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PSICANÁLISE COM CRIANÇAS DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

ANO VI | Número 10 | edição de janeiro a junho 2019
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Nossas Origens - A História Oral do Departamento
   

 

Entrevistada: Mary Ono

Entrevista cedida a Juliana Devito no dia 12 de julho de 2019.

Juliana Devito: Gostaríamos que você falasse sobre a história do Departamento Psicanálise com Crianças a partir da sua formação como psicanalista.

Mary Ono: Estou na prática com crianças, desde que eu me tornei psicóloga, a minha formação é como psicóloga (USP), mas desde o início eu tive uma inserção no campo da psicanálise. Iniciei numa prática educacional, mas a psicanálise a meu ver tinha uma sustentação teórica com a qual me identifiquei desde o início e que me parecia um pouco mais consistente do que outras propostas.

No campo de crianças, no início, participei em experiências educacionais, inclusive numa pesquisa com a Ana Maria Poppovic1 . A gente estava no campo da prática com crianças e precisava de algum tipo de fundamentação. Na época que eu comecei, na década de 70, havia já uma disputa que é a que se retoma hoje entre a abordagem dita comportamental, behaviorista, hoje neurociência e a psicanálise. Na verdade, naquele momento a psicanálise era considerada “decadente” por alguns e sofria a mesma crítica que sofre hoje: falta de cientificismo, de objetividade, do empirismo. Essa era uma questão que já estava desde sempre.

Houve justamente aí uma certa mudança que foi acontecendo, juntamente com as ditaduras (elas obrigaram muitos profissionais ao exílio), o que quero dizer,   é que os argentinos que tinham uma fundamentação forte em psicanálise vieram para o Brasil e com isso acabaram criando essa possibilidade de retomar a psicanálise (fora das Sociedades de Psicanálise que eram de difícil acesso). Também, nesse momento havia a proposta de mudanças na psiquiatria, que continuam até hoje com alguns avanços e outros retrocessos, que era a questão da luta antimanicomial. Então esta proposta de criar retaguarda para os asilos, (porque na verdade os hospitais psiquiátricos eram praticamente asilares,) através de projetos ambulatoriais, abriu campo para a clínica social em geral. Agora, a prática com crianças sempre foi alguma coisa que era necessária, mas ao mesmo tempo não tinha um investimento mais específico.

JD: Você acha então que nosso eixo é a Psicanálise?

Acho que dentro do campo da psicanálise, o que a gente vê historicamente é que sempre existiu esse confronto ou essa questão: a psicanálise a princípio foi pensada para lidar com o infantil, não exatamente com a criança. O infantil na psicanálise tem um caráter absolutamente particular, específico, que é a ideia do reprimido e que ao longo dos anos foi sempre uma questão e que ainda continua sendo. Porque a psicanálise se dá no après-coup2, só-depois, como dirá também a Silvia Fendrik3 . Só que a prática demanda algum tipo de fundamentação e acho que os psicanalistas continuam tentando operar com este campo explodido da psicanálise, os psicóticos por exemplo, que nos fazem pensar para além e nos coloca a questão de se deve haver uma aplicação da psicanálise sobre essas questões ou como um campo que pode ser inserido dentro da psicanalise com as suas especificidades. Acho que essa continua sendo uma grande questão. E por outro lado, apesar disso tudo, justamente a prática nesses outros campos acabaram criando novas questões sobre o psiquismo ou pelo menos ampliando o campo e o modo de pensar a subjetividade: alguns vão pensar pela fundação do psiquismo, outros pela constituição da subjetividade, em alguns casos, em Klein por exemplo não, porque ela já propõe um sujeito psíquico dividido desde o início com as concepções dela de pulsão de vida e de pulsão de morte.

Mas, a verdade é que crianças podem necessitar de acompanhamento. No início da minha prática o que existia era Klein, Lacan entrou muito depois e eu fiz parte dessa virada, já na década de 1980, um pouco mais para frente , em que a prática começa a ter um outro caráter que é justamente começar a pensar na questão dos pais na constituição subjetiva. Então, acho que talvez esse seja um elemento interessante de se pensar na particularidade [da Psicanálise com Crianças] e tem sido uma constante no nosso caminho, especificamente no percurso do Curso de Especialização em Psicanálise com Crianças. Quando eu entrei como professora, o curso estava numa certa virada, saindo de uma visão integradora biopsicossocial para um campo mais psicanalítico. No entanto, esse campo psicanalítico tinha basicamente uma certa ideia psicodinâmica que passava por Klein. Ao longo do tempo fomos inserindo outras vertentes da psicanálise como Winnicott, Mannoni, Bleichmar etc. e, a partir daí, começamos a nos perguntar sobre a questão dos pais, que de qualquer forma já existia porque, na prática, os pais batiam à porta. Agora o que fazer com eles? A proposta era deixá-los fora pois o que interessava eram as imagos parentais e as representações internas. Então trabalhávamos com a criança e os pais, a gente trabalhava quando eles interferiam no atendimento; trabalhávamos com a resistência dos pais e não com a ideia de que existia uma amarração possível [entre o psiquismo da criança e dos pais] – isso é um discurso muito posterior e ainda hoje está em questão.

