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INFORMATIVO ONLINE SOBRE AS ATIVIDADES DO DEPARTAMENTO
PSICANÁLISE COM CRIANÇAS DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

 
ANO VII | Número 13 | edição agosto a dezembro de 2020  
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  Incidências do racismo na clínica com crianças e adolescentes do SUS
Alessandra Barbieri
   

 

Sustentar“É possível a existência da infância para a população preta?”

 “Na política pública, há lugar para os espaços de cuidado antirracista com relação às pessoas a quem é negada a possibilidade de existência enquanto sujeitos dentro do que entendemos como infância?”

“Como sustentar a ética antirracista na rede?”

“Pode a Psicanálise, a partir de seus constructos, dar conta da produção de sofrimento psíquico articulado às questões raciais?”

Colhi esses questionamentos contundentes e provocativos, durante as quase duas horas e meia de um encontro online, proporcionado pelo Sustentar1, na noite de 10 de dezembro deste ano, em que 44 participantes se juntaram para conversar e debater o tema do racismo na infância e as políticas de saúde mental. Na tela, além dos membros do Sustentar, Emiliano2 David (comentador convidado), que tem ocupado um lugar de destaque nas discussões acerca da saúde mental e racismo, representantes do A Cor do Mal Estar: Psicanálise e Racismo (grupamento do Departamento de Psicanálise), trabalhadores do SUS, colegas psicanalistas de outras instituições e membros do Departamento. O resultado foi uma potente e animada roda de trabalho em torno de questões que urgem serem pensadas no meio psicanalítico, mas também na instituição como um todo.

Iniciamos com a breve leitura de fragmentos de dois casos atendidos nos Capsij por integrantes do Sustentar, e que foram supervisionados no grupo do Departamento. Nesses breves relatos, que serviram menos para serem discutidos em si, e mais como disparadores para as reflexões construídas durante o evento, escutamos um cotidiano de sofrimento psíquico atravessado pelo racismo estrutural impregnado em nossas instituições, e que perpassa os processos de subjetivação em nosso país.

Em seguida, Emiliano nos trouxe, logo de cara, uma contribuição bastante fértil para quem pensa a criança e seu entorno: a expressão “criançável”, em referência ao conjunto de coisas que dizem respeito ao que as crianças fazem enquanto crianças3, ao que lhes é próprio, ao qual as crianças têm direito porque são crianças. Pois bem, de acordo com ele, o racismo na infância e na adolescência tem o poder de desaliançar o criançar. Isso acontece geralmente quando os pais, ou responsáveis, na tentativa de proteger as crianças das ameaças que o racismo produz, pautados pela ética de um cuidado amoroso, alertam uma criança para que não corra se vir um carro da polícia; para que não use boné ou toca, mesmo em um dia de muito sol, ou de frio, para não ser confundido com um “maloqueiro”, na palavra dos pais. São orientações “descriançáveis”, diz ele, com o intuito de preservar a vida. E aí está a contradição: por causa da ameaça à vida,  quebra-se a aliança com aquilo que é próprio dos pequenos e perde-se a infância. A incompatibilidade do “criançável” com o racismo causa uma série de questões psicossociais, gerando consequências como a evasão escolar, a ampliação e intensificação do trabalho infantil, uma maior exposição de crianças e adolescentes à situação de rua e à exploração sexual, uma vulnerabilidade maior em relação ao estado penal. 

Emiliano chama a atenção, principalmente, para o racismo institucional, lembrando que, ao mesmo tempo que uma criança está em pleno processo de institucionalização, nos espaços da família, da escola, da religião, do bairro, ela sofre exatamente da forma como se estruturam esses lugares, sendo a escola, no seu intuito padronizador, o lugar privilegiado de práticas que institucionalizam o racismo, o que é bastante grave.

Ele finaliza sua exposição com propostas de trabalho na infância4 que crê poderem ser absorvidas pela Psicanálise e pelo campo psicossocial. A primeira delas propõe uma relação de lateralidade para com a criança, e retoma o jogo do rabisco de Winnicott: assim como uma criança não desenha sozinha, não tem como alguém vivenciar situações de racismo sozinho, mas sempre em relação. Sendo o racismo uma relação de poder, se o semelhante se põe “ao lado”, “fazendo junto”, está tomando uma posição antirracista. E aqui ele traz um recado especial para o psicanalista, que, muitas vezes, em uma posição equivocada do seu fazer, produz ações no sentido de significar o outro, dizendo o que ele “é” (e não se pondo “ao lado de”). O racista, por sua vez, olha para o outro e diz o quê ou quem ele é: o que seu cabelo é, o que seu corpo é, se pode ou não exercer determinada profissão, se pode ou não ter determinado comportamento. Assumir a posição de “estar ao lado” exige um esforço por parte do adulto, assim como nas relações raciais, a dificuldade de lateralizar é do branco.

A segunda proposta é a regra do bilinguismo, ou do multilinguismo, fazendo referência também à noção de confusão de línguas, de Ferenczi. Emiliano afirma que as relações raciais exigem sustentar uma certa confusão de línguas, afinal trata-se de linguagens diferentes que têm que conviver lado a lado. Aqui, diz que se queremos uma sociedade antirracista, o conflito é inevitável, já que a universalidade não existe. E o risco de que haja uma hierarquia entre as linguagens nas relações inter-raciais é grande e se apresenta a todo o momento.

Os demais tomaram a palavra, dando testemunhos do vivido na pele ou nos atendimentos institucionais que realizam cotidianamente, perfazendo a roda de trabalho, ainda que virtualmente. Escutamos falas sobre como a escola é ferramenta do racismo; sobre a retraumatização das crianças negras, nos vários espaços que frequentam; sobre como o racismo rouba a possibilidade das crianças negras de serem crianças, fazendo com que tenham que se adultizar mais cedo que as demais; sobre a necessidade de se construir representatividade da negritude para que as crianças pretas possam se sentir à vontade com sua estética e sua cultura; sobre a luta antimanicomial como lugar imprescindível de sustentação da ética antirracista; sobre a importância de se sustentar o mal estar ao discutir o racismo estrutural e institucional entre psicanalistas e dentro da instituição Sedes Sapientiae; sobre a importância das cotas como mecanismo de transformação do que temos ainda hoje.

Só temos a agradecer ao Sustentar pela coragem e empenho em trazer para o Departamento essa discussão que já fervilha há tempos em outros âmbitos. Fazemos votos para que encontros assim tragam, mais que constatações sérias e entristecedoras, uma movimentação genuína e concreta das instituições e de seus atores, na direção de cuidados antirracistas efetivos.

Para falar com o Sustentar: sustentar.redepublica@gmail.com

Sustentar

 
 

1 Sustentar é um grupo de trabalho do Departamento que oferece um espaço de supervisão e estudo do atendimento a crianças na saúde mental do SUS.
Composição atual do Sustentar:
Coordenação: Adela Stoppel de Gueller e Luciana Pires
Participantes: Sthefânia Carvalho, Diego, Fontana, Julia Joia, Priscyla Okuyama, Marina Rodrigues

2 Emiliano de Camargo David é psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia Social (PUC-SP), professor do curso Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica: Clínica e Política na Transformação das Práticas, do Instituto Sedes Sapientiae, membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC-PUC SP).

3 Emiliano refere que essa expressão é trabalhada por Maria Cristina Vicentin, Professora Doutora da Pós Graduação em Psicologia Social da PUC-SP, que discute há muito tempo a infância e a adolescência no âmbito público da saúde mental.

4 Novamente ele toma emprestadas as pistas de trabalho de Maria Cristina Vicentin e as cita em sua fala.

 
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