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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    38 Junho 2016  
 
 
O MUNDO, HOJE

AULA ABERTA DE BENILTON BEZERRA JR. COMEMORA LUTA ANTIMANICOMIAL


FERNANDA DE FRANCESCHI [1]



O curso Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica: Clínica e Política na transformação das práticas, do Instituto Sedes Sapientiae, convidou o prof. Benilton Bezerra Junior para ministrar uma aula aberta, no dia 16 de maio, durante a semana que comemora a luta antimanicomial.

Benilton Bezerra Junior possui graduação em Medicina e Direito, mestrado em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (1982), doutorado em Saúde Coletiva também pela UERJ (1996). Atualmente é professor adjunto do Instituto de Medicina Social da mesma universidade, pesquisador do PEPAS (Programa de Estudos e Pesquisas sobre ação e sujeito (IMS/UERJ) e membro da direção do Instituto Franco Basaglia no Rio de Janeiro. É ainda membro da direção da Organização Não Governamental Casa da Árvore e participa como pesquisador do projeto de Cooperação Intercultural Brasil/Alemanha Probal (CAPES/DAAD).

A professora do curso, Myrna Coelho, abriu a mesa dedicando a aula à memória da colega psicanalista e analista institucional Maria Ângela Santa Cruz e, representando o corpo docente do curso, expôs a posição política do grupo frente ao atual cenário político do país: contrária ao golpe e a favor da democracia e dos direitos humanos.

Benilton iniciou sua fala dizendo que compartilha da posição dos colegas e chamou a atual crise política de tombo democrático. Também ressaltou a importância histórica e política do Instituto Sedes Sapientiae nos modos de intervenção na Saúde Mental ao longo dos anos da ditadura militar no Brasil. Ao invés de dar uma aula formal, o professor convocou a todos para um exercício do pensamento, sugerindo que a crise atual é também a expressão do esgotamento das ideias e deve ser enfrentada com alegria e resistência, se encararmos esse cenário como oportunidade para criação de novas concepções de sociedade.

Para refletir sobre qual é o horizonte da reforma psiquiátrica hoje, quase 50 anos depois de seu surgimento, Benilton retomou a intrínseca relação da reforma com o contexto político da época. Enquanto o Brasil vivia sob o regime da ditadura militar, responsável pela criação dos manicômios, a exemplo de uma política de estado, nascia um ideário de transformação de mundo e de sociedade pautado em alguns princípios como o de democracia radical, tolerância, respeito às diferenças, desapreço pelas convicções e utopia enquanto horizonte.

Nesse contexto a reforma psiquiátrica nascia como luta social e luta pela liberdade, profundamente marcada pelo viés político da época e vem desde então sendo marcada por mudanças profundas no campo da Saúde Mental.

A reforma psiquiátrica se efetivava como conquista histórica, influenciada pelo movimento da psiquiatria democrática na Itália, cujo maior representante foi Franco Basaglia. Esse movimento expressava uma mudança de paradigma do objeto da psiquiatria, abandonando a ideia de loucura como doença, e passando a considerar a experiência de sofrimento do sujeito na sua interação com o corpo social, sua vida subjetiva, transindividual, relacional, holística e ecológica.

No Brasil, influenciado pelas mudanças que vinham ocorrendo no mundo todo, esse deslocamento do foco da reforma se manifestou através da ruptura com a cultura asilar que mantinha em regime de prisão perpétua mais de mil internos pelos psiquiatras da época.

Na esteira deste movimento, atualmente o trabalho em Saúde Mental é marcado por Políticas de Saúde Pública que atuam para além da especificidade da loucura entendida como doença mental, produzindo dispositivos como os Centros de Atenção Psicossocial e o Programa de Saúde da Família. Embora estes programas por vezes incorram no problema de reproduzir a lógica médico-industrial fundamentada no discurso técnico-científico – que acaba por produzir uma iatrogenia do cuidado em saúde, encerrando os sujeitos em diagnósticos e aumentando vertiginosamente a medicalização dos corpos –, os mesmos devem ser acolhidos e valorizados em direção ao seu sentido originário.

Benilton chamou a atenção para a importância de discutirmos o papel desses dispositivos, questionando qual o modelo ideal de articulação dessa rede de serviços de modo a estarmos sempre alertas para problematizar o sentido do nosso trabalho nesse campo. A Saúde Mental é uma dimensão da Saúde Pública que implica a pluralidade epistêmica do campo, implica discutir como manejar o saber técnico, considerando a dimensão clínica e política inerente à nossa prática.

Nossa tarefa é ultrapassar a herança centenária do paradigma natureza x cultura, da polaridade entre o modelo biomédico (que busca explicar o homem) e o modelo psicossocial (que pretende compreendê-lo). Essa antiga cisão, ainda presente nos efeitos de nossa prática, precisa ser superada para que os profissionais da Saúde Mental tenham condições de discutir com os médicos psiquiatras e outros especialistas científicos em pé de igualdade.

O professor ressaltou que é uma ficção pensarmos o cérebro humano de forma isolada. O determinismo biológico é reducionista, pois a cultura, a linguagem e as relações sociais são algumas das condições ontológicas necessárias para que qualquer experiência subjetiva aconteça. Desta forma entendemos que existe uma multifatorialidade genética afetada pela experiência do sujeito com o mundo.

No sentido de potencializar os esforços nesta área, Benilton chamou a atenção para o fato de existirem poucos trabalhos de avaliação efetiva das práticas em Saúde Mental no Brasil. É preciso desenvolver critérios para criação de estratégias válidas e eficazes, desenhos metodológicos que considerem as variáveis das intervenções psicanalíticas, fenomenológicas, etc. Mostra-se de fundamental importância sustentar com argumentos consistentes e bases sólidas os trabalhos desenvolvidos dentro do campo da atenção psicossocial, até mesmo como forma de resistência às forças conservadoras que ameaçam acabar com conquistas como o Sistema Único de Saúde.

Se não investirmos na criação de uma cultura de pesquisadores, corremos o risco de formar técnicos em Saúde Mental, o que contraria o ideário da reforma.

A escassez de pesquisas nesse campo resulta em poucas publicações, cuja circulação é absolutamente circunscrita ao território nacional. Possivelmente a barreira da língua seja um fator a ser considerado nesse sentido, pois o português não é compartilhado nem mesmo com nossos vizinhos latino-americanos, alguns de notada produtividade acadêmica como a Argentina. O que é lamentável, tendo em vista a importância da experiência brasileira, de forte inspiração no marxismo italiano, na gestão inglesa e na clínica franco-argentina.

O professor Benilton concluiu afirmando a necessidade de colocarmos em pauta os limites e possibilidades de nosso trabalho clínico, sustentando um espaço de crítica e aflição em nossas convicções teóricas. Devemos permanecer atentos no sentido de evitar os perigos do nominalismo vazio no qual a profusão de palavras técnicas acaba por distanciar as palavras das coisas, obscurecendo o caráter humano do sofrimento.



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[1] Psicanalista. Aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

 




 
 
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