Estudantes secundaristas, professores, moradores de bairros populares, gestores da área de Saúde Mental, pesquisadores e profissionais da Psicologia participaram da Conversa Pública Ocupa Clínica do Testemunho, no sábado, 14 de maio, no Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, no bairro do Catete da cidade do Rio de Janeiro. A mesa contou, entre outras, com as participações de Osvaldo Saidon e de Eduardo Losicer, cuja intervenção o Boletim publica a seguir
CONVERSA PÚBLICA OCUPA CLÍNICA DO TESTEMUNHO
EDUARDO LOSICER [1]

Eu quero sintetizar os agradecimentos protocolares agradecendo aos jovens secundaristas, não só por dividir conosco este território sobre o qual são soberanos, mas, principalmente, pela luz que nos estão dando em épocas cada vez mais obscuras. Obrigado por nos permitir respirar, diria eu, quando o ar está saturado por maus presságios. Ontem, no convite para participar aos meus amigos deste evento, destacando o fato de se realizar numa escola ocupada, escrevi “...garanto-lhes que, ao nos aproximarmos dos jovens que nos mostram a política em estado nascente, sentimos aquela lufada de ar fresco de que tanto precisamos...”.
Não estamos aqui para discursar, mas para nos aproximar. Vocês devem ter notado que o programa proposto para o debate é complexo e instigante. É a forma que escolhemos para o lançamento do Clínicas do Testemunho que já está previsto (atenção: já previsto) para ser realizado até agosto de 2017. Quando chamamos este evento de Ocupa Clínicas, é para mostrar que estamos aprendendo a lição dos jovens e propomos a apropriação do lugar para decidir o rumo que tomaremos a curto prazo.
Temos uma vantagem: longe de desaparecer, o chamado campo dos Direitos Humanos pode se transformar em um barco que serve para atravessar os mares revoltos, como este em que estamos hoje. Não porque temos que acreditar no Presidente da República quando disse anteontem que não haveria cortes mas incentivos aos programas sociais. Sim, porque foi o Estado, e não o Governo, que se responsabilizou pelos danos provocados pelo Terrorismo de Estado durante a Ditadura. Não dá para voltar atrás. Creio que os jovens não terão tanta dificuldade como nós, os velhos saturados de “pedras no caminho”, em entender que a famosa crise abre brechas que devemos aproveitar politicamente, como eles estão fazendo, de forma direta e sem representações. Poder-se-ia argumentar que a desproporção entre os objetivos dos jovens e os nossos nos torna incomparáveis. Mas eu poderia contraargumentar que o objetivo deles é maior porque nós queremos ‘apenas’ verdade, memória, justiça e reparação, e eles querem mudar TUDO. Sim, porque convenhamos que para se obter uma merenda decente e sem desvios de dinheiro é necessário mudar TODO O SISTEMA.
Acontece que estamos diante de duas grandes frentes de problemas: por um lado, nosso navio C do T está queimando sua própria madeira para funcionar (isto acontece quando temos pacientes tendo que esperar para serem atendidos) e, por outro, o novo governo deve honrar o Estado que se responsabilizou pelos crimes da Ditadura pela primeira vez na história. A responsabilidade dos clínicos está no limite e a responsabilidade do Estado também (fico ansioso por escutar o Luciano Elias falando sobre responsabilidade). A questão da responsabilidade seria como responder às auditorias de Estado ou à simples auditoria do comum, do outro, do par, como ensinam os estudantes.
Conste que nosso barco já foi lançado ao mar mais de uma vez: participamos das mobilizações populares sem perder a especificidade que nos permite flutuar acima dos poderes partidários e governamentais. Nós nos manifestamos publicamente através de um documento que pusemos em circulação antes da primeira grande mobilização e transmitindo o testemunho que os afetados pelo terror de Estado nos apontavam com toda clareza, quando mostravam os indícios de exceção que já se faziam sentir aqui a ali.
Assim, vivemos uma dramática inversão de nossa função: em lugar de reparar os graves danos provocados pela violência de Estado, respaldados pelo próprio Estado responsável pelos crimes, assistimos aos inícios de um ataque ao Estado perpetrado pelas forças conservadoras e neoliberais – há quem afirme que a lógica dura do neoliberalismo quando entra em plena ação acaba sempre dissolvendo as bases da democracia, mesmo se apresentando como democracia neoliberal. Este ataque se desenvolve com alucinante velocidade alimentada por traições e se realiza plenamente como golpe de Estado autolegitimado.
