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Resumo
QUANDO A REALIDADE INVADE A FANTASIA...
Autora: Cassandra Pereira França
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP; Pós-Doutoranda da PUC/SP;
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais; Professora do Mestrado em Psicologia da UFMG. Coordenadora do
Projeto CAVAS da UFMG Projeto de pesquisa e extensão com crianças e adolescentes
vítimas de abuso sexual.
O encontro nefasto entre o desejo edipiano da criança e a invasão do desejo
perverso do pai constitui-se numa situação dramática que cancela a função
simbólica do Édipo: tanto a de canalizar um desejo transbordante, quanto a de
promover o coroamento do domínio psíquico da angústia de castração. Nas
situações de incesto, as figuras objetais primárias deixaram de exercer a
função de anteparo de excitação (que ajuda a criança a só receber os estímulos
externos que é capaz de integrar) e, pior ainda, passaram a invadir a
prematuridade psíquica da criança com estímulos eróticos e atos sexuais que
além de provocar um transbordamento pulsional, geram uma angústia não passível
de metabolização por estar muito acima dos níveis que o aparelho psíquico de
qualquer criança pode suportar.
Sabemos que durante o complexo de Édipo, é possível localizar no psiquismo da
criança fantasias que expressam claramente o desejo incestuoso e a sua sonhada
realização. No entanto, o que esse complexo fantasmático não pode descortinar é
que o objeto sobre o qual incide, tão fortemente, é alguém que desconhece a
hierarquia dos estágios libidinais, e tem um psiquismo que opera dentro das
raias da patologia da recusa, e por isso mesmo ainda não se subordinou à
realidade da castração. Para sua surpresa, quando menos esperar e estiver
sozinha, indefesa , haverá um desequilíbrio de forças e o incesto acontecerá.
A criança que sequer sabia que seu corpo lhe pertencia, e nem imaginava aonde as
carícias poderiam conduzir, só irá sentir dor e confusão mental. Quem pretendia
ser a namoradinha do papai, caiu numa armadilha, tornou-se prisioneira de um
segredo que comprometerá toda sua vida fantasmática. Está agora no lugar do
próprio Édipo: o pai está morto em sua função paterna, pois, além de não ter
conseguido interditar os anseios edípicos da criança, não funcionou como
para-excitações e nem garantiu o interdito cultural do tabu do incesto.
É exatamente por não ser possível configurar um Complexo de Édipo com aquele
par parental que deixou a realidade invadir todo o campo fantasmático da
criança, que a psicanálise terá uma tarefa profilática a oferecer a seu pequeno
paciente: recuperar a sua capacidade de fantasiar, e assim usá-la para
expressar os seus mais recônditos desejos. A relação transferencial permitirá
não apenas reviver as experiências traumáticas, mas também experienciar um novo
roteiro edipiano, reinstalado graças à pré-determinação a que obedece essa
trama: a análise naturalmente facilitará a criação de um novo par parental,
constituído pela figura do analista e de seu possível companheiro. Só que dessa
vez, a reedição do desejo edipiano encontrará a interdição do adulto, o que
reorganizará a angústia da criança e selará a Lei da castração, criando assim
uma via de esperança que poderá alterar o destino funesto da compulsão à
repetição de jogar essa criança na perversão, através da identificação com seu
agressor, permitindo a ela que possa, a seu modo, recitar as palavras de
Clarice Lispector: E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da
noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
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