"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."
(Rosa, 1956)
O relógio marca 19h15min de uma segunda-feira cinza e chuvosa. Dia longo e muito, muito cansativo. Espero o último paciente do dia, o Thor. Inusitado o nome, não? Também achei. Passado esse um ano de análise, confesso que já me acostumei e hoje acho que ele "incorpora" bem o nome, mas, no início, sempre que eu falava seu nome, atravessava-me a figura do personagem da Marvel. Ele me conta que foi escolha do seu pai e, sim, foi por causa do personagem. Conta que seu pai queria para o primeiro filho a "bravura" e a "realeza" desse "deus-super herói". O pai é fã das histórias em quadrinhos da sua época, mas também o reconhecia como "deus" na mitologia.
Thor é filho de pai brasileiro e mãe norueguesa. Sua mãe nasceu na Noruega, mas chegou ao Brasil com apenas dois anos de idade, por conta da profissão do seu pai, que veio passar cinco anos em um projeto no interior do estado e nunca mais voltou à sua terra natal. Tem traços nórdicos, apesar de ser relativamente "pequeno", mas orgulha-se muito do seu "colorido". Thor é muito vaidoso.
Como de costume, ele chega pontualmente e, dando boa-noite, já se senta afobado na poltrona, que fica disposta levemente à minha esquerda, no lado oposto do divã, que fica à minha direita, de frente para a janela. (Thor não tem a menor simpatia pelo divã...) Põe a almofada de apoio no colo e, segurando seus penduricalhos, sempre começa falando que precisou correr muito para chegar no horário. (Thor é executivo em uma grande empresa de engenharia, e seu escritório fica dois prédios depois do meu consultório). Ele sempre barganha o horário e, sessão sim, sessão não, diz: "bem que você podia me atender mais tarde". Lembro-lhe que esse é o meu último horário do dia ou, simplesmente, apenas escuto.
Thor tem 39 anos e, desde muito jovem, destaca-se em tudo que se propõe a fazer. Refere ter sido ótimo aluno sem precisar estudar muito. Foi atleta de natação e chegou a ser campeão interclubes no seu estado. Diz nunca ter tido dificuldades para socializar (é um homem muito bem cuidado, com certo porte atlético, cabelo e pele claros e uma voz bem impostada).
Procurou análise por insistência da namorada, que diz não suportar mais seus ciúmes.
Thor e Amora namoram há cerca de dois anos. Já terminaram algumas vezes, e ele sempre a convence a voltar.
A vida amorosa de Thor sempre foi muito intensa, mas também muito instável; seus relacionamentos eram feitos no impulso, como ele diz, um apaixonamento que geralmente não "rompia a barreira do segundo mês". Diz que ou perdia o interesse ou achava que estava se apegando "além do programado", e isso era o sinal de que estava na hora de "vazar". Conta que nunca acabava "mal", deixava sempre uma porta aberta, caso precisasse de "sexo". Sua agenda era cheia de "ex" amigas.
Chegou a casar logo depois que se formou. Ela era sua colega de turma e eles ficavam sempre, até que ela o pediu "em namoro". Thor conta que ela não era muito atraente, e isso o deixava "confortável". Achou então que seria bom, porque, apesar de não ser bonita, o sexo entre eles era bom. Além do mais, uma relação assim "confortável" o deixava mais focado na vida profissional. "A Nati era inteligente, boa pessoa, fazia de tudo pra me agradar, inclusive na cama, mas no fundo sempre soube que não era a mulher da minha vida..." Passado o primeiro ano de convivência, surgiu uma oportunidade de passar uma temporada na Polônia e resolveu que iria sozinho. Separou-se sem grandes sofrimentos. Voltou dois anos depois, e, assim como fazia com outras, vez por outra ainda procurava Nati, que, mesmo tendo outro namorado, sempre acabava cedendo às incursões de Thor.
Há aproximadamente dois anos conheceu Amora, e, segundo ele, tudo mudou.
Amora é bailarina profissional e estudante de História. Ele a descreve como sendo "linda, suave, educada e muito determinada também". É por aí que ele chega à análise, por temer que ela cumpra o que vem prometendo há tempos e o deixe. Thor sofre com a ideia de perder Amora, mas diz que, quando se dá conta, está completamente enredado e convencido pela cena que nitidamente vê formada em sua cabeça.
