Os Profissionais de saúde mental e os psicanalistas associados ao Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública, por meio deste manifesto, dirigem-se ao público em geral com o intuito de divulgar e afirmar o lugar das práticas psicanalíticas e sua posição ética frente ao panorama atual das políticas públicas dirigidas ao tratamento das pessoas com autismo e suas famílias.

1       A psicanálise dedica-se ao tratamento da pessoa com autismo em um trabalho que excede em muito a intervenção em consultórios particulares, desdobrando-se em instituições públicas de saúde e educação como UBS (unidades básicas de saúde), CAPS, clínicas de atendimento ambulatorial universitárias, ONGS, hospitais, instituições terapêuticas, creches, escolas e abrigos, nos quais diversos profissionais intervêm com um referencial psicanalítico no atendimento daqueles que se apresentam no chamado “espectro autístico”.

2       A formulação das políticas públicas deve considerar a urgente necessidade de ampliar a rede de serviços implicadas na saúde mental infantil, com foco no cuidado com as pessoas com autismo e suas famílias no SUS, e colocar a Saúde Mental Infantil na agenda de prioridades das Políticas Públicas.

3       Nesse sentido, o Movimento apoia a implementação efetiva da Linha de Cuidado para Atenção às Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde.

4       O valor do conhecimento da psicanálise e seus efeitos nesse campo são comprovados pelas inúmeras publicações (artigos, dissertações, teses e livros) realizadas ao longo do tempo de sua práxis com a pessoa com autismo (mais de 70 anos), das quais sua elaboração teórica é uma consequência. Isso possibilita uma transmissão que se realiza em instituições de psicanálise e que se ensina como conhecimento no âmbito universitário.

5        As intervenções psicanalíticas ocorrem de acordo com o princípio de que as políticas públicas de saúde e educação devem considerar três dimensões no atendimento à população: física (orgânica), mental (psíquica), social (cidadania) e temporal (desenvolvimento).

6       Devido à complexidade desse quadro, o tratamento na saúde e a inserção na educação da pessoa com autismo exige um atendimento interdisciplinar e intersetorial, do qual a psicanálise faz parte. Considera-se que os sintomas e os impasses na estruturação da realidade psíquica e corporal no autismo têm repercussão na saúde, na educação e na socialização das crianças autistas.

7       O sintoma é considerado pela psicanálise como um modo que a pessoa autista tem de estar no mundo, e por isso partimos dessa produção para a intervenção.

8       O objetivo geral da psicanálise com sujeitos autistas é o de minimizar suas angústias, ampliar suas capacidades de aprendizagem, permitir que eles encontrem prazer nas trocas emocionais e afetivas e proporcionar uma ampliação de seu campo de escolha, bem como de sua possibilidade de aumentar suas redes de relacionamento, com maior qualidade nas trocas com os outros, valendo-se de recursos simbólicos possíveis que lhe possibilitem usufruir o máximo de sua convivência com os demais.

9       O Movimento sustenta e recomenda a inclusão de crianças com autismo em escolas regulares sempre que possível (como opção prioritária), contando com uma rede de apoio interdisciplinar e intersetorial que articule o diálogo entre saúde e educação, a fim de considerar as possibilidades e as dificuldades singulares de cada criança. A inclusão implica um projeto educacional para que a criança participe, aprenda de acordo com as suas possibilidades e se integre às atividades escolares.

10     Deve-se reconhecer a criança como cidadão com pleno direito de acesso a toda forma de tratamento para seu sofrimento.

11     É decisiva a intervenção junto à família, acolhendo suas preocupações, reflexões, angústias, a fim de, junto com ela, ir estabelecendo as possibilidades e dificuldades do paciente.

12     O Movimento considera que as famílias das pessoas com autismo devem ter o direito de escolher as abordagens de tratamento para seus filhos.  Principalmente porque o debate permanece em aberto na comunidade científica, não considerando como eficaz um único método de intervenção em detrimento dos outros. Para tanto, as famílias devem ter acesso às informações acerca das abordagens de tratamento.

13     Por isso, restringir o tratamento de pessoas diagnosticadas no espectro do autismo à utilização de uma única metodologia (como têm se proposto algumas medidas públicas apoiadas em argumentos falaciosos de cientificidade) representa um retrocesso terapêutico e científico em um campo no qual tem se revelado que só é possível avançar por meio da complexidade.

14     É preciso que a saúde mental seja exercida levando em consideração as diferentes concepções de psicopatologia que há na atualidade.

15     Alertamos para o fato de que não pode haver no campo da saúde mental um reducionismo dogmático que ignore a complexidade do sofrimento psíquico, pretendendo instaurar uma única forma de abordagem hegemônica diante dele.

