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PSICANÁLISE COM CRIANÇAS DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

ANO VI | Número 10 | edição de janeiro a junho 2019
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Entrevista com Marie-Claude Thomas

junho 2019
   

 

"Não há psicanálise de criança. Há psicanálise."

Entrevista com a psicanalista Marie-Claude Thomas, realizada em junho de 2019, à ocasião da realização do evento "Repensando a psicanálise: Marie-Claude Thomas em São Paulo”.

 

*Participaram desta entrevista: Adela Stoppel de Gueller, Ricardo Goldenberg, Lia Rudge e
Alessandra Barbieri (pelo Boletim Eletrônico)

Adela: Marie-Claude, você pertence à École Lacanienne de Psychanalyse. Como é a relação dessa instituição com o restante do campo freudiano de psicanálise?

Marie-Claude: Bom, não é o único grupo que se intitula "lacaniano", mas o primeiro que assim o fez. Muitos guardam as expressões "campo freudiano", "Sigmund Freud", "freudiano", etc. Depois, Charles Melman chamou seu grupo de Associação Freudiana Internacional, e Lacan mudou para Associação Lacaniana Internacional. Da parte do criador da Escola Lacaniana de Psicanálise, foi um movimento forte, em termos políticos, no campo psicanalítico parisiense, e internacional também, de criar uma "escola", que portasse o nome "escola", e não associação; "lacaniana" e não "freudiana".  

Adela: Quem são as pessoas que procuram a instituição da qual você faz parte?

Marie-Claude Thomas: São pessoas que estão interessadas nos trabalhos que são desenvolvidos lá, além de muitos pacientes.

A: Há algum tipo de seleção para o ingresso de analistas que desejem realizar sua formação?

MCT: É um processo interessante: aquele que quiser entrar para a Escola deve fazer um pedido ao diretor da instituição e se apresentar no próximo encontro de membros, dizendo o que quer, porque se interessa, etc. Ao final, fazemos algumas perguntas, nem sempre muito gentis, mas ninguém pode vetar esse ingresso. Após essa espécie de pequena prova pública, o candidato diz se deseja ficar ou não. Paga-se uma determinada quantia e, então, pode-se realizar diversas atividades dentro da Escola.

A: Há um percurso pré-determinado para a formação?

MCT: Não, a formação é a análise pessoal. De resto, cada um escolhe seu percurso: há trabalhos em grupo, seminários, colóquios, etc.

A: E não há uma formação específica para ser analista que trabalha com crianças?

MCT: Bem, na Escola Lacaniana de Psicanálise, a criança é mal vista (risos).

A: Então, é quase uma exclusão das crianças…

MCT: Não se trata exatamente disso, mas sim, de que não há psicanálise da criança.

A: Mas, com sua experiência com analistas que trabalham com crianças, pensa que é necessário realizar algum estudo específico para analisar crianças? Por exemplo, se pensamos na questão do jogo...

MCT: Bom, todos leram os meus livros sobre a técnica do jogo.

A: E somente essa leitura basta? Digo, para a formação desse analista?

MCT: A leitura, somada à experiência clínica com crianças, são suficientes. Não há um curso específico para que o analista trabalhe com crianças. Ou então, trata-se de analistas que aprendem isso na faculdade de psicologia, englobando a psicologia clínica, a psicologia desenvolvimentista, as teorias de Melanie Klein, etc.

A: E é suficiente?

MCT: Eu diria que é demais até!

Ricardo Goldenberg: O infantil é uma questão de posição no discurso, e não da realidade biológica ou fisiológica. Isso é confundido todo o tempo.

MCT: Sim, digo sempre que o infantil é uma palavra irruptiva, aquilo que faz interrupção no discurso, em qualquer que seja a idade.

A: Concordo. Mas temos que escutar também o discurso dos pais sobre a criança. E também escutar os pediatras, a escola, enfim, a incidência social desse sujeito.

MCT: Claro, é um discurso proferido por muitas bocas. E temos aí o lado empírico da realidade do nosso paciente, mas que temos que tomar o cuidado de guardarmos nossa posição.

A: Penso que há uma especificidade nessa clínica que se traduz como uma disposição diferente, que não percebo nos analistas que trabalham somente com adultos, uma espécie de abertura para escutar todos esses discursos, de uma maneira muito específica, para a qual temos que dar lugar pois marca de modo singular a posição da criança.

MCT: Não podemos excluir isso, já que é o que chega junto com a criança. Mas friso que, seja na instituição, seja no consultório privado, é necessário escutar a criança. A exigência do nosso trabalho é muito particular e não podemos coloca-la sobre o plano da realidade, mas sim, sobre o plano do discurso. De qualquer forma, não é nada fácil!

A: Sim, levando-se em conta que temos que lidar também com a demanda que se faz ao analista de crianças para que os pequenos tenham bom rendimento nos estudos, que não molhem a cama, que durmam bem, que sejam domesticados. Há uma pressão muito grande para que tratemos dessas questões.

MCT: Mas nosso trabalho implica fazer outra coisa que não responder a essas demandas!

A: Exatamente. Mas creio que todo esse entorno marca uma diferença no trabalho.