Enquanto isso, a política das Ocupações surge com toda força, criando dezenas de ilhas de autonomia ao longo do país e a contrapelo do trator golpista que tudo arrasa.
Como C do T ficamos mobilizados tentando transmitir tudo que os afetados pelo Terror de Estado na Ditadura nos ensinaram, mostrando as cicatrizes que o Estado de Exceção deixa no corpo e na alma dos cidadãos.
Já não havia diferença relevante entre a violência do Estado durante a Ditadura e a violência desatada pelo Estado de Direito atual. Tampouco se poderia considerar que os confrontos deviam ser tratados como problema de Segurança Pública. Volta a produção de subjetividades aterrorizadas pelas terríveis ameaças que saturam o ar. Recebemos as notícias de cada dia crispados pelo que se está aprontando contra o cidadão. O próprio tecido social se esgarça pela pressão do ódio de classe e de preconceito, abrindo as comportas da intolerância, verdadeiro caldo de cultura para a formação da massa fascista.
Foi justamente quando o ovo da serpente começava a trincar sua casca que fomos chamados para uma aula pública na primeira Escola ocupada do Rio, no Colégio Mendes de Morais, na Ilha do Governador, para falar sobre Ditadura e Educação Pública.
De minha parte, preferi falar do que chamei “Clínica da Ocupação”, lendo uma carta dirigida aos jovens, na qual apresentava algumas ‘teses clínicas’ sobre a Ocupação como ideia-força de uma novidade política.
Enunciei as teses como assertivas da seguinte maneira, que vou ler o que for possível dentro do meu tempo:
A Ocupação é uma paixão. A Ocupação é sempre justa. A Ocupação é autogestionária. A Ocupação é ação direta. A Ocupação é tensa.
Por que uma paixão? Na verdade afirmar que é uma paixão é apenas para destacar que a Ocupação não se rege somente por uma lógica política racional legal/ilegal. Não é se apropriar nem se instalar. Não se propõe liberar o território nem invadi-lo. É senti-lo autenticamente seu e ocupá-lo [Carloto]. É ser afetado pelo lugar para além da racionalidade, até o ponto de sentir a convicção delirante de ser soberano absoluto do lugar. Quando apontamos estes aspectos irracionais da relação política com o território, queremos desconstruir o senso comum que entende a Ocupação como pura tática política de força, que traz o risco de provocar uma potencial violência reativa. Quando esta sequência se cumpre em todo seu ciclo, tudo se enquadra sob o primário titulo de “baderna”.
Na verdade, para o ocupante se trata de momentos de uma inefável experiência da mais plena autonomia. Chega a seu ponto alto quando produz um ‘efeito de entendimento’ entre os ocupantes de um modo que não se dá em nenhuma outra situação. Sua organização costuma ser contingente, espontânea, organizada essencialmente por esta peculiar forma de entendimento entre os ocupantes. A clínica do ocupante – e a experiência pessoal – indicam que há um momento de gozo neste instante da ‘paixão’ em que se produz a inédita experiência de sujeito que ocupa legitimamente - isto é, politicamente - seu lugar no mundo. Como a paixão, também a Ocupação é eterna enquanto dura. Duro é, para o sujeito coletivo produzido, saber identificar o momento em que essas ‘magníficas’ subjetividades produzidas na sua própria célula (coletivo narcísico?) precisam se ‘entender’ com o exterior da bolha – absolutamente autônoma - e abandonar a experiência que parece que não obedece a nada nem a ninguém. Lá dentro se produz, mesmo que por instantes, um grupo sujeito dono de si e do lugar. É isto que frequentemente torna o ocupante destemido e combativo. Portanto, é difícil resistir à tentação de transformar a ocupação em causa e em ‘casa’, domesticando a potência política do ato e neutralizando o laço coletivo com o laço familiarista, sempre à espreita.
