Até que a vida nos separe?

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Por Eliane Accioly*
eliane@acciolyfonseca.psc.br

Transarei loucamente com a desconhecida e nunca mais a verei. Só então estarei a salvo da fissura que me devora, entidade furiosa serpenteando em mim, prometendo-me liberdade se cumprido o ritual. Apesar de meus talentos com o sexo oposto, não consigo. Atrair estranhas, fácil. O problema? Falho, mais forte que eu. Se as reuniões ganham sequência – conversas, refeição compartilhada, troca de livros, compareço firme e correto. Ganho uma amiga que eventualmente se apaixona e perco o mistério, concorda? De onde tirei tal maluquice? Quem sabe do jardim de mulheres proibidas que rodeassem meu amanhecer? Lindas, macias ao toque, cheirando a pomar e romã – irmãs, primas, tias, madrinhas. 

Patrícia? Ah, namoramos dos quinze aos dezoito, até que, perdida de culpa, conta-me o episódio com o surfista do qual nem nome sabia – cansada de se recusar ao assédio, simplesmente abaixa a calcinha e oferta-se de pé, na inclinação de uma palmeira, natural quanto a desrazão da natureza, e contra qualquer intenção de sua parte, o que seria para ser indiferente torna-a presa de insano anseio. Entro em inferno, deixo a moça e a cidade, saio do estado, abandono o país. 


Dez anos depois regresso. Atrás de bigode e cavanhaque, amores, estudo e profissão, dinheiro ganho com trabalho, encolhe-se o prisioneiro cativo do velho turbilhão. A última e perfeita cena relatada com requinte de maldade pela antiga namorada, meu talismã às avessas, atormenta-me, mas não posso perdê-la. Não me deixa em paz a menina em meu delírio, adolescente eterna, sua imagem encalhando em minha miragem mais secreta.


Em andanças outras encontro Virgínia, e, ultrapassado o estágio da amizade, torna-se minha companheira. Em nossa cama, porém, Patrícia dança desavergonhada e cede ao estrangeiro, ávida e estoica contra a áspera textura do tronco, como se rede, deusa dengosa e vingadora, ferida aberta. Confesso, com Virgínia algum tesão, sombras de ternura e a clara vontade de formar família. Transamos pouco, e quando ela reclama pergunto-me: O que quer? Não está nos conformes? Não planejamos filhos, criá-los, e estar um com o outro até que a vida nos separe? 


Uma noite fria rumamos a um desses bares de solteiros para dançar, beber, conhecer outros e outras. Sentados ao balcão, somos abordados. Converso de sexo com a recém-chegada, imaginando se Virgínia faria o mesmo com o homem plantando ao seu lado.  Em casa desejo em vertigem, nosso leito, mar havaiano.  


Minha mulher sempre sai com amigas, e num entardecer apronta-se com mais esmero. Fingindo ler o jornal sapeio-a. Arruma-se para um homem, a danada. O do bar? Um beijo enviesado e me deixa, distraída cabeça longe dos pés, cega de mim. 


Demora-se. Dormia pacífico, quando esmorecida escorrega entre os lençóis acordando-me num arranco, ao exalar um cheiro que não era o dela, odor de macho. Toco-a, molhada, entretanto mais umidade que a dela própria. Puxo-a e nos amamos. Depois, chora em meus braços, frágil, murmurando: Tão bom ficar assim! Afasto-a para olhá-la, dando-me conta de que, naquele instante, a almejada desconhecida encarna-se, corpo e presença – braços, pernas, seios, ventre em mim arrolados. Encrespo e crepito ao sabor de um sagrado.

Virgínia, a estranha, paradoxalmente um pedaço de mim.  Oceano náufrago, esta fenda.



*Psicanalista, poeta e escritora. Formada em psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, é membro egresso do Departamento Formação em Psicanálise. É mestre em psicologia clínica, doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP e trabalha academicamente nas fronteiras da arte e da psicanálise. Já publicou, entre outros livros, Corpo-de-sonho, arte e psicanálise (AnnaBlume, 1998, São Paulo),O chão adormecido no baú de sonhos (Sangre Editorial) e Mulheres Emergentes (2019, Buenos Aires).

Os textos publicados aqui são de inteira responsabilidade de seus autores e, portanto, não refletem obrigatoriamente a posição do Departamento Formação em Psicanálise.

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