JD: Então, além da Psicanálise como eixo, o que nos define como grupamento seria a questão da Criança...

MO: Antes de virarmos departamento realizamos alguns colóquios em que a questão dos pais foi colocada como central no trabalho com as crianças. Essa questão está na base do nosso percurso, ou seja, a psicanálise com crianças tem uma legitimidade? E qual é a psicanálise de crianças? De que sujeito psíquico estamos falando?

Por outro lado, todos esses questionamentos têm feito com que a gente estude psicanálise e, de alguma forma, trabalhe os conceitos analíticos, dando uma nova abertura e consistência para eles. Isso é uma outra questão no meu percurso e que estamos sustentando no Departamento [de Psicanálise com Crianças] até hoje que é uma certa pluralidade, por que qual é a verdade analítica? Qual a verdadeira Psicanálise? Sei lá. Ao mesmo tempo, se por um lado, aparentemente, temos estruturalmente o mesmo eixo como a Associação Livre, a Transferência, o Inconsciente, cada vertente tem sua costura própria: em uma as relações de objeto e a angústia, em outra a questão do ambiente e da continência e outra a ideia do inconsciente como linguagem, que é um operador específico. Então, se de alguma forma a gente se identifica enquanto grupo também podemos ver que são costuras muito específicas e que demandam um tipo de pensamento particular e isso a gente tem, de alguma forma, acompanhado. E com isso estamos também tentando definir o que é a verdadeira psicanálise que as crianças não comportam?

Por outro lado, vamos vendo que as crianças têm sofrimento, têm dores e em certo sentido têm demanda, que é expressa de uma outra forma. Então eu acho que, nesse percurso, retomar a questão do brincar não só no sentido de expressão/comunicação e da técnica e sim que o brincar é uma forma de operação psíquica, é um ponto interessante a ser pensado, que temos incluído na ideia de formação do inconsciente e que também ajuda a pensar sobre a questão da linguagem na criança. Acho que cada autor resolveu isso um pouco a seu modo – alguns criando ideias de que a linguagem é introduzida a partir do outro, a linguagem está sempre presente e, portanto, nesse sentido o sujeito está inserido dentro da linguagem mesmo que ele não fale ou que fale de alguma outra forma.

Isso também implica outras questões: aquilo que Anna Freud já dizia e que a Silvia Fendrik vai retomar. Penso que a questão que a Silvia Fendrik vai recolocar e que Anna Freud também tinha como questão era a dependência da criança em relação ao adulto e se ela, de alguma forma, realmente tinha condições de arcar com algum contrato, quer dizer, quanto  ela tem a dimensão do que é essa experiência, para não virar uma experiencia selvagem, quanto ela está se submetendo com um certo conhecimento de causa e se sua organização psíquica está  constituída para que ela possa arcar com sua subjetividade.. É justamente o que temos como questão em relação a criança porque, de alguma forma, ela está submetida à demanda dos adultos. Essas são questões que Anna Freud tinha como mote...

JD: Que vão dar origem às Controvérsias...

MO: Sim... toda a querela das Controvérsias, mas que também acho que a gente continua se batendo com elas, de uma outra forma mas continuamos nos perguntando, por exemplo, eu acho que o pensamento kleiniano tem uma série de aberturas que são importantíssimas mas que, ao mesmo tempo, não dá mais pra gente sustentar a ideia de um sujeito já organizado desde o início, reagindo com um ego constituído, mesmo que de forma incipiente.

JD: Mesmo porque nós lidamos com a questão das psicoses, do autismo...

MO: Exatamente, então com que sujeito estamos falando? De que sujeito se trata? Com quem estamos estabelecendo o contrato? Acho que essa questão amplia o campo e, deste ponto de vista, a psicanálise tão estrita só funcionaria para sujeitos neuróticos, quase normais.

