O mundo de Clara: uma breve reflexão sobre a constituição da inteligência seguindo a teoria psicanalítica – Por Rogeria

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O mundo de Clara: uma breve reflexão sobre a constituição da inteligência seguindo a teoria psicanalítica.
Recebi o encaminhamento de uma menina com 11 anos, que vou chamar de Clara, com suspeita de deficiência cognitiva moderada, de base orgânica, e queixas de que ouvia vozes.

Como psicanalista, refleti: Deveria indicar Clara para uma colega da linha cognitivista para ajudá-la no desenvolvimento de habilidades e na adaptação `a vida de maneira geral? Ou poderia ajudá-la a se constituir enquanto sujeito psíquico, marcado pela singularidade, inclusive com sua limitação intelectual de base orgânica? !

Sabemos que o campo de estudo da psicanálise não se refere ao conceito de inteligência e sua problemática não figura como investigação central. As neurociências estão mais preparadas para discutir as descobertas do funcionamento cognitivo levando em consideração a estrutura do cérebro. Para esses teóricos o conceito de inteligência está relacionado ao conceito de operatividade no real. Em seus estudos iniciais, a inteligência era considerada geneticamente determinada e se mantinha estável ao longo da vida. Pesquisadores mais atuais vêm criticando esta idéia, entre eles, Jablonka e Lamb (2010), que apontam que além da base genética é importante levar em consideração outras três dimensões da hereditariedade: os sistemas de herança epigenéticos, o aprendizado social e uma quarta dimensão, exclusiva dos seres humanos, que é a transmissão de símbolos por meio da linguagem.

Para a psicanálise, seu objeto de estudo é o inconsciente. Inconsciente entendido como res extensa, em seu realismo, sua materialidade psíquica. Seu funcionamento não é destinado a produzir algo na realidade exterior, mas sim a manter o reequilibro entre os sistemas psíquicos. A sua fundação se dá, seguindo Freud (1915), através do processo de recalcamento originário e seu funcionamento é marcado pelas leis do

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processo primário. Sua fundação possibilita a constituição do Eu como estrutura com permanência, articulada logicamente e marcada pelo processo secundário. Assim, inteligência, como processo de relação com o mundo, está relacionada ao processo secundário e não corresponde, diretamente, ao funcionamento do inconsciente.

Seguindo as idéias de Bleichmar (1944 – 2007) a inteligência considerada adaptativa é uma questão do sujeito no sentido daquele que é consciente de sua própria existência, ou seja, que tenha um Eu constituído:

“ la inteligência ……no puede ser definida del lado del inconciente. …..debemos agregar que tampouco es simple establecer la relación entre el Yo y la inteligencia. La idea de una contigüidad adaptativa del Yo con la biología entra en crisis cuando nos plantamos desde una perspectiva que no considera al Yo como organismo práctico al servicio de la vida biológica, sino como representación que, tomando a cargo el deseo de existencia no está sin embargo en contigüidad con la vida biológica (Bleichmar, p.15, 2009 ).

Enfatizo: “ uma perspectiva que não considera o Eu como organismo prático `a serviço da vida biológica, mas como representação”. ! Segundo essa autora, o nascimento demarca apenas uma possibilidade biológica. Para a constituição do ser humano, inclusive da inteligência humana, ela propõe alguns pré requisitos necessários: a instauração do pulsional, a fundação do inconsciente, a estruturação do Eu e a constituição de um sujeito consciente de sua própria existência e permanência.

Pensando no caso clínico, Clara não apresentava sinais de falhas na implantação do pulsional/libidinal, tendo tido um bom contato com a mãe ao longo do primeiro ano de vida e a implantação do auto-erotismo. Mas, sua constituição psíquica demonstrava falhas no processo de narcisização no recalcamento primário. O meio familiar, e principalmente as dificuldades e fragilidades de sua mãe, contribuíam para que Clara fosse mantida “`a défict”, ou seja, exposta a uma relação que intensificava

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suas limitações orgânicas de base. Mannoni discute essa questão, através de vários exemplos clínicos, em seu livro “ A criança retardada e a mãe” no qual relata sua experiência psicanalítica com crianças diagnosticadas como deficientes cognitivas. ! O motivo da consulta de Clara, segundo a mãe, era a queixa da filha de que escutava duas vozes na garganta. Notei que sua preocupação não era tanto com o fato das vozes, mas com o tipo de comando que as vozes pudessem dar. Fora isso, insistia que a filha era normal. Sua falta de sensibilização com o sofrimento da filha submetida a essas alucinações auditivas me fez pensar qual seria sua motivação implícita neste desejo de materialização do “grilo falante”, via essas vozes, dos contos infantis. Apesar de identificar na mãe uma frágil estruturação egóica, com dificuldades de discriminação eu/outro, fiquei intrigada: o que no comportamento de Clara, quem até então eu não tinha conhecido, mobilizava esse tipo de desejo na mãe?

