Ultrapassar a metáfora do ofício para revelar uma ontologia da criação: viver como se toda existência fosse cena. Maria Callas, soprano de importante contribuição na arte operística do século XX, nos deixou uma inscrição refinada, virtuosa, legítima. Não se trata de performatividade no sentido trivial, mas da inseparabilidade entre sujeito e expressão. Sua voz, dentro de toda a concepção de expressividade de um corpo humano, é a matéria-prima de seu trabalho, carreira e marca. O canto de Callas aventura o ouvido às camadas mais profundas de significações e enigmas, que, diante da voz lírica de uma soprano dramático, se estranha e se torce. A voz cantada transporta as cores, os timbres, as ressonâncias de um aparelho sonoro que é: fonador, articulador e ressonador. Virtuose técnica de um instrumento chamado voz, que, em sua execução — o canto —, discursa o trágico e o cômico da imaginação humana. O ar, matéria-prima do canto, possibilita a passagem do sussurro ao som, que, mediado pelas pregas vocais — suas cordas, sua lira convectiva —, subverte o quase inaudível em discurso sonoro. A respiração substancial do corpo humano se torna matéria de fala, expressão e canto. E é por essa estética — o canto lírico — que Maria se tornará Callas, atravessada pelo discurso histórico de seu sofrimento.
O palco é consciência estética constante, onde cada gesto, cada silêncio e cada escolha se inscreve como ato. Uma forma de presença que não se ensina: ou se habita, ou se padece.
Callas não enunciava uma metáfora, mas uma gramática de sofrimento. Paradoxalmente, a vida coincidindo com a cena — não como teatralidade, mas como enunciação constante de mundo. O ato artístico sendo aquele que não interpreta a realidade, mas a sustenta em estado de criação contínua. É nesse lugar de escuta e atravessamento que o sujeito artista se aproxima da clínica, não como quem muda de território, mas como quem reconhece um lugar de re-habitação.
Uma vivência marcada por uma presença insistente — não aquela voltada ao outro como público, mas à densidade da experiência vivida como linguagem. Dramaturgia íntima: a impossibilidade de dissociar a existência do criar como forma de pensamento encarnado, onde a vida, para ser plena, precisa ser atravessada pela cena.
A arte é, antes de tudo, aquele que a faz.
Já ouvi algumas vezes: por que os artistas estão migrando para a amplitude do trabalho com o psiquismo humano? E, na tentativa de responder a essa pergunta em meus monólogos internos, pensei: talvez porque, ali onde a arte se ancora — no atravessamento das intensidades, na escuta do que pulsa no transfundo da linguagem — se encontre o campo elementar do psíquico. O gesto radical do artista — a cena, lugar de inscrição e topologia sua de fundação — se faz na sustentação do ainda informe, fragmentado, o grito, sem rosto, sem tempo e sem nome. Sustentar a cena é se precipitar naquilo que se retém na pausa; uma ação que não se mostra facilmente, mas se faz na dialógica perceptiva.
A prática clínica, nesse contexto, não se apresenta como algo alheio, mas como desdobramento natural de uma vida devotada à escuta do irrepresentável. Um saber que não se submete à lógica da razão instrumental, mas que se funda na escuta do que nela escapa — as falhas, os atos involuntários, o silêncio que resiste à nomeação. Trata-se de um saber não totalizante, que opera nas margens da linguagem, onde o sentido vacila e se reinventa.
O artista vive nesse campo. Não decifra, mas sustenta. Não organiza, mas compõe. E é nessa ética que sua escuta se dirige à clínica — não guiada apenas pela técnica, mas por sua elaboração sensível e construção intermitente de travessia. Escutar, aqui, é se reter na ressonância de uma memória que conhece o abismo e, por tê-lo atravessado, sustenta uma presença aberta ao que permanece à beira da palavra, deixando-se entrever no intervalo do enunciado. Instaurando a continuidade de sua diferença.
