam com prazeres novos.
Vivemos uma aceleração e compressão do tempo que tem nos levados a uma sociedade do cansaço. As novas relações flexíveis de trabalho promovem mudanças significativas em nossa sociabilidade, nossa forma de lidar com o tempo e com a autorreferência pessoal, tendo em vista que alteram a relação tempo de vida/tempo de trabalho. O tempo de vida é colonizado pelo tempo de trabalho. O trabalho morto comprime o trabalho vivo. A invasão da esfera da produção à da reprodução social tem demonstrado que, por exemplo, os limites entre os horários de trabalho ou lazer e as interrupções dos familiares sejam potenciais fontes de conflito, além da expectativa no/na teletrabalhador (a) de que assuma mais responsabilidades quanto às demandas domésticas, assim como, também, se acentuam as dificuldades no trato com as tecnologias. Uma recente pesquisa da Escola de Administração de Empresas da FGV (Fundação Getúlio Vargas) mostrou que 56% dos trabalhadores têm problemas para conciliar os dois universos. Lembrando que tudo isso se intensifica ainda mais quando falamos de mulheres nesta condição do chamado home office.
Para terminar, quero lembrar aqui que para a OMS e a OIT a Saúde Mental é um estado de bem-estar no qual o trabalhador:
Realiza as suas capacidades;
Pode fazer face ao estresse normal da sua vida;
Pode trabalhar de forma produtiva e frutífera;
Pode contribuir para a comunidade em que se inscreve.
Penso que esta consideração acima implica que o trabalho possa ser criativo e reconhecido como tal pelos seus pares de trabalho e na sua linha hierárquica.
Realmente um grande desafio para o nosso horizonte, como o título desta mesa afirma.
Referências:
Antunes, R. (2020). Coronavírus. O trabalho sob fogo cruzado. São Paulo, Boitempo.
Dardot, P. and C. Laval (2017). Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo.
Dejours, C. (2012). Trabalho vivo sexualidade e trabalho, Paralelo 15.
Dejours, C. (2012). Trabalho vivo trabalho e emancipação, Paralelo 15.
Laborar, P. (2020). Que trabaho é esse? IMDB.
Laborar, P. (2020). Que trabalho é esse. Spotyfy.
Loach, K. (2019). Sorry we missed you.
Mendes, A. M. (2018). Falar, desejar e trabalhar. Porto Alegre, Editora Fi
Merlin, N. (2018). "La colonização de la subjetividade." 2018, from YouTUBE.
POTENCIALIZAR A SAÚDE MENTAL NO AMBIENTE DE TRABALHO:
UM DESAFIO PARA O SÉCULO XXI
Eliana Pintor[3]
O tema foi desenvolvido a partir da reflexão da importância central do trabalho na vida contemporânea, sua potencialidade para desenvolver a saúde quando a criatividade, a autonomia e a dignidade constituem aspectos relevantes da configuração das atividades laborais. Foram apresentados dados da OPAS- Organização Pan-Americana da Saúde - sobre o impacto negativo dos transtornos mentais nas Américas, como também o aumento dos investimentos de algumas empresas em torno do tema Saúde Mental e trabalho. No Brasil apenas 48% das empresas fazem este tipo de investimento quando a média mundial é de 78%. Foram apresentados fatores que contribuem para o sofrimento e possível adoecimento psíquico relacionado ao trabalho, passando pelos sofrimentos agregados pelo atual momento pandêmico. O ambiente de trabalho foi apresentado como um microcosmo que contém tudo o que acontece no macrocosmo, portanto requer regulação e responsabilidade das empresas para que racismo, machismo, homofobia e outros tipos de preconceitos ou discriminações não encontrem espaço para manifestações no ambiente de trabalho. Entre as violências recorrentes destacou-se o assédio moral e sexual com dados de pesquisas demonstrando maior prevalência entre as mulheres, além dos prejuízos que estas práticas acarretam para as empresas. Por fim buscou-se chamar a atenção para a criação de uma ambiência saudável e sustentável para a ecologia humana, com especial atenção para os cuidados com a organização do trabalho, tais como: respeitar os limites humanos, estimular a cooperação, a solidariedade, o apoio técnico e afetivo. A cultura organizacional pode ser força motriz para a saúde e desenvolvimento das habilidades e realizações humanas.
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[1] Mesa redonda junto com Eliana Pintor, docente do curso de aperfeiçoamento “Saúde Mental Relacionada ao Trabalho” do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Psicodramatista, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] Docente do curso de aperfeiçoamento Saúde Mental relacionada ao trabalho do Instituto Sedes Sapientiae.