SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO[1]
A saga carioca continuou pelo sábado. Dia solar, decidiu ir à praia. Hotel lotado, não conseguiu estender o horário do checkout e por isso resolveu almoçar ali mesmo, bem impressionada pelo jantar da véspera.
O peixe estava gostoso e a mulher fazia hora pra tomar um cafezinho e o rumo do aeroporto. Havia uma mesa vazia entre ela e o casal que conversava animado. Usava um vestido curto, guardanapo de linho no colo quando sentiu 6 patinhas invertebradas percorrerem-lhe a perna: uma baratinha lépida.
Afasta-a depressa usando o guardanapo, o bicho vai ao chão; tenta pisoteá-lo, mas ele foge. Chama o maître. Enquanto isso, o homem daquela mesa ao lado a olha, doce, e diz baixinho: "Eu vi". E ela: "Que era uma barata?". Ele aquiesce. "Foi péssimo", ela disse. E ele: "Ela estava antes pelo sofá, a gente ficou aqui pensando se te avisava ou não – avisa não avisa - mas você estava tão sossegada que a gente deixou...". Surpresa, a mulher responde: "Ah, o Rio e esse maravilhoso senso de humor!". E então lhe ocorre o dito chistoso: "Nem sei como lhes agradecer...".
Sorriem todos. O maître trouxe café, mais água, reiteradas desculpas e não cobrou por esses itens. Em SP, por muito menos - um ponto inexato no risoto semiperfeito - e sem que o pedisse, à sombra do Jacarandá ela foi brindada com a refeição inteira.
Aqui a gente vive na garoa, pedindo desculpas e gastando bastante, ao longo do tempo, pra se livrar dos medos sociais que nos atrasam a vida. Mas no final também dá certo. No século passado, a escalada do inseto teria sido impensável. Hoje não – e assim se comemoram as paixões metamórficas de Clarice.
SP, abril de 2016
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[1]Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae onde é interlocutora deste Boletim e professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos em São Paulo e de seu grupo de Arte e Psicanálise.