SHAME – Pulsão de Morte e contemporaneidade – Gisele Assuar

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Introdução
Esse foi um trabalho apresentado para conclusão do seminário teórico “As Pulsões” ministrado pelos professores Ede de Oliveira Silva  e Ligia Valdes Gómez, em 2013.

A ideia original era articular alguns conceitos da segunda teoria pulsional freudiana com o filme Shame, de Steve McQueen, 2011. No entanto, revendo o filme, o texto de Joel Birman, O Sujeito na Contemporaneidade, me pareceu indispensável.

Assim, dentro dos limites possíveis para esse trabalho, pretendo abordar na primeira parte, a questão da teoria pulsional, analisando o conceito de pulsão de morte na obra freudiana.  Posteriormente, tentarei discutir, através do personagem central do filme Shame, algumas questões dos novos processos de subjetivacão presentes na sociedade pós-moderna.

Gostaria de ter me aprofundado mais nessa análise, inclusive procurando pensar a clinica psicanalítica nesse novo contexto, mas isso ficará para uma outra oportunidade.

O conceito de pulsão de morte

Para Freud, “Pulsão” é uma força energética, endógena e constante que busca a satisfação e da qual, diferente de outros estímulos externos, não se pode fugir.  Ela se origina na fronteira entre o somático e o anímico e se inscreve como representante psíquico dos estímulos endossomáticos, exigindo trabalho psíquico de descarga.

Em 1920, em seu artigo Além do Princípio do prazer, Freud propõe um novo dualismo pulsional:  “A morte é o autêntico resultado e, portanto, o objetivo da vida, enquanto que o instinto sexual é a encarnação da vontade da vida.”

Sem abrir mão da ideia da existência de uma dinâmica de conflito e oposição de forças no psiquismo, dualidade que deu base a toda sua teoria, ele desenvolve os conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte.

Freud estabelece que nenhuma das pulsões se apresenta em seu estado puro.  Thânatos e Eros apresentam-se desde o princípio fusionadas, mas enquanto a pulsão de vida se manifesta por conjugação com o objeto, por ruído, a pulsão de morte é silenciosa, invisível e só é perceptível quando se liga de alguma maneira a Eros.  A agressividade voltada ao mundo externo e interno, a repetição bruta e a compulsão a repetição seriam suas marcas.

No artigo O Problema Econômico do Masoquismo (1924) e O Ego e o Id (1923), Freud mostra como podem ocorrer as fusões e defusões pulsionais.

A pulsão de morte é lançada para o mundo externo a serviço de Eros (Sadismo).  Porém, uma parte dela fica como resíduo no Ego e lá também se liga a libido. É isso que funda o Masoquismo erógeno primário e que servirá de base para os outros tipos de masoquismo. Quando há uma defusão pulsional, a pulsão de morte se sobrepõe.  O movimento regressivo a estágios ambivalentes da libido, que é uma das defesas do Ego, está associado a defusão.  A defusão em geral ocorre por regressão.

Em O mal estar na civilização, de 1930, Freud  atribui uma absoluta autonomia da pulsão de morte que passa a ser entendida como disposição pulsional autônoma, originária do ser humano e que pressiona o psiquismo permanentemente.

Pensada dessa forma, a ideia acaba comprometendo o dualismo que Freud tanto buscou comprovar: “Com efeito, ele mesmo afirmara que a pulsão de morte é invisível e silenciosa… Ora, o que está fora ou para além da visibilidade e da dizibilidade, está fora da representação (visível) e da palavra (dizível), portanto… fora do aparato psíquico e de suas determinações.  Em consequência, a pulsão de morte é o que está ‘para além do princípio do prazer’, para além do próprio aparato psíquico.” (Garzia-Roza, L.A. – Introdução à metapsicologia freudiana).

Entendida como pulsão de destruição que se situa além da representação, além da ordem, além do princípio do prazer, a pulsão de morte é pura potência dispersa o que coincide com a própria definição de pulsão e nos faz compreender a pulsão de morte como a “pulsão por excelência”.

Segundo Garzia-Rosa, poderíamos pensar, portanto, num campo pulsional qualitativamente  único, concebido como um caos pulsional que existe para além do aparato psíquico e que funciona de maneira oposta à ordem dele, estando para além, ou aquém, do princípio do prazer.  O dualismo freudiano estaria preservado nos modos de presentificação das pulsões no aparelho anímico: se ao passar pelo aparelho psíquico, a pulsão cria representações, faz ligações, promovendo e mantendo uniões, ela é conjuntiva, ou seja, pulsão de vida.  Se ela se presentifica no aparelho anímico de forma destrutiva, “fazendo furos”, desfazendo as formas construídas, disjuntivamente, então ela é dita de morte.

Da forma de presentificação das pulsões no aparelho psíquico podemos concluir, também segundo Garzia-Rosa, que a pulsão de vida atua em consonância com a cultura, reunindo os indivíduos em totalidades cada vez mais abrangentes  e,  na medida em que promove essa união, é também conservadora.  Se pensarmos o desejo como pura diferenciação, o projeto de Eros, na busca por essa totalidade, é a eliminação do desejo.