Numa entrevira posterior, a mãe pôde contar que sua filha sempre apresentou severas dificuldades de aprendizagem e que ela, sua mãe, realizava as tarefas acadêmicas para que Clara copiasse e entregasse na escola. Ainda apresentava encoprese e a mãe precisava mandá-la tomar banho pois parecia não perceber ou se incomodar com a sujeira e o odor das fezes. Ela também se recusava a se olhar no espelho, o que obrigava a mãe a penteá-la. Não era aceita nos grupos de crianças, ficando muito isolada na escola. Tinha medo do escuro e não se afastava da mãe como, por exemplo, para ir aos acampamentos escolares.

O desejo materno do “grilo falante” me pareceu associado `a uma intensa preocupação, inclusive no âmbito de sobrevivência física, com essa filha. Lembrei- me de Clara, na primeira sessão, com aspecto de falta de asseio e expressão de corpo desabitado. Era mantida pela mãe como alguém pouco interessante, pois a mesma não permitia que a filha, sequer, escolhesse as próprias roupas ou que usasse maquiagem, ou sapatos com pequenos saltos, desejo tão comum nas meninas

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púberes. A motivação materna estava associada `as fantasias de abusos e seduções que a filha estaria sujeita com a entrada na puberdade. ! Mas, ao mesmo tempo, fui percebendo como em sua dinâmica de funcionamento essa mãe também desejava manter sua filha “deficiente”, dependente e capturada como única forma de garantir a sobrevivência dela mesma, a mãe.

Optei por fazer sessões semanais com Clara, quinzenais com sua mãe e esporádicas com o pai e, posteriormente `a pedido de Clara, sessões com ela e a mãe, lembrando as observações de Mannoni: !

“ Enquanto analistas, teremos que nos questionar a nós mesmos se quisermos chegar, algum dia, a consolidar teoricamente a psicanálise dos débeis…. ( a psicanálise dos débeis) aproxima-se da análise dos psicóticos pelo modo como a família do sujeito entra maciçamente em jogo durante o tratamento”. ( Mannoni, pg 30 , 1985).

Nestas sessões com a mãe, inicialmente precisava reassegurar que Clara me sentisse como alguém confiável o que, necessariamente, passaria pela transferencia materna. ! Clara não sabia o que eram estas duas vozes que falavam, por exemplo: uma voz dizia “vai, sai para tomar água” e, a outra, “não, não é para sair”. Clara “ouvia” essas vozes como algo externo a ela, demonstrando sua falta de discriminação interno/ externo ao psiquismo, sinalizando falhas na constituição do recalcamento primário. Assim, apesar de seus pais viverem em intenso conflito, optei por não oferecer uma intervenção do tipo “Você se sente tão dividida entre o que cada um dos seus pais quer que faça que você não sabe o que fazer”.

Também cito, como outro exemplo dessas falhas, sua dificuldade em discriminar a ficção da realidade objetiva: Clara se queixava de que as crianças não gostavam dela e sua solução para esse problema seria mudar para a escola da Sunny (referindo-se ao seriado Sunny, entre estrelas do Disney Channel).

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Foram muitas sessões nas quais Clara dizia “Só converso com minha família, você não é minha família, só falo com minha mãe”. Ainda aderida `a figura materna, parecia considerar qualquer relação com outro como traição `a mãe. Eu perguntava: “Sei que não sou da família, mas como você faz para conversar com as professoras? Eu continuava, em cada sessão, apontando que estava disponível para, quando ela quisesse, conversar sobre as coisas que ela pensava.

Clara sempre saia para ir ao banheiro e voltava exalando cheiro de cocô que impregnava a sala. Ela parecia não perceber. Numa dessas primeiras vezes, observei que ela estava assustada, então perguntei o que tinha acontecido, que ela parecia estar com medo. Ela falou, abaixado o tom de voz e com olhar apavorado, que os cocôs são monstros e que ela tem medo deles. Solidária com ela, disse que imaginava como deveria ser difícil para ela usar o banheiro, o medo de olhar o cocô e sua necessidade de sair logo dificultando, inclusive, que pudesse se limpar adequadamente. Ela ouviu atenta mas não quis continuar a conversa. Concordei, mas lhe disse que só ia falar mais uma coisa: “que é difícil falar disso, por isso você não quer falar”.

Numa outra sessão, contou que não pôde ir no primeiro dia de aula porque “lá tem uma coceira e ficou inchado” (sic), apontando com receio seu órgão genital, diminuindo novamente o tom de sua voz, dando a impressão de acreditar que seu órgão genital pudesse escutar sua queixa da coceira, como fez no caso do cocô- monstro.

Clara parece apresentar falhas na constituição de uma representação corporal unificada, percebendo seu corpo como composto por partes autônomas e perigosas frente `as quais ela precisa se defender, falando sempre com muita precaução sobre elas: a parte garganta com suas vozes, a parte que produz monstros, a outra que causa coceiras, o rosto que ela não pode ver no espelho. Esses elementos colocam em evidencia a falta da constituição de um sujeito que se aproprie de um corpo, com riscos de implosão maiores.

