Sintoma – Por Eduardo Rodrigues De Lara

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“muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos
abscessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão
mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema
pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema”

“Permitam-me retornar, a título de exemplo, a um caso analisado há muitos anos atrás*, em que uma paciente, uma jovem, estava enamorada do cunhado. De pé ao lado do leito de morte da irmã, ela ficou horrorizada de ter o pensamento: “Agora ele está livre e pode casar comigo”. Essa cena foi instantaneamente esquecida, e assim o processo de regressão**, que conduziu a seus sofrimentos histéricos, foi acionado.

* Em Estudos sobre a Histeria (1895d). [Edição Standard Brasileira, Vol II, pág. 205 e 216, IMAGO Editora, 1974. As palavras da paciente, Elizabeth von R. não são citadas textualmente aqui.]

** [A palavra alemã é “Regression”, não “verdrängung” (“repressão”), em todas as edições ]”

Sintoma – Palavra Concreto Trabalho Casa.

Suspensão dos sentidos, explosão de significados, ganho de campo analítico, capitalização dos afetos, corpo estranho, conversão. Poesia ou Psicanálise? Poesia e psicanálise. Pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa. Palavra boa é palavra líquida. Ando gostando do meu cunhado. Se não posso, paro, deito, no divã, depois de saber na montanha. Viviane, Elizabeth, Sigmund. Pernas paradas são palavras calcificadas. Lágrima é dor, é alegria, derretidas; escorrendo um rio de afeto. Ab-reações. Pernas que participam da conversa. Conversões e consentimento do Eu. Tempo endurecido é tumor. Trabalho derretido é poema.

Passaremos, a seguir, por um incrível caminho da suspensão dos sentidos das palavras; escuta freudiana do sujeito, muito mais que um Eu; o incrível desejo pelo cunhado que virou perna parada; porque, sabido por palavras de um Eu, que julgaram-no desejo ruim, foi recalcado e calcificou-se nos membros inferiores. E enquanto crível, virou palavra. Virou escolha.

Desde sua aproximação com a hipnose, Breuer e as histéricas, a fala já tinha algum valor para Freud: ela seria um suporte para a correção dos afetos, uma ab-reação; como que vômitos ou partos de algo inacessível ao paciente. A reação é o que descarrega um estímulo que ingressa no aparelho psíquico e aumenta sua tensão.

Freud fazia uso da hipnose de forma particular, não tão dependente da sugestão; escutava a fala que descarregava com a pulga atrás da orelha. Assim tentava suprimir as demandas dos pacientes – a cura dos sintomas restritivos – mas também suas curiosidades médicas: queria saber aquilo além do que o paciente sabia, e deparou-se, invariavelmente, com eventos da história do sujeito. Algumas destas experiências o Eu as quer “não sabidas”; já diziam Breuer e Freud (1893, p.45) que

(…) estão inteiramente ausentes da lembrança dos pacientes quando em estado psíquico normal, ou só se fazem presentes de forma bastante sumária. Apenas quando o paciente é inquirido sob hipnose é que essas lembranças emergem com a nitidez inalterada de um fato recente.

O sintoma era uma expressão simbólica, uma poesia concreta de algo que não poderia ser dito, no sentido de igualdade entre o dizer e o saber. Se esta perna parou sem o nervo mandar, quem mandou? Se não fui Eu, quem foi? Quem produziu esta paralisia? E porque organizou desta maneira? Que lógica é esta, estranha, que nos habita e nos escapa? Será a minha perna realmente minha? Havia sim algo primário e anterior à consciência. O Eu seria uma “invenção”, uma construção secundária que, com muito esforço, somente tornaria o humano funcional neste mundo muito além da sua possibilidade e não completamente simbolizável. O trauma freudiano tem relação com este paradoxo humano entre a sua aptidão natural de captar e registrar suas experiências e sua incapacidade de simbolizar todas elas. O Eu surge como defesa das exigências exógenas e endógenas que o inundam vez em quando, e ele sem poder dar vazão: será filho do que lhe é estranho? Esta questão foge dos objetivos deste trabalho, no entanto direciona a nossa reflexão sobre o trauma e, consequentemente sobre o sintoma, para um ponto de vista subjetivo.

Esta rota também foi de enorme contribuição aos posteriores estudos de Freud (1925, p. 28): atendo-se à compreensão sobre a origem dos sintomas histéricos, “dava ênfase à significação da vida das emoções e à importância de estabelecer distinção entre os atos mentais inconscientes e os conscientes”. Havia algo ali que o paciente nem esquece nem reconhece. Já foi sabido, então, que os fenômenos histéricos de conversão provinham de um evento excessivo para o sujeito, que, impedido de reagir, operou um manejo de seu conteúdo de modo que ele não tenha acesso. Sabia isso depois de constatar que a catarse, a ab-reação ocorrida na hipnose, “derretia” o sintoma.
Freud (1893, p.42):

“(…) cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara, e quando o paciente havia descrito esse fato com o maior número de detalhes possível e traduzido o afeto em palavras.”