A pulsão de morte, ao contrário do que se poderia supor, enquanto potencia destrutiva, seria o que impede a conservação do mesmo rompendo e provocando a possibilidade de emergência de novas formas.  Nesse sentido podemos pensar a pulsão de morte como uma força  criativa.

Pulsão de morte na Contemporaneidade

“A repetição é o modo no qual o desejo existe e insiste”
(Renato Mezan)

 No filme Shame, Brandon (Michael Fassbender) é um jovem solteiro, bonito e bem sucedido que vive em Nova York uma vida aparentemente perfeita.

A aparente perfeição esconde um homem aprisionado pela busca de um gozo compulsivo e mortificante que não lhe traz prazer.  Brandon é viciado em sexo.  Ele consome qualquer tipo de sexo: prostitutas, gays, sexo virtual, pornografia, masturbação, garotas eventuais, qualquer objeto onde ele possa descarregar sua dor de existir, sua angústia impensável.

Muito sexo, nenhum erotismo.  O recurso das cenas construídas a partir de planos-detalhe nos mostram o personagem em relações  com pernas, braços, seios, bocas, bundas, raramente mulheres como figuras completas. O filme as despersonaliza, assim como Brandon, uma pessoa completamente impedida de construir vínculos.  Vem daí sua dor, embora ele não sofra, não saiba sofrer.

 “Se o sujeito, atado na dolorida posição solipsista não pode fazer qualquer apelo ao outro, é o desalento que se impõe como phatos, destinando-o então a paralisia.  Em contrapartida, o desamparo, como correlato que é da experiência de sofrimento, possibilitaria ao sujeito um movimento desejante, que seria a condição primordial para a simbolização e a temporalidade.” (Birman, J. – O sujeito na contemporaneidade).

Segundo Birman, a dor evidencia uma posição narcísica, um fechamento em relação ao outro, enquanto que o sofrimento seria algo que implica alteridade, que pressupõe um apelo e uma demanda em relação ao outro.  Mas Brandon não pode se reconhecer desejante, não pode reconhecer qualquer tipo de dependência ao outro, pois isso seria um reconhecimento de que algo lhe falta.

A verdade é que o filme fala de um mal-estar que vai muito além da questão da compulsão por sexo.  Poderíamos estar falando aqui de qualquer outro transtorno ou compulsão tão comum aos dias atuais: pânico, drogas, jogo, compras…

Vivemos uma cultura de excessos, que nos acena com um leque de ofertas e promessas de prazeres possíveis a todo instante, uma cultura que propõe o império do gozo, do prazer imediato.  Podemos tudo.  Tornamo-nos consumidores e mercadorias na lógica de uma economia de mercado. Somos uma imagem que vendemos para nosso próprio deleite narcísico, mas parece que, diante disso, apenas encenamos uma performance de gozo vivenciando, predominantemente, uma experiência de ausência e vazio.

Brandon é um sujeito dessa contemporaneidade, um sujeito fora do tempo, preso no espaço, como sugere Joel Birman.  Fora do tempo, porque ele não quer saber o que não sabe de sua própria existência, e, por não poder reconhecer nem nomear algo de seu desejo, vive o aqui e o agora procurando em relacionamentos ocasionais, com objetos parciais, uma satisfação que nunca encontra.  Então ele repete, e repete, procurando a mesma coisa, dentro de um mesmo ritual fadado ao fracasso.

“Não existiria aqui nem simbolização, nem tampouco antecipação das afetações.  O que se evidencia é a marca eminentemente traumática pela qual se delineia o mal-estar na contemporaneidade.  É o trauma que está sempre em questão, num mundo marcado pela imprevisibilidade e pela instabilidade dos códigos estabelecidos”. (Birman, J. – O sujeito na contemporaneidade)

É como se dentro dele existisse uma urgência pulsional que transborda.  Sem conseguir representar essa força pulsional dentro de uma cadeia simbólica, ele fica paralisado na sua mobilidade.  O Ego frágil não consegue fazer uma descarga adequada, ou sublimada ficando a mercê do excesso pulsional.  O sujeito fica submetido a sua compulsão que assume o carater imperativo, isto é, “impõe-se ao psiquismo sem que esse possa deliberar sobre o impulso que inevitavelmente se impõe” (Birman, J.).

A partir da teoria das pulsões, poderíamos pensar na repetição como um mecanismo primitivo que tenta fazer no psiquismo uma ligação com o princípio do prazer, mas que está fora dele.  O Impulso se apresenta permanentemente  e cabe ao Ego, instância organizada, equilibrar as pressões do Id procurando maneiras mais adequadas de descarregar a pulsão a partir do princípio do prazer.

Se os estímulos internos são muito primitivos e intensos existe um transbordamento da pulsão e acabamos caindo na compulsão a repetição, expressão característica da pulsão de morte.  É possível pensar a repetição como o regime normal das duas pulsões, ainda que seu caráter  demoníaco seja mais evidente em Thânatos.