16     O DSM apresenta uma das concepções de psicopatologia. Nele, o sofrimento psíquico é subordinado a princípios organicistas, é reduzido a um catálogo de sintomas, e os atendimentos que se orientam por ele fazem um fast check-list que tem levado a uma patologização e a uma medicalização excessiva da infância e da adolescência.

17     O Movimento apoia e recomenda vivamente a pluralidade, a diversidade e o debate, científico e metodológico, das abordagens de tratamento da pessoa com autismo e também nos critérios diagnósticos empregados em suas avaliações.

18     Quanto à etiologia (causa) do autismo, as descobertas da neurologia, genética e psiquiatria, tem encontrado algumas correlações entre certas patologias orgânicas e quadros de autismos, mas não uma única causa que permita centrar seu diagnóstico em exames laboratoriais ou seu tratamento em soluções medicamentosas.

19     Sendo um quadro que se apresenta pela dificuldade que a pessoa autista tem em se relacionar com os outros, mesmo com aquelas pessoas mais implicadas em seus cuidados, há consenso quanto à necessidade de intervir nessa possibilidade de relação. A psicanálise contribui nesse campo porque propõe formas de intervenção na constituição psíquica e no estabelecimento da relação com os outros.

20     A prática psicanalítica revela a importância de realizar uma intervenção precoce diante de sinais de risco para o desenvolvimento infantil, para que se possa intervir antes que o quadro psicopatológico encontre-se configurado.

21     A detecção precoce de sofrimento em bebês e sua intervenção é indicada na atenção primária.

22     Apoiamos a sustentação de redes intersetoriais (com a presença dos setores da saúde, da educação, da assistência social, do direito e da justiça) que considerem as diferenças territoriais e locais, bem como a sustentação dos projetos particulares e inovadores que vêm surgindo a partir delas. Por isso, os tratamentos em centros especializados de saúde e de educação por patologia, não devem ser prioritários.  Nesse sentido, apontamos a necessidade de trabalhar pela priorização e implementação de diretrizes que regem o atendimento em CAPSI-s que colocam em primeiro plano para a sua intervenção, não o quadro psicopatológico específico, mas a aposta na constituição na infância e o trabalho interdisciplinar, territorial, intersetorial.

23     Consideramos importante que todas as leis/portarias no âmbito das políticas públicas que normatizem a respeito da prática social com o autismo não devam prescindir de uma discussão que inclua os vários profissionais representativos desse campo.

24     Finalmente, os profissionais apontam que, em grandes linhas, o diagnóstico e o tratamento psicanalítico do autismo (dando ênfase àquele que é oferecido nos equipamentos de saúde pública) têm como objetivo geral:

– possibilitar as aquisições da pessoa com autismo, considerando sua singularidade e a ampliação de seu campo de interesses, possibilitando-lhe uma extensão de suas relações.

– acompanhar e acolher a família, considerando-a como parceira fundamental no tratamento.

Diante da importância de tratar e educar crianças e adultos com autismo de uma perspectiva que leve em conta a singularidade de seu sofrimento, o Movimento indica como fundamentais as seguintes ações na saúde pública:

  1. Ampliação do campo da detecção e da intervenção precoces diante de sinais de risco para o desenvolvimento infantil nos equipamentos públicos de saúde, educação e assistência social.
  2. Investimento na formação e capacitação de profissionais, na disseminação de conhecimentos, instrumentos e estratégias clínicas de detecção e intervenção precoce, com ênfase na atenção primária de saúde.
  3. Fortalecimento, nos serviços de saúde e educação, de perspectivas de atendimento que levem em conta a importância do estabelecimento do vínculo da pessoa com autismo com os outros.
  4. Disseminação dos conhecimentos a respeito da multicausalidade do autismo e ampliação do debate sobre a prevalência do diagnóstico em exames laboratoriais e de seu tratamento medicamentoso, denunciando a criação de falsas epidemias (como a multiplicação do diagnóstico de autismo na atualidade).
  5. Preservação, sem exclusão de nenhuma delas, das  quatro dimensões que devem estar igualmente presentes no atendimento da pessoa com autismo: física (orgânica), mental (psíquica), social (relativa à cidadania) e temporal (a perspectiva do desenvolvimento).
  6.  Adoção de  projetos terapêuticos singulares (PTS), bem como o acolhimento e o acompanhamento implicados (formulados pelo Ministério da Saúde em 2005).
  7. Apoio à implementação efetiva da Linha de Cuidado para Atenção às Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde.
  8. Sustentação e ampliação de redes intersetoriais e interdisciplinares de tratamento (com a presença dos setores da saúde, da educação, da assistência social, do direito e da justiça) que considerem as diferenças territoriais e locais, bem como a sustentação dos projetos particulares e inovadores que vêm surgindo a partir delas.

