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Publicado em 09 de outubro de 2020
Por Celina Giacomelli*
A barata com a matéria branca me olhava. Não sei se ela me via, não sei o que uma barata vê. Mas ela e eu nos olhávamos, e também não sei o que uma mulher vê. Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia – no mundo primário onde eu entrara, os seres existem os outros como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava conhecendo, há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro também estar ali: tudo isso também significa ver. A barata não me via diretamente, ela estava comigo. A barata não me via com os olhos mas com o corpo.
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.
A profusão de lives oferecidas nas redes sociais tem sido uma das mais ricas experiências que a necessidade do isolamento social tem nos trazido. Vastas ofertas de importantes discussões fervilham diante de nossos olhos, apresentando temas de grande relevância, que nos instigam e que, em sua maioria, solicitam-nos tão somente o privilégio de uma boa conexão para alcança-los.
Neste último final de semana participei do Congresso de Psicopatologia Fundamental de 2020, no formato virtual.Na programação, grata surpresa, uma palestra de José Miguel Wisnik no sábado a noite, O papel da ficção na constituição do sujeito, uma das mais estimulantes falas que tive o privilégio de acompanhar nos últimos meses.Seu já conhecido trânsito por autores de obras importantíssimas de nossa literatura, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, entre outros, deu contornos poéticos à sua fala e nos encantou do início ao fim, fazendo com que não percebêssemos a passagem do tempo, que segue sendo tão exigente em 2020. Duas horas depois de ter iniciado, me dei conta que Miguel tinha acabado sua fala, na maior parte do tempo acompanhada de um sorriso tão generoso como seu discurso.
Miguel tornou possível uma conversa entre mestres de nossa literatura, da poesia, de nosso cancioneiro, da academia e da psicanálise, promovendo costuras importantes entre Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Alexandre Nodari, Gilberto Gil, Racionais MC’s, Freud, Lacan, Winnicott…
Recorre a Pessoa, que, ao enunciar a heteronímia, conta que criou para a língua portuguesa o verbo “outrar-se”. Para o poeta, o eu dos heterônimos é também um não-eu (Ele) ancorado na terceira pessoa verbal; o eu fala da perspectiva da alteridade, fala como o outro, observa observando-se.
Apresenta-nos, com Alexandre Nodari, a noção de “obliquação”- a obliquação, diz ele, consiste em um movimento que comporta quatro posições que se embaralham, já que agem ao mesmo tempo e em um mesmo corpo: ver o outro (um objeto que é um sujeito); ver a si mesmo como objeto (ver a si mesmo como um sujeito outro, sendo outro); ver como o outro sujeito; e ver a si mesmo como o outro (sujeito) o vê. (Nodari,A., 2019).
Com Clarice Lispector, que Wisnik considera “a rainha da obliquação”, continua tentando esclarecer o significado de “outrar-se”:
Cita Lispector em A Paixão segundo GH (1968): “Estou percebendo uma realidade enviesada(…) A vida se me é (…) Eu não sou Tu, mas mim és Tu. Só por isso jamais poderei te sentir direto: porque és mim”.Isso para nos contar o que Nodari chama de um movimento de desdobramento subjetivo e das posições enunciativas, cuja face mais visível se apresenta quando o sujeito, sem deixar completamente de sê-lo, ocupa também a posição de objeto. O movimento que constitui a obliquação não se reduz ao simples gesto de referir-se a si mesmo como objeto ou ainda à reflexividade: para tomar-me como objeto, preciso admitir a existência da (e ocupar a) posição de um outro sujeito.
