Enquanto psicólogo e psicanalista, estando em um equipamento público de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência ligado ao Instituto Sedes[1], escuto de Maria[2]: “Eu não sou a violência que vive, sou Maria, muito mais do que isso”. Localizo tal afirmação como consequência do trabalho clínico psicossocial que realizamos e do trabalho de elaboração que Maria faz no viver. Mas também, nessa época, como um pedido ainda não direcionado à mãe e a todos que ainda não conseguiam vê-la para além da violência vivida, de suas cicatrizes. Ao conseguir nomear de forma tão viva e clara, Maria me mostra estar aí uma das essências do trabalho com violências. Associo tal ensinamento vivo, para além do acadêmico, ao que Emicida lindamente diz em sua música “Amarelo”:
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes Que nem devia tá aqui Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência É roubar o pouco de bom que eu vivi Por fim, permita que eu fale, não (não) as minhas cicatrizes. Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir. (EMICIDA, 2019)
O que Maria e Emicida me fazem lembrar, de tudo que poderia trazer com tais ensinamentos, é que na luta, no combate ao abuso e à exploração sexual contra crianças e adolescentes “temos a obrigação de ser otimistas”, de ter esperança. Retiro esse imperativo, “obrigação de ser otimistas”, da autora Bader Sawaia (2014), que em seu livro “As Artimanhas da Exclusão: Análise Psicossocial e ética da desigualdade social” marca que, além de otimistas, temos que “buscar caminhos para atingir a felicidade pública”, mas alerta:[…] Ser otimista é acreditar na potencialidade do sujeito de lutar contra esta condição social e humana, sem desconsiderar a determinação social. A utopia e a crença no sujeito da ação e na possibilidade de uma ordem social sem exclusão não remete a uma visão de happy end ou ao paradigma de redenção […] (SAWAIA, p.11/12, 2014)Penso que nesse sentido, deixar de acreditar na potencialidade do sujeito é, antes de mais nada, tirá-lo da condição de sujeito, ou presos nas engrenagens biopolíticas e suas artimanhas, colocar o outro na posição de inferior, de coisa, é impedir sua atividade e sua fala. Ser otimista não significa deixar de olhar para as suas vulnerabilidades, suas feridas, mas é também acreditar no “superpoder de regeneração”, do qual me fala uma criança de nove anos, que aqui vou chamar de Ryan. Para esse menino, a cicatriz deixada por sua ferida na pele é a lembrança do tombo, mas principalmente sua capacidade de se curar.Claro que quando falamos de violência contra criança e adolescente, sabemos, ou devemos lembrar, que sozinhas, crianças e adolescentes não têm condições de formarem suas cicatrizes concretas e emocionais, de se auto curarem. Ryan logo após falar de seu Superpoder, também lembra que a mãe o pegou no colo, limpou a ferida, passou remédio e que esses cuidados doeram um tanto.Tal cena me remete a ideia de trabalho em rede, rede de proteção e das muitas potências que temos nela. Novamente o óbvio precisa ser dito, muitos avanços se fazem necessários, mas deixar de reconhecer as potências de nossa de rede e/ou da rede familiar é também cair na armadilha de colocá-las como inferiores, é silenciá-las, inativá-las. Nesse ponto, lembro e destaco que o trabalho de nossa rede é prevenir e acreditar que novas feridas causadas pelas violências não sejam abertas, mas até que essa ausência total ocorra – sendo esse um desejo utópico ou não – não podemos deixar de reconhecer os cuidados que todos nós da rede fazemos frente a essas feridas. Essa simples cena do machucado do Ryan não dá conta de explicar toda complexidade do trabalho em rede, do trabalho com vítimas de violências, mas me traz a imagem de que: primeiro a criança teve condições de reconhecer que aquilo era uma ferida, conseguiu encontrar alguém de sua confiança para falar sobre, recebeu acolhimento e escuta dessa pessoa, e mesmo doendo um tanto, juntos cuidaram. Uso essa imagem para lembrar que o SPVV (Serviço de Proteção à Criança e Adolescentes) é uma parte desse cuidado, uma parte importante, mas que sem serviços da proteção básica como o CCA (Centro para Crianças e Adolescentes), sem as Escolas, as UBS (Unidades Básicas de Saúde), os Conselhos Tutelares, Sistema Jurídico e tantos outros que compõem essa rede, não há atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violências.
Por fim, tal otimismo também deve ser lido frente ao conceito de ‘esperançar’, de Paulo Freire:
É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança. Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por “n” razões, se tornou desesperançado. Daí que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões objetivas para a desesperança que nos imobiliza. (FREIRE, 1996)
César Augusto Saouda de Lima é Psicólogo e Psicanalista com especialização em Saúde Mental e Psicossomática Psicanalítica (cursando 2º ano). Trabalhador do SUAS e em consultório particular em Guarulhos.
[1] O CNRVV – Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae
Um lugar seguro para todas as crianças é um lugar composto por pessoas que respeitam o ritmo da criança, não retardando nem acelerando seu desenvolvimento.
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