Desta forma, os signatários desta Carta de Princípios vêm a público para esclarecer as contribuições da psicanálise para o tratamento da pessoa com autismo, para o acolhimento de seus familiares e para a elaboração de políticas públicas no âmbito clínico, educacional e social.

Informações: http://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/about/

Instituições participantes

Universidades:FEUSP,FMUSP, Grupo de estudo sobre a criança (e sua linguagem) na clínica psicanalítica – GECLIPS/UFUMG, IPUSP, PUC /RJ, Psicologia PUC /SP, Fono PUC/SP, UERJ, UFBA – ambulatório infanto-juvenil da Residência em Psicologia Clínica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira/UFBA-SESAB, UFMG Laboratório de Estudos Clínicos da PUC Minas, UFPE, UFRJ, UFSM, UnB, Unesp Bauru, UNICAMP, Univ. Católica de Brasília, Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP, Centro de Referência da Infância e da Adolescência – CRIA/UNIFESP, DERDIC/PUCSP, Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG), UNIFOR. Instituições de Psicanálise: ALEPH – Escola de Psicanálise, Associação Psicanalítica de Curitiba- APC, Circulo Psicanalítico MG – CPMG, Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPP, EBP (Escola brasileira de psicanálise), Escola Letra Freudiana, Espaço Moebius/BA, Laço Analítico, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL-Brasil), Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo (FCL-SP), Rede de Pesquisa sobre as Psicoses do FCL-São Paulo, Rede Brasil Psicanálise Infância/ FCL, IEPSI, Associação Psicanalítica de Porto Alegre -APPOA, Instituto APPOA, IPB ( instituto de psicanálise brasileiro), Intersecção Psicanalítica do Brasil, Grupo que estuda a clinica com bebês e as intervenções precoces da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Grupo de Estudos e Investigação dos TGD da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES), Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto SEDES, Departamento de Psicanálise de Crianças do Instituto SEDES, Curso de Psicossomática Psicanalítica do Instituto SEDES, Núcleo de Investigação Clínica Hans da Escola Letra Freudiana, Sigmund Freud Associação Psicanalítica/RS, GEP/Campinas, NEPPC/SP, Instituto da Família –IFA/SP, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Invenção Freudiana – Transmissão da Psicanálise. Centros de atendimentos não governamentais: Ateliê Espaço Terapêutico/RJ, Attenda/SP, Centro de Atendimento e Inclusão Social, CAIS/MG, Carretel – Clínica Interdisciplinar do Laço/SP, Carrossel/BA, Centro da Infância e Adolescência Maud Mannoni CIAMM, CERSAMI de Betim, Centro de Estudos, Pesquisa e Atendimento Global da Infância e Adolescência – CEPAGIA/Brasília/DF, Clínica Mauro Spinelli/SP, Clube/SP, CPPL – Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem de Recife – CPPL, Escola Trilha, ENFF, Espaço Escuta de Londrina, Espaço Palavra/SP, GEP-Campinas, Grupo Laço/SP, Grupo de Pesquisa CURUMIM do Instituto de Clínica Psicanalítica/RJ, Incere, Instituto de Estudo da Familia INEF, Insituto Langage, Instituto Viva Infância, LEPH/MG, Lugar de Vida, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre, NIIPI/BA, NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos, NÓS – Equipe de Acompanhamento Terapêutico, Projetos Terapêuticos/SP, Trapézio/SP, Associação Espaço Vivo/RJ. Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae/SP. Centros de atendimentos do governo: Caps Pequeno Hans/RJ, Capsi Guarulhos/SP, Capsi-Ipiranga/SP, Capsi-Lapa/SP, Capsi Mauricio de Sousa/Pinel-RJ, Capsi Mooca/SP, CAPSI-Taboão/SP, CAPSI de Vitória, CARM/UFRJ, NASF Guarani/SP, UBS Humberto Pasquale/SP, Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica – COMPP/SES-DF, Capsi COMPP/SES-DF, Capsi Campina Brande/PB. Associações:ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê, ABENEPI/Maceió, ABENEPI/RJ, ABENEPI/BSB, Associação Metroviária do Excepcional AME, Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, CRP/SP (conselho regional de psicologia). Hospitais: Centro Psíquico da Adolescência e Infância da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (CePAI/FHEMIG), CISAM/UPE – Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros – Universidade de Pernambuco, HCB (Hospital da Criança de Brasília), Serviço de psicossomática e saúde mental do Hospital Barão de Lucena -HBL/ Recife, Hospital Einstein, IEP/HSC Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de Santa Catarina, Hospital Pinel, Hospital das Clínicas – Universidade de Pernambuco. Revista: Revista Mente e Cérebro. Grupo de pesquisa: PREAUT BRASIL, Grupo de pesquisa IRDI nas creches.