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Como disse anteriormente, ela parecia não qualificar suas percepções, demonstrando não discriminar os cheiros ou poder associar seu apelido de gambá, pois o representacional esta descontextualizado e precisa ter discriminação entre realidade e linguagem. Como ajudá-la para que ela pudesse significar `a posteriori os elementos provindos das percepções? Com essa questão, numa sessão em que percebi que ela chegou perfumada comentei: “Nossa, que cheiro gostoso, você está sentindo?” Ela respondeu que não. Digo que está um cheirinho diferente, que parece que vem dela “você sente?” falei me aproximando dela, cheirando perto dela. Ela arrisca e me diz: “é um cheiro de morango? Pode ser do meu cabelo porque minha mãe passou hoje um creme de pentear de morango” ao que eu respondi que sim, que era um cheiro gostoso de morango e ela sorriu, toda satisfeita.

Numa outra sessão repito a intervenção, desta vez perguntando se ela estava sentindo um cheiro diferente, cheiro de cocô. Ela respondeu que não. “Tente sentir, não parece cheiro de cocô? Você não prefere ir ao banheiro ver se está tudo bem?” Ao voltar ela falou que tinha cocô na calça, contudo não quis mais falar disso. Na tentativa de neutralizar sua auto imagem de alguém muito diferente, ovelha negra da escola e da família, disse-lhe que isto ocorre também com outras crianças. Ela pareceu surpresa. !

Numa sessão perguntei o que ela estava desenhando na lousa. Ela respondeu, mas quando eu disse que não entendi o que ela falou (Clara tem dificuldades na fala) ela se irritou comigo: “Você é cabeçuda, né!!! Não tem cabeça mesmo, né?!”, fazendo gestos com as mãos e gritando comigo. Fiz uma intervenção tentando ajudar Clara a discriminar o que ela diz do que dizem para ela e perguntei: “Quem fala assim com você?” Ela se acalmou, olhou entristecida e respondeu: “minha Irmã”. Disse que a irmã fala com ela assim, que fica chateada e que a irmã sabe das coisas e ela não, que as pessoas só gostam da irmã.

Perguntei se gostaria de convidar a irmã (de 17 anos) para uma sessão e ela aceitou de imediato, apesar da mãe resistir dizendo que a irmã era muito ocupada. Na sessão,

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falei para a irmã que ela era uma pessoa importante na vida de Clara por isto pensamos em convidá-la para este espaço. Clara, inicialmente ficou quieta, observando. Sugeri que a irmã contasse como era a vida dela quando tinha onze anos. A irmã começou a contar sobre como se sentia excluída na escola, que não tinha amigos, que não gostavam dela. Clara, surpreendida, (e eu também) começou a fazer perguntas e as duas mantiveram a conversa, entretidas. Clara pôde perceber que também sua irmã viveu, e que ainda vive, dificuldades similares `as dela. A irmã também reclamou do controle da mãe desmistificando que o problema estaria em Clara.
No caso de Clara, no meu entendimento, além da questão orgânica, marcada por uma estrutura cerebral singular, como também ocorre a todos nós, suas dificuldades intelectuais estavam intensificadas por falhas na representação de um corpo unificado, na constituição de um Eu-representação capaz de possibilitar a constituição de um sujeito psíquico.

Ao longo do atendimento, ela deixou de apresentar os sintomas alucinatórios na medida em que pôde ir conversando comigo, colocando fala nos seus pensamentos e medos, silenciando as vozes da garganta. Passou a sair para ir ao banheiro antes de fazer cocô nas calças. Conseguiu se olhar rapidamente num pequeno espelho que tenho entre os brinquedos. Começou a apresentar vaidade, conseguia dizer qual roupa usaria, já podia falar de seu desejo de usar batom e do amigo na escola que queria beijar sua boca. Mudou de escola e se sentia mais capaz com as tarefas e uso do dinheiro na cantina.

Apesar de seus movimentos de autonomia, Clara precisou de minha ajuda para conversar com a mãe, me pedindo para ajudá-la a convencer sua mãe de que ela era capaz de, por exemplo, andar duas quadras sozinha para ir `a escola. Também queria descer na portaria do seu prédio para pegar a entrega de uma pizza, tarefa que a mãe só permitia `a filha mais velha. Passou a querer que a mãe viesse na sessão com ela para que pudéssemos conversar as três. A mãe começou a se incomodar e a não

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concordar com essas situações, sentindo-se ameaçada e amedrontada com as mudanças da filha. ! Concluo dizendo que a psicanálise tem muito a contribuir nos casos de limitações orgânicas desde que leve em consideração de onde está partindo e os objetivos que pretende alcançar com suas intervenções clínicas.

Referencias Bibliográficas: ! BLEICHMAR, S. Inteligencia y Simbolización: una perspectiva psicoanalitica. Buenos Aires: Paidós, 2009. ! ______________. Clinica Psicanalitica e Neogenese. São Paulo: Annablume, 2005. ! Freud, S. A Repressão (1915) em Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, ! Jablonka, E. e Lamb, M. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história de vida. São Paulo: Cia das Letras, 2010. ! Mannoni, M. A criança retardada e a mãe. Sao Paulo: Martins Fontes, 1985.

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