Fora-incluídos

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Fora-incluídos

“Fora-incluídos”

Em evento recente realizado pelo Departamento Formação em Psicanálise (Encontro com Autores, Junho de 2024) tive a oportunidade de comunicar algumas ressonâncias da minha leitura do artigo “Uma Experiência clínica no coletivo Escuta CRUSP”, escrito pelo psicanalista Roberto Barcellos e publicado na revista Boletim Formação em Psicanálise.
O artigo aborda a experiência do autor no coletivo Escuta CRUSP, “Um aparelho de escuta ancorado em uma clínica política, vinculado aos aspectos intensos de sofrimento mental, carências materiais e potências neste território [o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo – CRUSP]. Estão em jogo nesta construção as transferências e resistências com a instituição, as desigualdades socioculturais e as intensidades pulsionais nas relações interpessoais” (Barcellos, 2023).
Na ocasião do evento fiz alguns apontamentos breves, que retomo resumidamente nesta aqui como forma de convidar à leitura do artigo de Barcellos.
A dimensão política da clínica
Sobre os temas presentes nas sessões dos moradores/alunos/ analisantes com os psis do Escuta CRUSP, Barcellos (2023) destaca, além das tensões existentes entre os moradores/estudantes:
“[…] as relações entre brancos e negros, as questões de gênero, a xenofobia, a precariedade física do local […], as questões que envolvem as diferenças socioeconômicas dos moradores em relação à maioria dos estudantes da USP, […] o uso de drogas, a segurança no local etc.” (p.34)
Muitos dos estudantes que moram no CRUSP são cotistas. A política de cotas – que na USP teve uma implantação tardia em comparação às demais universidades públicas brasileiras –  trouxe para “dentro” da universidade problemáticas ligadas aos efeitos das políticas de exclusão;  problemas sociais que precisam ser acolhidos e cuidados no âmbito na universidade. A imagem do CRUSP como a “periferia da USP” denuncia  uma inclusão de porta de entrada  que falha na oferta de políticas de permanência.
O que pode a escuta psicanalítica diante de uma realidade de sofrimento ligada muitas vezes a carências materiais, poderíamos nos perguntar? Talvez seja de ajuda lembrar que a psicanálise opera com a força da palavra, com os efeitos “mágicos” das palavras sobre os modos de gozo. Nas Conferências Introdutórias à Psicanálise Freud alude à força da palavra remontando-a ao seu poder mágico:
“Em sua origem, as palavras eram magia, e ainda hoje a palavra conserva muito de seu velho poder mágico. Com palavras, uma pessoa é capaz de fazer outra feliz ou de levá-la ao desespero; […]  Palavras evocam afetos e constituem o meio universal de que se valem as pessoas para influenciar umas às outras. Não vamos, pois, subestimar o emprego das palavras na psicoterapia […]” (Freud, 1916 /2014, p.501-502)
Conceber o Escuta CRUSP  como um espaço para a realização de uma  “clínica política” explicita, a meu ver,  o caráter político de toda clínica. A clínica – como a epistemologia – é política. As questões clínicas que formulamos são políticas e os conceitos com os quais fazemos trabalhar essas questões denotam a ação de escolhas diante da realidade social. A neutralidade possível exige um esforço de reconhecimento das balizas que orientam nossa escuta.
O tratamento psicanalítico tem ele próprio uma dimensão política. A associação livre – eixo fundamental da técnica psicanalítica/ ao lado da escuta em atenção flutuante  – precisa estar  franqueada para que a palavra que interessa à psicanálise possa surgir. Daí a incompatibilidade da psicanálise com regimes autoritários, que censuram as palavras. Há uma imbricação necessária entre associação livre e democracia porque a liberdade para falar é condição para a realização do projeto psicanalítico. 
Impasses transferenciais da clínica da exclusão
No artigo, Barcellos indica a ocorrência das resistências – que foram construídas historicamente – dos analisantes à universidade e a consequente receptividade ao cuidado que vem de fora.
Essa que poderíamos talvez chamar de a “clínica da exclusão” [ou a clínica daqueles que são deixados de fora] parece colocar impasses transferenciais, que estão ligados em última instância a denúncias de injustiças e violências cometidas em nome da psicanálise. Essa antipsicanálise opera, por exemplo, quando o analista branco nega as marcas subjetivas deixadas pelo racismo e retraumatiza o analisante negro que busca cuidado. Situações como essa evidenciam a importância de espaços de formação em psicanálise comprometidos com a descolonização do pensamento.  
Como um cuidado que vem de fora, o Escuta CRUSP parece representar assim um ponto de externalidade favorável ao estabelecimento das transferências com os analisantes. Ponto de externalidade que se coloca – e isso me parece importante frisar – em relação com os dispositivos da própria universidade. São, para utilizar a expressão cunhada pela psicanalista Cleuza Pavan, os “fora-incluídos”, um cuidado que vem de fora e que se articula com os espaços de cuidado oferecidos pela  própria universidade, arejando as relações que se estabelecem dentro da instituição.
Ouvir, como afirma Grada Kilomba (2019), “é um ato de autorização em direção à/ao falante.  Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida” (p.42-43). Escutar os sofrimentos dos alunos/moradores do CRUSP é uma forma legitimar o pertencimento daquelas/es que estão historicamente forçados a “não pertencer”.
Referências bibliográficas
BARCELLOS, R. Uma Experiência clínica no coletivo Escuta CRUSP. Boletim Formação em Psicanálise, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 29–36, 2023.
FREUD, S. Conferências introdutórias à Psicanálise [1916]. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
Mini bio da autora
Luana Viscardi Nunes é psicóloga formada pela PUC-SP e psicanalista pelo Departamento Formação em Psicanálise. Trabalha em consultório particular, é membro da comissão editorial da revista Boletim Formação em Psicanálise e professora do curso Fundamentos da Psicanálise e sua Prática Clínica, no Instituto Sedes Sapientiae.
Acesso o artigo comentado no texto da Luana no link: https://doi.org/10.56073/bfp.v31i1.55

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