boletim

INFORMATIVO ONLINE SOBRE AS ATIVIDADES DO DEPARTAMENTO
PSICANÁLISE COM CRIANÇAS DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

 
ANO VII | Número 13 | edição agosto a dezembro de 2020  
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  Quem tem a cor?
Juliana Pires de Campos Pedroso1
   

 

Antes da pandemia, Ana2, uma menina de 6 anos, vivia na análise muitas aventuras, através de seus desenhos e histórias que se transformavam em livros ilustrados com muito capricho e beleza.

Na maioria das vezes, a personagem principal de suas histórias morava num lugar bucólico, repleto de animais e natureza. O colorido de seus desenhos me chamava a atenção, sempre com borboletas, e sua personagem brincava sozinha, rodeada por animais e pela beleza do ambiente, como se nada faltasse.

Porém, a realidade de Ana era bem diferente de suas histórias ficcionais: ela tem uma irmã gêmea idêntica, a Lívia, e uma irmã 3 anos mais nova, a Julia, ou seja, estar sozinha não era algo experimentado em seu mundo externo. Ela e sua irmã gêmea sempre estudaram juntas e faziam as mesmas atividades extracurriculares.

Veio a pandemia e o setting analítico mudou, passou a ser a sua própria casa, e Ana continuou a desenhar em nossas sessões online, revelando o que se passava em seu mundo interno e externo, atravessado mais intensamente por seu ambiente familiar.

Certo dia, sua mãe me liga contando sobre um incidente com a cachorrinha da família, que havia sido atropelada na frente das gêmeas e não sobreviveu. Ela me pede para atender a Lívia também, foi então que sugeri uma sessão com as duas meninas.

Em nossa primeira sessão conjunta, Ana logo decide o que vão fazer primeiro: desenhar. Elas começam a organizar o espaço, o papel e as canetinhas que cada uma usará. Na sessão, o meu campo visual para enxerga-las do outro lado da tela era muito restrito, apenas a Ana aparecia; sem conseguir ver a Lívia, peço que elas modifiquem a posição do tablet para que eu as veja melhor.

Assim que começam a desenhar, as duas espiam discretamente o papel da outra, e eu me pergunto: Será que farão um desenho parecido? Esta tarefa de estar do outro lado da tela não é nada fácil, é preciso sustentar ficar do lado de fora.

E as duas ficam ali entretidas com seus desenhos, revezando o uso das canetinhas e o espaço, com aparente sincronia. Digo que estou curiosa para ver o desenho delas. Ana então me mostra o que está desenhando: um trem em que cada vagão é representado por uma forma geométrica e uma cor diferente; pergunto sobre as rodas do trem, ela diz que são como as do carro, pois não andam sobre trilhos, podem ir para qualquer direção.

 Chega a vez de Lívia, que me mostra o seu desenho: duas árvores, uma de cada lado da folha, com uma fada colorida em uma árvore e uma fada sem cor na outra. Antes da explicação sobre seu desenho, achei que eram borboletas, como os desenhos de Ana no início da análise, e depois Lívia complementa:

- Essas fadas são irmãs, a colorida é a fada boa, e a sem cor é a fada má.

Nesse momento, Ana, que estava terminando o seu desenho, parou e olhou rapidamente para o desenho da Lívia com uma certa tensão que tentou disfarçar.

O que Lívia estava dizendo com esse desenho? Quem seria a fada boa e a fada má? Seria a representação imaginária de complementariedade da dupla gemelar?

Pergunto para Lívia por que a fada sem cor é má, e ela responde:

- Porque ela faz coisas ruins.

 Então, digo que talvez a fada má também faça coisas boas, afinal ela é uma fada. Lívia concorda comigo e começa a fazer com que a varinha da fada colorida levasse cor até o outro lado da folha.  

Lívia parece falar de uma cisão entre o bem e o mal que está representada nas gêmeas. Pergunto-me, a partir daí: será que Ana representa a fada má sem cor? Será que é por isso que seus desenhos são tão coloridos? Será que a personagem de suas histórias, ao brincar só, não corre o risco de ficar sem cor?  Afastada do lugar de desejo de seus pais?

Em outras sessões, percebi que Ana se sentia ameaçada na presença de Lívia, fazendo um enorme esforço para se destacar, para vencer nos jogos, para ter cor, para ser exclusiva. Até que um dia ela não aguentou mais e pediu que Lívia não participasse de suas sessões, queria continuar suas aventuras sozinha na análise, como o trem colorido que não anda nos trilhos, e sim escolhendo outras direções.

O desafio é que Ana e Lívia possam ser inteiras e únicas, juntas ou separadas, sem ficar aprisionadas à ideia da complementariedade e ao discurso do Outro.

 

1 Juliana Pires de Campos Pedroso Aluna do 4 ano de Formação em Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Realizou aperfeiçoamento em Relação Pais-bebê: da observação à intervenção do Instituto Sedes Sapientiae. Mestrado em Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP. Participante do Grupo de Pesquisa Clínica sobre Gêmeos do Instituto Sedes Sapientiae/USP.

2 Os nomes citados neste texto são fictícios.

 
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