Isso leva a uma outra questão: qual é o alcance da psicanálise? Valeria a pena dizer que estamos fazendo outra coisa? Então, para onde estamos caminhando também é uma outra questão. O meu tempo foi o de justamente apostar na psicanálise e tentar dar corpo a ela porque ela estava meio fora de campo; o que estava em voga era um operador mais objetivo, o comportamento, o visível e estávamos apostando no que na minha época chamávamos de motivação, que era algo que não se podia detectar, verificar, observar – então era uma coisa quase que totalmente tomada como esotérico, num certo sentido. Então fomos trabalhando a possibilidade de dar outras possibilidades de a psicanálise poder ser visível no campo e para isso a gente estudava teoria do conhecimento, Filosofia, Sociologia, Antropologia para embasá-la em outros fundamentos que não as Ciências Naturais. A ideia era pensar a questão do humano numa outra teoria do conhecimento.

Mas essas questões vão e voltam e a gente vai vendo na História, que é cíclica, mas, como eu sempre brinco, só espero que não seja um círculo vicioso e que a gente consiga, pelo menos, fazer uma espiral de vez em quando. Hoje estamos passando pelos mesmos lugares, também na questão da Lei Antimanicomial. Foi uma época [a minha] também que psicanálise sustentou todos os trabalhos institucionais, então ela também ajudou a abrir esse campo.

Em relação às crianças acho que é uma questão que permanece e que nós fomos construindo algumas hipóteses para poder pensar o campo. Acho que aí também acabam entrando as ideias mais laplancheanas que acabaram fazendo efeito para nós através da Silvia Bleichmar que também pensou em algo intermediário entre o constituído e o não constituído que é a ideia do simbolismo de transição, a ideia da fundação do inconsciente. Nesse sentido, acho que a ideia da pluralidade por um lado é tensa e complexa, especialmente para os alunos... Ao mesmo tempo que é interessante, cria uma certa dificuldade porque  você tem de dialogar com várias ideias que  dizem respeito ao mesmo objeto de formas diferentes e conseguir que isso simplesmente não vire um amálgama a partir de um pedaço de cada, mas conseguir ter uma certa ideia crítica sobre isso, demanda tempo. Acho que esse é o desafio que a gente [enquanto Departamento] tem se perguntado, mas tem topado lidar por uma série de circunstâncias, não só ideológicas, mas objetivas também.

Eu assisti uma conferência há muitos anos, da Piera Aulagnier, em que ela dizia que todo analista tem que ter sua metapsicologia de bolso. Então, veremos que alguns vão fazer uma grande mistura, outros que talvez tenha feito uma boa costura ou que tenham sabido circular entre os vários autores de uma forma que pode ser criativa, instigante, que abra espaço. A gente espera que esse seja o caminho, nós buscamos que não aconteça esse amálgama, mas existe um percurso que cada analista vai ter que sustentar para construir sua metapsicologia de bolso.

JD: Quais as razões de o curso ter virado Departamento?

MO: Eu fico pensando que fizemos um projeto que tinha a ver com a história, o momento que estávamos vivendo, e estamos chegando também em impasses porque por um lado é um projeto relativo à psicanálise e também está ligada às políticas de saúde, ao momento desse país e que agora, com essas várias questões que estamos vivendo, está havendo uma reavaliação desses projetos todos com essa mudança de governo. E isso é preocupante, quando pensamos na linha do retrocesso que está acontecendo, mas, ao mesmo tempo, têm uma série de construções que foram feitas que precisamos avaliar, o que resiste e o que vale.

Então eu também estou com uma interrogação de para onde estamos indo, em todos os sentidos, inclusive em relação à psicanálise com todas essas tecnologias atuais, com a retomada da teoria comportamental e procura de terapeutas comportamentais. Acho que tem um espaço que está realmente sendo ocupado por todas essas outras ideias e precisamos ver como elas estão circulando no campo. E nesse sentido não sei com o que a psicanálise vai ter que dialogar e qual vai ser o caminho. Ela passou muito tempo feudalizada na sociedade e o Sedes e as universidades foram importantes para que ela pudesse crescer aqui.

JD: Somos um dos únicos lugares que se sustenta sistematicamente como formação de psicanálise com crianças em São Paulo. Quais as possibilidades, ainda que não exploradas, e as dificuldades de se manter esse espaço?

MO: Acho que a questão das crianças vai continuar porque elas ganharam espaço no social. Já estamos há vinte anos do século passado, mas a criança que ganhou espaço no final do século passado virou um campo muito específico e que tem investimento alto. Não sei se exatamente um investimento na subjetividade, mas num sentido de um consumidor interessante e numa certa ideia de preservação mesmo, de futuro, mas não sei também que futuro se pretende para essas crianças.