A visão clínica nos leva a considerar as origens do que se quer analisar, e aqui constatamos o que já sabemos: a história política da ocupação como ação de força... é velha como o mundo. Quantos séculos o homem levou para ocupar/conquistar os territórios sem dono? Existia ocupar para dominar, para colonizar, para anexar. Não é por pura estética dramática que a segunda guerra consagrou o ícone da “ocupação da colina” como representando a ocupação de todo o território e da conquista militar final.
Mas hoje, no domínio pleno da ordem proprietária (aquela ordem maior sustentada pelos proprietários dos territórios que passam a ser a reserva não especulativa do capital), não há mais nenhum pedacinho sem dono. Na esfera pública, como é nosso caso da Escola Pública, pode se dar a circunstância de serem os estudantes autodeterminados que se transformam nos legítimos ocupantes das Escolas. É também tentador compará-lo com uma “reforma territorial simbólica”: o lugar é daqueles que o ocupam.
Como ato político de resistência, a Ocupação aplica sua força nas portas – quando entra na escola que será ocupada, por exemplo -, mas não transforma esta enorme força em violência contra as pessoas. Estas são impedidas de funcionar institucionalmente, dando-se uma espécie de “empate” que lembra a tática usada por Chico Mendes contra os madeireiros, que ele chamava justamente de “empate”: os seringueiros se plantavam diante das gigantescas máquinas de arrancar árvores e assim impediam a superexploração da madeira.
No entanto, mesmo tendo tantas comparações para pensar a genealogia da Ocupação, é necessário logo dizer que, junto de outras táticas-força nascidas nos últimos movimentos de massa, a Ocupação, hoje, pode ser entendida como novidade. Por quê?
Muitos elementos levam a pensar que estas novidades que vocês trazem se originam recentemente, nos eventos de junho de 2013, que trazem a surpresa de uma mobilização de massas de jovens que toma as ruas, autoconvocados, independente de partidos e bandeiras e sem organização hierárquica. Não havia reivindicação unificada no início, embora a força política despertada parecesse ser conduzida para o campo da mobilidade urbana (Movimento do Passe Livre, etc.). O importante de destacar é que toda esta onda de politização das massas se dá em um momento diagnosticado como de grande crise da Representação. Entende-se a mobilização da sociedade como demonstração de sua legítima prevalência sobre os representantes políticos. Seria esta politização dos jovens e das ruas o ar fresco de que tanto precisamos?
É por isso que sustentamos que a Ocupação é ação direta no sentido que dispensa qualquer forma de intermediação representativa. Exerce a democracia “com suas próprias mãos”, contando apenas com a vontade política compartilhada e a ética comum que cabe ao grupo. Uma célula política – entendida como unidade elementar autônoma -, funcionando deste jeito, não parece o exato oposto do descalabro ético e político que hoje rasga o tecido social do país inteiro? Esta crise profunda da função da Política na sociedade pode ser entendida como produto de décadas de despolitização da base social do país e empoderamento das elites.
Por último, afirmamos que a Ocupação é tensa. Para além do óbvio, queremos destacar uma certa singularidade desta tensão. É aquela que faz com que a tensão seja produtiva – e não apenas um sintoma indesejável -, já que é o nervo que corre entre a ocupação como ato de força e as ações de violência reativa repressiva que pode provocar. Não se deve afrouxar nesta vital diferenciação. Na sexta feira escutei uma gravação que circulava nas redes sociais que relatava em tempo real a situação ‘tensa’ que havia entre a polícia que tinha entrado na escola e os estudantes decididos a manter a ocupação. As forças conservadoras do instituído querem rasgar a fina membrana que separa os lados, mas a legitimidade de ocupar um lugar público é suficiente como para combater o bom combate ou, como mínimo, empatá-lo.
É claro que do ponto de vista clínico-político, cada ocupação é um caso, mas a relevância dos casos atuais está no fato de virem junto com outras novas formas que encontramos no difícil fazer político contemporâneo.
Para terminar digo aos jovens: contem conosco. Estaremos de plantão, desde já, para colaborar com vocês diante de qualquer emergência clínico-política que se apresentar, e digo para o público que se interessou em vir até aqui: vamos estreitar fileiras. Temos a feliz possibilidade de nos juntarmos para combater o bom combate.
14 de maio de 2016.
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[1] Eduardo Losicer, psicanalista e analista institucional argentino-brasileiro, clínico e pesquisador independente, atua nos campos da Saúde Mental e dos Direitos Humanos.