O sintoma, como expressão simbólica, subverte a palavra. Está em seu lugar. São poemas presos, ou lembranças que se escorreriam caso “virassem” poema. Não são, portanto, quaisquer palavras que são recalcadas e colocadas no escuro; são aquelas que pronunciaram um evento julgado como estranho e ameaçador à identidade do Eu perante este mundo. Já foram, portanto, conscientes. O Eu recusa-se a pensar conjuntamente com estes registros de experiências; este complexo não desaparece; pelo contrário, passa a “pensar por si só”, sob uma outra lógica… O paralelo entre o sintoma histérico e a Poesia Concreta, dentro do que os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari conceberam pós-Freud, pode nos ajudar a compreender um mecanismo que ultrapassa o conteúdo da palavra e trabalha livre com sua forma, uma lógica de construção articulada sob o processo primário: um funcionamento obscuro ao Eu e descolado da coerência. A Poesia Concreta, como que concluindo que a palavra não dá conta da complexidade humana, se utiliza de recursos imagéticos, sonoros e materiais que ressignificam as palavras e seus significados; vai de cloaca a coca-cola. Mas há um artista impulsionando o processo criativo conscientemente, dialogando e brincando com o obscuro; organizando-o, ou seja, o Eu está ali, nas rédeas da escrita. Para o sujeito em conflito psíquico, ao contrário, a primeira saída é a repressão de um desejo que se apresenta ao Eu e é tomado por este como impossível de ser exteriorizado. É evitar acessar este conteúdo. Este conflito não é em si patológico: ele é simplesmente uma defesa que surge da incompatibilidade entre o Eu – que preza sua identidade – e o conteúdo que se apresenta. Isto é empurrado ao escuro e, a partir de então, este conteúdo se organiza sob uma lógica distinta das regras do Eu. Freud o denomina, em um primeiro momento, de “corpo estranho”; são registros de eventos reais , “esquecidos” pelo Eu pois excessivos ao sujeito, mas que todavia o habitam. Na Comunicação Preliminar dos Estudos sobre a Histeria o trauma é definido por Freud e Breuer (1893, p.42) como algo contingente: “um grupo de causas desencadeadoras. Essas causas só puderam exercer um efeito traumático por adição e constituem um conjunto por serem, em parte, componentes de uma mesma história de sofrimento”. Adiciona que o trauma não é um agente provocador do sintoma, mas sim que este é um representante da cena traumática contingente que continua atuante mesmo quando “esquecida”. Em outras palavras: o sintoma é um símbolo daquilo que não está.

O aparelho psíquico funciona segundo um princípio que o induz à descarga; é o princípio do prazer. Portanto, a atuação deste corpo estranho – ou intruso – constituído a partir da repressão do evento traumático a que nos referimos, é uma atuação de rearranjo para buscar vias de descarga. Ou seja, o princípio do prazer é o motor também desta organização. Por vezes, tais moções pulsionais encontram derivados no sistema Pcs que descarregam parte do montante e não chegam a importunar o Eu com contradições inaceitáveis. Mas é fato que o recalcado retorna, cada vez que negado, buscando vias de descarga. Quando acumula, em lógica primária, uma cota de energia suficiente para representar um potencial trauma, o Eu reconhece a derrota e se apronta para uma descarga inevitável: optando pelo menor dentre os males, investe em uma representação que julga a mais inocente do complexo proibido, atraindo a energia para lá. No sintoma histérico, cujo mecanismo é a conversão, a carga do proibido proliferado, o afeto, é desviado então para uma representação de uma parte do corpo. Cabelos encravados, nódulos, espinhas, pernas paralisadas poderiam, um dia, ter sido poema. Esta representação / parte do corpo investida está associada ao núcleo patógeno, e, por isso, “ajuda” o paciente tanto a descarregar quanto a não saber do conteúdo proibido. É o que Freud passa a chamar de uma “formação de compromisso”, completamente formulada com a 1ª tópica do aparelho psíquico e já à partir da Psicoterapia da Histeria. Os poemas presos, de Mosé, impossibilitados de vazão, não são julgados objetivamente como sendo propícios a enrijecer-se; são as pessoas, aquelas que gostam de palavra presa, que adoecem deste gostar. O Eu freudiano também não é passivo frente a sua neurose: o sintoma é uma formação de compromisso no sentido que é uma ‘escolha’ do Eu. Obviamente esta escolha deve ser compreendida dentro da famigerada posição do Eu diante das exigências pulsionais – onde vigora o mais puro princípio do prazer – e o mundo externo – que lhe instaura o princípio de realidade. O sintoma é uma desesperada construção de um Eu que se vê sem saída e que trata de poupar-se de encarar o “não Eu”.

Com o inconsciente já assim concebido como conceito, podemos compreender que aquele que o insulta de caótico é uma organização coerente, o Eu. Tão liberto quanto preso à sua identidade que rechaça aquilo tudo que o sujeito lhe apresenta inocentemente e que ameaça uma fachada que deve manter. Sim: o Eu, e cada um, é uma invenção, consolidava Freud. Mas ele mesmo não é sua única obra; em meio a este seu desafio coerente surgem infinitas possibilidades de construção e desespero: “Como dar vazão a algo que não posso?”. “Disfarça… Joga para a perna… Grita! Bate! Converse,”. Sintoma, que criatividade; porém empobrecedora, restritiva; por isso patológica.
Saudavelmente, Freud (1893, p.44) ilumina: “Mas a linguagem serve de substituta para a ação; com sua ajuda, um afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia”. Freud aprovaria Viviane Mosé. Muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos, palavras calcificadas, sem vazão. Lágrima é dor derretida. Dor endurecida é tumor. No sintoma há descarga, vazão. Mas palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.

REFERÊNCIAS:
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
(1893). Comunicação Preliminar, v. 2.
(1895). Estudos sobre a Histeria, v. 2.
(1924). A perda da realidade na neurose e na psicose, v. 19.
(1925). Um estudo autobiográfico, v. 20.
MOSÉ, V. Receita para arrancar poemas presos. In: Pensamento Chão; poemas em prosa e verso. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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