Amora está viajando essa semana, a companhia foi se apresentar no teatro municipal de Buenos Aires.
- Quando dei por mim, já tinha feito dezessete ligações pra ela... É que ela não atendeu, ela tinha me dito que iriam ensaiar durante toda a tarde, mas uma amiga dela postou uma foto no café Tortoni, então achei que ela também estivesse lá. Liguei pra amiga dela e ela me disse que Amora estava no ensaio. Eu, claro, achei estranho, resolvi então fazer uma chamada de vídeo e realmente ela estava lá, no ensaio. Não é por causa dela, sabe? Mas tem um cara lá no grupo que não vai com a minha cara, e acho que faria qualquer coisa pra me desmoralizar... Ela diz que ele é gay, mas não é não, já vi pegando mulher também.
- Ela voltou diferente... Não sei te dizer o que mudou, mas ela mudou e eu ando achando tudo muito estranho, inclusive o "carinha" lá, o que se diz amigo, que dança com ela, às vezes dou uma incerta no ensaio, e o cara, quando me vê, fica todo desconfiado... É sério, o cara tá sempre só, nunca vejo o tal namorado dele, e não é normal, porque ele é bem bonito, sabe? Corpo atlético, o cabelo parece o meu, assim caindo, bonito, sabe? Muito estranho, mas como eu sou "doido", né?
- Tô com a cabeça a mil... Ontem a gente estava junto, e estava tudo ótimo! Ela supercarinhosa, eu também, a gente tomou um vinho, ela me chamou pra dançar, dessa vez eu fui, tudo maravilha... A gente transou e depois eu queria mais... Mas não é nada disso. Eu queria cansá-la. Quando estávamos indo lá pra casa, ela disse que não iria ficar pra dormir. Já achei estranho. "Por quê?" Ela me disse que tinha um compromisso logo cedo. "Tá, tudo bem." A ideia de que ela ia encontrar alguém me enlouqueceu, e pensei que, se cansasse ela, não sobraria nada pra ninguém mais...
Thor tem sempre a sensação de que não é amado o suficiente. Às vezes digo, em tom de brincadeira: "e tem suficiente no amor?". Ele diz que sim.
Thor e Amora estão sempre juntos, fazem mercado, vão ao shopping, ao cinema, veem os familiares, conversam, ficam muito em casa e, segundo ele, "eles se bastam". Ela diz que não entende por que de repente tudo muda, e ele vira um louco.
Ele diz que é um cara muito vivido, já ficou com todo tipo de mulher e sabe que "mulher insatisfeita" é problema na certa. O que Thor chama de insatisfação, Amora diz ser apenas uma queixa, uma chateação; ela repete muito isso para ele. Percebo claramente que Thor vivencia cada queixa, cada "arenga", de um jeito amplificado e extremamente ameaçador, e, como aprendeu desde cedo a se esquivar dos perigos do amor, sua primeira reação é acuá-la para que enfim confesse seu pecado e confirme suas suspeitas de que não é tão amado assim.
Hoje ele chegou transtornado, porque Amora parou de compartilhar sua localização em um desses dispositivos de celular. Pergunto se isso era um acordo entre eles. Ele responde: "Era, no início, mas há um tempo, desde que troquei de celular, parei de compartilhar a minha, mas ela continuou". Pergunto por que ele havia parado, se era esse o acordo. Responde que não queria que ela tivesse acesso a seus itinerários. Pergunto se ela havia se chateado com isso. Responde que não. Pergunto se ele sabe o que o deixou tão fora de si.
- Tenho certeza de que foi tudo de caso pensado. Ela ia voltar a trabalhar no teatro municipal, e justamente quando ia começar uma movimentação nova ela desliga? Tem alguma coisa muito errada...
- Vocês chegaram a conversar?
- Claro, ela me disse que, como eu havia parado o meu compartilhamento há tempos, julgou que eu não me interessaria mais. Mas voltou logo em seguida a compartilhar. Disse-me que isso não era uma questão pra ela, e que eu não precisava compartilhar a minha, não achava relevante. Agora foi tarde, né? Já deve ter feito alguma coisa e tá arrependida...
- Thor, você, que gosta tanto de mitologia, já deve ter lido Édipo, não?
- Eu li muito tempo atrás. Sinceramente, não gostei muito e parei logo no início, não cheguei nem no final da primeira parte. São três, não é? Mas conheço a tragédia de Sófocles.
