Resumo
UMA REFLEXÃO SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA, INSPIRADA PELA LEITURA
DO LIVRO "CORALINE" DE NEIL GAIMAN
Autora: Luciana Pires (USP)
Psicóloga, psicanalista, especialista em psicanálise com crianças e
adolescentes pela Tavistock Clinic, mestre e doutoranda pelo Instituto de
Psicologia da USP e autora do livro "Do Silêncio ao Eco: Autismo e Clínica
Psicanalítica", pela Edusp.
Slavoj Zizek afirma que vivemos na atualidade sob a ordem tirânica da moral
do gozo, onde o prazer se transformou em um dever. Diz o filósofo e
psicanalista que um paciente típico de hoje em dia sente uma ansiedade
profunda não por que ele tenha prazeres ou desejos proibidos, que violam as
proibições da sociedade – como na época de Freud –, mas, ao contrário, por não
conseguir ter prazer.
Qual influência essa moral do gozo teria sobre a família e a criança na
contemporaneidade? Fomos despertados para esse questionamento a partir da
análise do livro Coraline de Neil Gaiman. Encontramos nesse livro um retrato
do lugar da família contemporânea, fortemente atravessada pelo ideário
midíatico do mais gozar e da valorização da medida técnica do contato,
apoiada na prática especialista.
Munido de uma particular visão crítica do mundo que apresentamos às nossas
crianças hoje em dia, Gaiman cria Coraline. Nessa história, vemos a personagem
Coraline, uma menina de 10 anos, meter-se numa arriscada aventura num mundo
onde vivem uma outra mãe e um outro pai , representantes estereotipadamente
felizes e prazerosos de seus pais verdadeiros.
Deles, ao longo do livro, encontramos descrições dignas de vinhetas
propagandísticas: Seus outros pais ficaram em pé no vão da porta da cozinha,
sorrindo sorrisos idênticos e acenando lentamente com as mãos ; Seus outros
pais aguardavam-na no jardim, em pé, um ao lado do outro. Sorriam . E esses
outros pais lhe propõem: – E aí, ficaremos todos juntos como uma grande
família feliz. (...) Para sempre. Sua outra mãe construirá mundos inteiros
para você explorar e rasgar a cada noite quando tiver acabado. Cada dia será
melhor e mais brilhante do que o anterior. Lembra-se da caixa de brinquedos?
Não seria melhor o mundo construído daquele jeito e somente para você?
Mas Coraline identifica algo de mortífero nessa tentadora proposta e a recusa.
Então começa sua aventura para se livrar desse outro mundo e recuperar seus
pais verdadeiros desaparecidos. Tal qual a tentação da casa de doces da bruxa
de João e Maria, o canto da sereia da outra mãe ameaça fazer da criança presa
de um discurso de êxtase em uma espécie de Show de Truman infantil.
Nossa reflexão se desenvolverá nas injunções da moral do gozo sobre os modelos
de parentalidade e infância na contemporaneidade, tendo como pano de fundo o
livro de Gaiman e em articulação com autores da psicanálise.
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