Em meados de março deste ano, enquanto ainda recolhíamos e avaliávamos os artigos para esta edição, subitamente, nos vimos interrompidos em nosso cotidiano pelo impossível. A pandemia do Covid-19 nos lançou, sem aviso prévio, para um tempo/espaço outro ou, melhor dizendo, para um hiato do tempo/espaço, lugar onde, surpreendidos e meio atordoados, nos vimos diante da necessidade ou, talvez, do desejo, de reinventar nossas formas de ser e estar.Em nossa clínica, de uma semana para outra, tivemos que rever nossa prática, pensar um novo setting, desbravar tecnologias, encontrar nosso corpo onde o corpo já não podia estar. Como psicanalisar se o outro vira objeto de contágio, de ameaça? Como manter o enquadre num universo virtual? Como pensar a transferência que se estabelece através de uma tela? Será essa psicanálise possível? Assim foi, ou pelo menos tem sido… Ficamos em casa. Sem repertório anterior, condensando vários aspectos da vida que em algum momento pensamos ser possível separar, nós continuamos. E o impossível não nos atingiu apenas por meio do vírus, a constatação de que estávamos completamente à deriva, submetidos a uma política de Estado marcada por uma lógica de guerra, aprofundou a medida do nosso desamparo. Experienciamos um momento histórico em que o mal-estar, constitutivo da nossa vida em sociedade, se fez traumático.Nesse contexto, nosso trabalho no Departamento, em especial na Comis-são de Publicação, trouxe uma possibilidade de nos mantermos conectados. Se, por um lado estávamos confinados, por outro, não estávamos sozinhos. Poder compartilhar nossa vulnerabilidade e as tantas incertezas com nossos pares nos permitiu representar e ressignificar nossas experiências, mantendo um laço fundamental de ligação a Eros. Portanto, produzir esta revista, dis-seminando a psicanálise em sua capacidade subversiva, marca a nossa forma de resistir às ideias obscurantistas, autoritárias, desagregadoras deste tempo histórico que será lembrado como um tempo de morte e destruição.Em meio a tantos lutos que precisaremos ainda elaborar, os artigos deste número nos permitem também celebrar uma possibilidade criativa, porque, de modos muito diversos, cada um deles nos fala de uma psicanálise viva, engajada, em interlocução com outros saberes; uma psicanálise que é muito mais do que uma teoria aplicada, mas uma forma muito própria de se engajar na cultura, um modo de ser que invade a cultura e que traz em si não apenas uma possibilidade de crítica do social, mas uma potência transformadora.A revista Boletim Formação em Psicanálise agradece aos autores e cola-boradores desta edição a possibilidade de, diante do caos, manter-se viva.
Gisele Assuar
Comissão Editorial
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