- Quando Édipo se dá conta da "tragédia", como você bem disse, que assola não só ele, mas toda a sua família, ele fura os olhos, usando um broche que retira da roupa de Jocasta já morta. Precisou ficar cego pra poder conseguir enxergar o resultado de suas escolhas. Você me parece querer o contrário: no afã de tudo saber, em tempo real, torce para não ver o que sofre imaginando. Podemos tentar falar um pouco sobre isso? O que você acha?
Em seu texto "Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia", Freud diz: "A investigação psicanalítica da paranoia não seria possível se os doentes não tivessem a peculiaridade de revelar, ainda que de forma distorcida, justamente o que os demais neuróticos escondem como um segredo" (Freud, 2010 [1911], p. 14).
Está no cerne dos estudos de Freud sobre a paranoia a reação inconsciente a uma fantasia insuportável para o sujeito. Nesse estudo, ele atenta para uma questão muito incômoda e desconfortável, até hoje, que gira em torno do desejo homoerótico: "Diríamos que o caráter paranoico está em que, para defender-se de uma fantasia de desejo homossexual, reage-se precisamente com um delírio persecutório de tal espécie" (Freud, 2010 [1911], p. 79). O ciúme aparece então como o retorno da passividade ora recalcada.
Lacan nos lembra que a estrutura do discurso paranoico repousa no enunciado da própria estrutura neurótica: "eu o amo e você me ama." (Lacan, 1985 [1955])
A guerra travada no sujeito que sofre implica a recusa da seguinte ideia: "Eu (um homem) amo ele (um homem)" (Freud, 2010 [1911], p. 83). A partir daí, o autor vai nos oferecendo as seguintes constatações: para fugir da sua fantasia de desejo, ele substitui, à custa de muita energia e sofrimento, o "amo" pelo "odeio" e, sendo assim, se convence de que, na verdade, ele não o ama, ele o odeia, porque o outro o odeia e o persegue. É através do delírio de perseguição que Thor, o nosso personagem, vai projetando no outro e transformando aquilo que estaria guardado nas profundezas do seu inconsciente em algo que ele possa acessar e, mais que isso, possa bancar em sua defesa ("tem um cara lá no grupo que não vai com a minha cara e acho que faria qualquer coisa pra me desmoralizar").
Em um segundo momento, Freud lança mão do que chamou "erotomania". O sujeito é enredado pelo amor do outro, é escolhido e projeta naquilo que desperta nesse outro sua própria escolha. Mas esta não seria uma escolha amorosa, propriamente dita, já que Thor, ao narrar suas conversas com Amora, não deixa de se confortar no amor que ela diz nutrir por ele e, graças a isso, tenta livrar-se do que causa angústia. "Eu não o amo, eu amo a ela. Eu noto que ela me ama... Eu não o amo, é a ela que eu amo, porque ela me ama" (Freud, 2010 [1911], p. 84).
Sobre a paranoia dos ciúmes, Freud nos traz ainda uma terceira versão, e talvez a que mais se adapte ao nosso personagem: ele nos diz que não é incomum o ciumento projetar no outro sua própria escolha objetal, ou seja: "Não sou eu quem amo um homem, ela o ama" (Freud, 2010 [1911], p. 85). Chegamos então à queixa que leva Thor a buscar a análise. Aliás, a queixa, na realidade, é de Amora, que precisa se defender o tempo todo das suas acusações. Thor, por vezes, sequer precisa de um objeto real, de um outro com nome, RG, endereço. Esse ser vive nele, mora nas suas fantasias e está pronto para entrar em ação ao menor esforço do seu desejo. A fantasia aqui vem tentar dar uma forma a algo que falta para que o sujeito possa saber "onde" procurar, dá os elementos para que possa circunscrever um objeto pelo qual ele procura.
Na formação do seu sintoma, encontra-se algo que foi recalcado, mas que insiste e volta deformado. Não sendo possível reconhecê-lo como produto próprio, como seu, passa a ser projetado no outro, em Amora. Essa repetição, que, em alguns casos, será nominada de "gozo", parece fazer jus ao amor/Eros sentido por Thor, mas, de fato, trata-se de Thanatos, é mortífero e paralisante.