O artista se aproxima de uma região comum à experiência humana — um campo de tensões que exige suportabilidade e uma disposição criativa para permanecer ali, onde o sentido pode vacilar. Entre aqueles que tentaram nomear algo desse limite, Carl Gustav Jung — apesar das divergências epistemológicas profundas que o afastam da tradição psicanalítica inaugurada por Freud — nos oferece uma imagem notável. Em conversa com James Joyce, que buscava compreender as experiências psíquicas intensas vividas por sua filha, e a concordância de que nelas pairava uma ressonância com o próprio processo de criação, Jung articula um pensamento que ressoa com força e desconcerto: “No mar em que você nada, sua filha se afoga.” A observação não se sustenta numa comparação direta, mas num gesto de distinção: não é o conteúdo da experiência que define sua potência, mas o modo como se pode (ou não) sustentar-se diante dela. A criação, portanto, não está garantida pela proximidade ao abismo, mas pelo modo como se retorna dele — ou se consegue, ao menos, bordear sua presença. Um limiar membranoso, tênue, vibrátil, entre a pele e o mundo. Uma vivência plena das moções intensivas, estruturantes e disruptivas. O artista não é mais apto a mergulhar no emocional — ele apenas construiu, com o tempo e com os seus infortúnios, uma experiência de apoio, um dique de transformação. E talvez seja pela escuta, em sua mais abrangente possibilidade, que o sujeito das artes se subverte; não para apenas organizar e explicar, mas para sustentar a experiência.
A criação e a clínica se tocam no compromisso com o silêncio vivo do ouvir. Escutar sem concluir. Estar com, sem invadir. O artista-analista sustenta, antes de qualquer coisa, a impossibilidade de domesticar o outro. Sabe que o trauma, o desejo e a repetição são travessias. E que o inconsciente, tal como a arte, não busca resposta, mas presença.
Callas dizia que o palco está na mente. Talvez essa seja também uma possibilidade clínica: manter viva uma cena onde o outro possa habitar sem ser capturado. Talvez por isso a criação e a experiência da análise se toquem. Porque ambas exigem presença, tempo, afeto, disponibilidade. E uma fé silenciosa de que algo ali pode emergir, ainda que do abismo.
A criação, no lugar do excesso e do sem forma, pode operar uma transfiguração da dor em matéria sensível, instaurando na estética do sofrimento a sua resistência. A cena não apenas representa: ela comparece. Assim como na clínica, é o modo como se sustenta o insuportável que produz deslocamentos — e não a sua eliminação. Há sempre uma cena anterior à palavra, e é nesse intervalo — entre o gesto e o sentido — que arte e psicanálise podem se tocar, como experiências limítrofes da condição humana.
O palco é consciência estética constante, onde cada gesto, cada silêncio e cada escolha se inscreve como ato. Uma forma de presença que não se ensina: ou se habita, ou se padece.
Callas não enunciava uma metáfora, mas uma gramática de sofrimento. Paradoxalmente, a vida coincidindo com a cena — não como teatralidade, mas como enunciação constante de mundo. O ato artístico sendo aquele que não interpreta a realidade, mas a sustenta em estado de criação contínua. É nesse lugar de escuta e atravessamento que o sujeito artista se aproxima da clínica, não como quem muda de território, mas como quem reconhece um lugar de re-habitação.
Uma vivência marcada por uma presença insistente — não aquela voltada ao outro como público, mas à densidade da experiência vivida como linguagem. Dramaturgia íntima: a impossibilidade de dissociar a existência do criar como forma de pensamento encarnado, onde a vida, para ser plena, precisa ser atravessada pela cena.
A arte é, antes de tudo, aquele que a faz.
Já ouvi algumas vezes: por que os artistas estão migrando para a amplitude do trabalho com o psiquismo humano? E, na tentativa de responder a essa pergunta em meus monólogos internos, pensei: talvez porque, ali onde a arte se ancora — no atravessamento das intensidades, na escuta do que pulsa no transfundo da linguagem — se encontre o campo elementar do psíquico. O gesto radical do artista — a cena, lugar de inscrição e topologia sua de fundação — se faz na sustentação do ainda informe, fragmentado, o grito, sem rosto, sem tempo e sem nome. Sustentar a cena é se precipitar naquilo que se retém na pausa; uma ação que não se mostra facilmente, mas se faz na dialógica perceptiva.