A chegada da irmã, Sissy (Carey Mulligan), abala Brandon de maneira irremediável.  Uma personagem carente e devastada que lhe devolve algo de um passado que ele recusa.  Muito pouco é dito no filme sobre esse passado de abandono e dor compartilhados. “Não somos pessoas ruins”, diz a irmã, “apenas viemos de um lugar ruim”.

Soa como um lamento a belíssima interpretação de New York, New York que Sissy canta no bar.   Talvez a canção revele a desilusão de se perceberem derrotados a priori por seus passados e suas dificuldades particulares diante do amor.

A relação entre eles traz uma ambivalência que nos sugere um vínculo incestuoso.  A questão é que parece não existir ninguém ou nenhuma lei a interditá-los, daí o pedido de ajuda de Sissy ser tão devastador para Brandon: “Você arma para mim, me encurrala…” Uma hipótese possível neste caso seria que, pelo medo de concretizar seu desejo incestuoso reprimido, Brandon se alienasse em relações com mulheres que não podiam ter qualquer significado emocional para ele.

Em relação ao Édipo, Renato Mezan faz uma diferenciação interessante entre a repressão e a dissolução do Édipo:

“Caso a dissolução não se verifique, realizando o Ego apenas uma repressão, o Édipo – ou o que sobra dele – permaneceria de alguma forma no Id, exercendo alí seus efeitos patogênicos. Esta análise sugere a Freud que a fronteira entre a normalidade e o patológico, nunca determinável com precisão, passe precisamente pelo final do Édipo e por sua relação com a castração: o indivíduo normal dissolveria o Édipo, enquanto aquele destinado à neurose simplesmente o reprimiria” (Mezan, R. – Freud: a trama dos conceitos).

No entanto, para que essa hipótese se sustentasse, precisaríamos, em primeiro lugar, estar na presença de mecanismos simbólicos que colocassem nosso personagem no registro de uma neurose de transferência.  Em segundo, poderíamos pensar que no caso de Brandon, a questão  seria mais primitiva, uma vez que parece existir uma recusa à castração, o que levaria a uma posição perversa, fetichista. Nesse caso, existiria uma divisão do Ego onde duas atitudes contraditórias coexistiriam: de um lado a aceitação da castração e, de outro, a negação desta.  Essa posição ambivalente levaria a uma defusão pulsional, favorecendo a pulsão de morte.
Ainda assim, Brandon protege Sissy.  Talvez a relação com a irmã seja seu limite.  Ele lhe oferece uma toalha quando a encontra nua no banheiro, sai para a rua evitando ouvi-la transar com seu chefe (atormentado pela atuação da irmã, encontra na corrida um modo de evacuar sua angústia), afasta-a violentamente de sua cama quando ela se deita a seu lado e, finalmente pede para que vá embora definitivamente.

Nesse momento parece que o quantum pulsional assume seu limite máximo.  Brandon sai e se entrega totalmente a sua compulsão buscando um apagamento de si mesmo.  Provoca uma briga, se machuca, participa de orgias, se coloca em risco.  É como se toda sua destrutividade voltasse para ele  provocando atitudes masoquistas apoiadas, quem sabe, numa culpa inconsciente.

Sissy também vai ao limite, ela passa ao ato.  E é exatamente sua tentativa de suicídio que tira o irmão de sua posição perversa. Falamos na primeira parte que a destrutividade da pulsão de morte poderia representar uma força criativa, uma vez que rompe e abre espaço para novas formas.  Mas o que se cria aqui?

Brandon se angustia e se desespera.  Talvez, nesse momento, reconheça seu desejo, se reconheça e possa sentir vergonha.  A vergonha que até agora não tinha expressado de modo algum e que, dentro de uma cadeia simbólica, funciona como um dique, barrando a pulsão e conseguindo organizá-la.

A ligação com o outro é sempre aquilo que favorece Eros.  O final do filme permite que acalentemos essa possibilidade.

 Bibliografia:
 
FREUD, S. – Além do princípio do prazer.  Tradução Paulo césar de Souza, Obras completas, vol. 14. São Paulo, Ed. Companhia das letras, 2010.
FREUD, S. – O Eu e o Id.  Tradução Paulo césar de Souza, Obras completas, vol. 16. São Paulo, Ed. Companhia das letras, 2010.
FREUD, S. – O problema econômico do Masoquismo.  Tradução Paulo césar de Souza, Obras completas, vol. 16. São Paulo, Ed. Companhia das letras, 2010
FREUD, S. – O mal-estar da civilização. ESB, vol. XXI, Rio de janeiro, Ed. Imago, 2006.
BIRMAN, J. – O Sujeito na Contemporaneidade. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2012.
BIRMAN, J. – Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação.  Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2012.
MEZAN, R. – Freud: A Trama dos Conceitos.  São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011.
GARCIA-ROZA, L.A. – Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3.  Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2011.
LAPLANCHE e PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise.  São Paulo, Martins Fontes, 2001

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