Não é incomum Thor relatar que não se esquece do dia em que, em uma conversa informal de namorados, Amora lhe falou que fora apaixonada por um homem tal, ou que teve um namorado que gostava de transar ouvindo música, ou daquele que a presenteou com uma viagem... Tudo é munição para compor sua fantasia, e é esta que vai investindo de significados sua realidade. A perseguição que ele dirige para Amora, na tentativa de controlar seus pensamentos, funciona, na verdade, como perseguição a ele próprio, em um esforço inglório e à custa de muita energia psíquica de manter tudo "sob controle", como ele mesmo costuma dizer quando quer me contar que fizeram as pazes e que estão bem. Estar bem, para Thor, por vezes é estar "sob controle", em um exercício ininterrupto e constante de não se haver com seu desejo.
Sabendo que o que aparece em análise é também o infantil, esforço-me para escutar a criança em Thor, o "menino deus", aquele que veio para encarnar o herói e "salvar" a humanidade (seu mundo, sua família). O menino prodígio, o melhor aluno, o melhor atleta do seu grupo, o melhor. Lembro-me de um professor que, certa vez, falando sobre ciúmes, nos disse ser impossível viver sem ele, afinal já nascemos traídos. Uns riram, outros arregalaram os olhos, e a maioria nem entendeu, eu inclusive. Instigado, ele continuou: "pensem no nosso primeiro objeto de amor - a mãe - você a ama, mas ela vai sempre dar pro outro". Confesso aqui a minha indignação juvenil. Passei anos para entender o que aquele professor gritava em alto e bom som.
Pois bem, cá estamos nós, recebendo Thor em análise, e aí fica impossível não lembrar o meu dileto professor, imaginando poder lhe dizer: imagine só se essa criatura, que já nasce traída, ainda vier vestida de herói? O que fazer quando se nasce sabendo que nem a divindade desejada pelos seus pais e impressa em sua pele sob a forma de nome lhe garante um lugar de destaque junto a esse primeiro objeto?
Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem [...] A linguagem com sua estrutura preexiste à entrada de cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental. Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio. (Lacan, 1998 [1958], p. 498)
Se, para a psicanálise, a linguagem é campo de trabalho, sabemos que é graças a ela que nos tornamos "autorreferentes", apropriando-nos, ao longo da vida e dos processos identificatórios, daquilo que poderemos nomear como nosso. Somos "animais" linguageiros e é o atravessamento da linguagem que nos vai oferecendo um corpo, um estatuto. Freud diz que "no começo foi o ato" (apud Rodrigues, 2017), referindo-se ao ato do parricídio que funda a civilização. E assim, declinando a frase, chegamos à leitura de Lacan: "No princípio era o significante que marcou a carne, que se fez corpo" (apud Rodrigues, 2017). Lembrando que ato pressupõe linguagem e sujeito.
Alguém já falou que o maior concorrente da psicanálise é o amor, e é por acreditar prioritariamente nisso que continuo ouvindo e querendo ouvir Thor e todos aqueles que vêm nele, que estão em sua fala, na esperança de que, cada vez mais, a linguagem formatada por ele vá dando lugar aos lapsos, atos falhos, sonhos... Tomando seu inconsciente como ato, ato de palavra, pois, ali onde escapa a linguagem conhecida, surge um inconsciente vivo, trazendo consigo a possibilidade da criação, da nomeação. Sai o signo, entra o significante e, junto com ele, um sujeito.
Thor é um nó, e como todo nó precisa de tempo e dedicação para ser desfeito, refeito, e, nesse caso, não deve ser impossível que o investimento e o amor de Amora também o ajudem a liquidar o seu sintoma, que gera tanto sofrimento a ambos. Digo liquidar no sentido psicanalítico de transformação, de mudar de consistência, tornar líquido o que fora sólido, haja vista ser essa a melhor definição da direção da cura em psicanálise.
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ano - Nº 6 - 2024publicação: 12-12-2024 |
FREUD, S. (1911). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia. In: FREUD, S. (1911-1913). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia ("O caso Schreber"), artigos sobre técnica e outros textos. Obras completas, volume 10. Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. (1953-1954). O Seminário, Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986.
LACAN, J. (1955-1956). O Seminário, Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985.
LACAN, J. (1958). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
RODRIGUES, G. V. No começo era o ato - Uma leitura do seminário O ato psicanalítico, livro 15. Belo Horizonte: Artesã, 2017.
ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1956.
SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei - Édipo em Colono - Antígona. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.