Wisnik cita “O eu é um outro”, de Rimbaud, para promover a articulação entre a noção de objeto transicional em Winnicott, “a primeira possessão não-eu” – transição de um estado de fusão com a mãe e com o mundo em gera -l, para o outro – “Nem dentro nem fora, nem um objeto externo nem um objeto interno, nem a mãe nem um pedaço de pano, entre-ambos, o objeto transicional é um meio pelo qual o bebê, aomesmo tempo, se distancia e se liga com a mãe, constituindo a ambos. Tal constituição conjunta e recíproca de si mesmo e do mundo, e das relações entre ambos, seria, assim, uma ferramenta ontológica pela qual ele inventa a si mesmo e um mundo. “Invenção”, pois se trata tanto de criação quanto de encontro (in-venire)”(Winnicott, 1975). O bebê cria o objeto que, de fato, ali estava, à espera de ser criado e de se tornar um objeto investido.
“O primeiro objeto é um objeto de ficção”, afirma Wisnik, e continua estabelecendo conexões entre tantos e caros autores para ir desenhando a noção de que “a ilusão comporta o desilusionar-se”, o objeto transicional supõe um reconhecimento da ilusão, ao mesmo tempo em que é fundamental para a experiência de se desilusionar. Fecha mais um trecho com poesia, recitandoDrão de Gilberto Gil, “Drão, o amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão, tem que morrer pra germinar, plantar nalgum lugar, ressuscitar no chão”.
Desenvolve, com o auxílio da formulação do estádio de espelho de Lacan, a questão da agressividade.A agressividade narcísica vinculada a uma tensão intrapsíquica que Lacan designa na fórmula “um ataque ao seu inimigo é um ataque a si mesmo”(1948).
Estabelece, a partir da noção de agressividade em Lacan, pontes com a produção das chamadas fake news, chamando a atenção para a escalada do imaginário no real contemporâneo, que cria e formula realidades paralelas, onde sujeitos vivem apenas o que lhes apraz, ejetando o que não está no campo de seus interesses e tomando o que é da ordem da alteridade como invasão, a ser exterminada.
Este é o tom e o ritmo da palestra encantadora de Wisnik. Poderia aqui falar também do como ele articula Lacan ao conto de Machado de Assis O Espelho, mas convido aqueles que, como eu, admiram Wisnik e sua capacidade de fazer a palavra circular, apresentando conceitos tão complexos de forma poética, a buscar na música, na literatura, poesia e na psicanálise uma visita riquíssima a tantas referências generosamente compartilhadas pelo encantador ensaísta.
1 – Músico, ensaísta, compositor e professor universitário.
2 – Alexandre Nodari é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal do Paraná – UFPR
3 – Nodari, A. Alterocupar-se: obliquação e transicionalidade na experiência literária. Estudos De Literatura Brasileira Contemporânea, (57), 1-17. https://doi.org/10.1590/2316-4018573, 2019.
4 – Winnicott, D. W. (1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971a).
5 – Uma criança adquire a noção de corpo próprio a partir de uma imagem externa, seja a sua própria projeção especular, seja a imagem de outra criança de mesma idade, podendo, então, superar a angustiante vivência de um “corpo despedaçado” e assimilar uma noção de unidade corpórea que lhe era até então estranha. A partir da noção de corpo próprio, a criança consegue separar o que faz parte de si e o que lhe é exterior. Essa mudança acontece pelo processo de identificação com a imagem especular, processo esse que será a estrutura de toda constituição de seu eu, no campo do imaginário. Em A agressividade em psicanálise (1966), Lacan postula que “a agressividade, na experiência, nos é dada como intenção de agressão e como imagem de desmembramento corporal”;a agressividade seria uma relação de estranhamento com o próprio corpo enquanto unidade, resultado da alienação da primeira vivência corpórea do bebê, perdida na unificação especular. Unidade do eu, noção que, como vimos, não é natural, já que surge a partir da identificação com a imagem da Gestalt humana, com a imagem do outro.
6 – LACAN, J. (1948). A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
*Psicanalista, professora e supervisora do curso Fundamentos da Psicanálise e sua Prática Clínica e membro efetiva do Departamento de Formação em Psicanálise.
Os textos publicados aqui são de inteira responsabilidade de seus autores e, portanto, não refletem obrigatoriamente a posição do Departamento Formação em Psicanálise.