Podemos pensar que o Departamento foi uma conquista mesmo que de início não fosse uma proposta. Manter o curso e pesquisar a respeito dessa particularidade sobre a criança, achamos que era um campo importante e que valia continuar. Em relação ao Departamento, como no Sedes já havia alguns departamentos e a maioria de nós vinha do Departamento de Psicanálise, a gente já tinha pai, não precisava criar outro. Então não tínhamos essa preocupação tão imediata. Promover Colóquios e Jornadas sempre existiu como parte do curso. Estávamos preocupados em reformular o curso, que existia desde a década de 1950. O curso tem se mantido porque atualmente é psicanálise, mas na verdade o que o fundamenta é a criança e os espaços para trabalhar isso mais sistematicamente não tem se mantido. Mas que tipo de espaço vamos encontrar para trabalhar as questões específicas das crianças é que fica como questão e como também isso depende dos tempos históricos, não sabemos o que vai acontecer... não saberia dizer.

JD: Fico pensando se o fato de o Departamento sustentar o olhar para a subjetividade da criança, ou para a criança como sujeito em constituição, não seria justamente o que o sustenta, embora também o tensione.

MO: Acho que em relação a isso há duas questões. Uma é sustentar a questão da subjetividade, que é essa que você colocou. É essa a nossa proposta. E outra que é do ponto de vista mais mercadológico ou mais objetivo de se manter porque criança é um campo que demanda atuação. Não sei exatamente qual é a questão que move as pessoas em relação a isso, mas há uma demanda. Antigamente dividíamos o campo com outras vertentes psicológicas, agora mais a Comportamental. Nossa tentativa é propor que [a psicanálise com crianças] é algo viável e que estamos trabalhando para que os conceitos analíticos operem nesse campo. A nossa especificidade é não só pensar na viabilidade de uma intervenção ou aplicação técnica, de caráter mais funcional, e sim, sustentar a psicanálise com crianças como uma particularidade dentro da própria psicanálise, pensar o brincar, o lugar dos pais, indagações mais especificas que esse curso se propõe.

O curso foi aumentando, as pessoas foram ficando mais aderidas e houve uma ampliação dos cursos que foram precisando de uma estrutura mais própria. Por um lado, virar um Departamento não foi uma demanda nossa, mas foi uma proposta para vermos como isso ia acontecer e se desenvolver. E acho que foi uma boa invenção, algo que foi permitindo uma apropriação maior desse campo e uma tentativa de continuar essa sustentação que só o curso não poderia dar. A formação do Departamento ajudou a mobilizar não só a questão da psicanálise com ou da criança, mas também explorar as fronteiras com outras disciplinas como a medicina, o serviço social, a educação, disciplinas que também têm outras dificuldades em relação à criança devido às várias demandas e transferências. Sem necessariamente pensar numa preocupação integradora, que na verdade não parece possível, mas também para não ser um olhar tão fragmentado. São discursos diferentes que simplesmente não podem ser sobrepostos, mas é importante que a gente consiga circular entre eles de uma forma mais produtiva.

   
 

1 Ana Maria Poppovic nascida na Argentina, Ana Maria Belotti — seu nome de batismo — veio para o Brasil aos seis anos de idade. Aqui, naturalizada brasileira, construiu sua vida. Formou-se em pedagogia, especializou-se em psicologia clínica. Doutora em ciências psicológicas, encaminhou-se decididamente para o campo da psiconeurologia e da educação, em busca das causas de problemas psicológicos em crianças que lhe chegavam em seu trabalho como psicóloga clínica. Como diretora do Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, durante nove anos desenvolveu e orientou pesquisas e teses. Como pesquisadora, empenhou-se em analisar os fatos que direta ou indiretamente influíam no processo de aprendizagem.

2 Termo francês originado do termo Nachträglichkeitde de Freud e conhecido em português como a posteriori ou só-depois.

3 Silvia Fendrik, psicanalista, nasceu, viveu e morreu em Buenos Aires em 2014. Desde seu primeiro artigo, publicado em Actualidad Psicológica em 1976, suas contribuições à psicanálise, sustentadas por uma experiência clínica frutífera, continuaram a se desenvolver em conferências e seminários ministrados na Argentina e no exterior, e em numerosos artigos publicados por revistas locais e estrangeiras. Em suas publicações ela revelou as vicissitudes do nascimento e a consagração da psicanálise infantil além de ideias originais sobre a anorexia.

 

 
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