A prática clínica, nesse contexto, não se apresenta como algo alheio, mas como desdobramento natural de uma vida devotada à escuta do irrepresentável. Um saber que não se submete à lógica da razão instrumental, mas que se funda na escuta do que nela escapa — as falhas, os atos involuntários, o silêncio que resiste à nomeação. Trata-se de um saber não totalizante, que opera nas margens da linguagem, onde o sentido vacila e se reinventa.
O artista vive nesse campo. Não decifra, mas sustenta. Não organiza, mas compõe. E é nessa ética que sua escuta se dirige à clínica — não guiada apenas pela técnica, mas por sua elaboração sensível e construção intermitente de travessia. Escutar, aqui, é se reter na ressonância de uma memória que conhece o abismo e, por tê-lo atravessado, sustenta uma presença aberta ao que permanece à beira da palavra, deixando-se entrever no intervalo do enunciado. Instaurando a continuidade de sua diferença.
O artista se aproxima de uma região comum à experiência humana — um campo de tensões que exige suportabilidade e uma disposição criativa para permanecer ali, onde o sentido pode vacilar. Entre aqueles que tentaram nomear algo desse limite, Carl Gustav Jung — apesar das divergências epistemológicas profundas que o afastam da tradição psicanalítica inaugurada por Freud — nos oferece uma imagem notável. Em conversa com James Joyce, que buscava compreender as experiências psíquicas intensas vividas por sua filha, e a concordância de que nelas pairava uma ressonância com o próprio processo de criação, Jung articula um pensamento que ressoa com força e desconcerto: “No mar em que você nada, sua filha se afoga.” A observação não se sustenta numa comparação direta, mas num gesto de distinção: não é o conteúdo da experiência que define sua potência, mas o modo como se pode (ou não) sustentar-se diante dela. A criação, portanto, não está garantida pela proximidade ao abismo, mas pelo modo como se retorna dele — ou se consegue, ao menos, bordear sua presença. Um limiar membranoso, tênue, vibrátil, entre a pele e o mundo. Uma vivência plena das moções intensivas, estruturantes e disruptivas. O artista não é mais apto a mergulhar no emocional — ele apenas construiu, com o tempo e com os seus infortúnios, uma experiência de apoio, um dique de transformação. E talvez seja pela escuta, em sua mais abrangente possibilidade, que o sujeito das artes se subverte; não para apenas organizar e explicar, mas para sustentar a experiência.
A criação e a clínica se tocam no compromisso com o silêncio vivo do ouvir. Escutar sem concluir. Estar com, sem invadir. O artista-analista sustenta, antes de qualquer coisa, a impossibilidade de domesticar o outro. Sabe que o trauma, o desejo e a repetição são travessias. E que o inconsciente, tal como a arte, não busca resposta, mas presença.
Callas dizia que o palco está na mente. Talvez essa seja também uma possibilidade clínica: manter viva uma cena onde o outro possa habitar sem ser capturado. Talvez por isso a criação e a experiência da análise se toquem. Porque ambas exigem presença, tempo, afeto, disponibilidade. E uma fé silenciosa de que algo ali pode emergir, ainda que do abismo.
A criação, no lugar do excesso e do sem forma, pode operar uma transfiguração da dor em matéria sensível, instaurando na estética do sofrimento a sua resistência. A cena não apenas representa: ela comparece. Assim como na clínica, é o modo como se sustenta o insuportável que produz deslocamentos — e não a sua eliminação. Há sempre uma cena anterior à palavra, e é nesse intervalo — entre o gesto e o sentido — que arte e psicanálise podem se tocar, como experiências limítrofes da condição humana.
Hélvio Benício
Membro acadêmico do Departamento Formação em Psicanálise Instituto Sedes Sapientiae
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