MCT: Penso que a análise com crianças é bem mais difícil do que a feita com adultos. Só que, em geral, começa-se pelos pequenos. Meu início foi com jovens adultos psicóticos em um hospital psiquiátrico. As crianças vieram depois e aí percebi essa dificuldade de que você fala.

A: Meu primeiro trabalho foi em um hospital-dia, com crianças psicóticas, autistas, com paralisia cerebral, e me perguntava o que estava fazendo. Geralmente, os mais jovens acabam pegando os casos mais graves, o que deveria ser o contrário, se levarmos em conta a trajetória de formação de um analista.

MCT: Com relação ao discurso e às demandas em torno da criança, creio que são questões a serem levadas em conta, nunca para se deixar ser comandadas por elas. E há um momento em que se deve dizer "basta"! Faço meu trabalho, pouco a pouco, veremos os efeitos que ele terá.

A: Porém, se dizemos isso aos pais, geralmente eles abandonam o tratamento.

MCT: Mas eu digo basta a mim mesma somente, claro (risos).

A: Uma outra questão que gostaria de perguntar-lhe diz respeito à diferença entre França e Brasil, com relação à forma de pensar a saúde mental no serviço público. Entre nós aqui, há atualmente, um forte ataque à Reforma Psiquiátrica que tem sido realizada no país, há uns 30 anos, sob a influência das concepções da psiquiatria italiana de desmanicomialização, que fechou hospitais psiquiátricos, opondo-se a qualquer tipo de internação e fortalecendo o uso dos hospitais-dia. No entanto, percebe-se, no novo governo, uma grande tendência ao retorno da internação compulsória dos usuários desses serviços. Há também uma dificuldade de articulação entre os dispositivos de saúde mental e a escola, agravando ainda mais a possibilidade de inclusão escolar, exigindo dos pais um grande esforço para se ocupar de seus filhos, principalmente daqueles mais graves. O que escuto de diferentes instituições que trabalham com crianças na França é que o suporte do Estado, que se ocupa das crianças e deixa os pais mais liberados, é bastante expressivo.

MCT: Na França, há instituições nas quais as crianças são internadas, e há aquelas em que as crianças passam o dia e depois retornam a suas casas. Temos muitos hospitais-dia, frequentados a semana toda e, durante o período em que lá estão, as crianças têm a possibilidade de ir para a escola também. Quanto à educação, as crianças podem participar de aulas que são dadas por professores dentro da instituição ou deixar o hospital-dia para irem à escola. Primeiramente, elas frequentam a escola durante metade de um período do dia e, depois, se se saem bem, passam a frequentar a escola durante todo o dia, o que chamamos de "integração". Lembro-me, por exemplo, um garotinho chinês que chegou na instituição com o diagnóstico de autismo. Era uma criança difícil. A escola não queria que ele frequentasse, mas eu disse aos pais que o mantivessem lá. Ao final de seis meses, ele começou a ir à escola. No início, por metade de um período e, depois, por um período inteiro. Ele permaneceu no hospital-dia por 3 anos.

A: No Brasil, são bastante escassas essas instituições onde as crianças possam ficar durante todo o dia e voltem aos cuidados dos seus responsáveis somente ao final do dia. Nem mesmo a escola pública, que hoje abriga a criança por somente quatro horas. Isso obriga os pais a se ocuparem dos seus filhos, em um nível doméstico, durante muitas horas ao dia, o que marca uma diferença importante entre os dois países, com relação ao cuidado que o Estado provê.

MCT (para Adela): Outro dia, você mencionou a expressão “Le Savoir de la Langue” (O Saber da Língua). O que você quis dizer com essa expressão?

A: Tenho pensado sobre o que fica recalcado na língua a partir do estudo da história das palavras. Estou lendo um livro bem interessante de L. C. Pereira Júnior, que se chama Com a língua de fora: a obscenidade por trás de palavras insuspeitas e a história inocente de termos cabeludos. Ali se conta, por exemplo, como a palavra “puta” acabou derivando depois de muitos rodeios na palavra “putta”, significando “menina”, e “puttu” significando “infante”. A partir disso, me pergunto sobre o que conseguimos escutar e sobre o que fica recalcado na língua.

MCT: Essa expressão que você utilizou me chamou a atenção porque estou desenvolvendo um trabalho junto a uma equipe, no momento, sobre Lacan e o saber da língua francesa. Trata-se de como Lacan encontrou, no francês, uma maneira de “dizer os conceitos”. Nós nos debruçamos sobre os Seminários – somos em muitos porque se trata de uma empreitada bem trabalhosa – e, a cada vez que encontramos uma utilização da língua, quer seja por neologismo, quer seja por uma palavra que “diz” o conceito que Lacan deseja expressar, mas que não pertence ao vocabulário psicanalítico, marcamos como ele utiliza o “saber da língua” para dizer a psicanálise.

A: Depois de nossas conversas sobre as marcas que encontramos na língua, lembrei-me que uma das coisas que Melanie Klein pedia aos pais de seus pequenos pacientes era para lhe contar como chamavam os órgãos sexuais dentro de cada família. Isso diz de como é importante saber quais são os significantes que circulam em cada grupo familiar. Faz toda a diferença como os escutamos.

MCT: Sim, concordo.

A: Mudando o assunto, gostaria se saber um pouco sobre seu contato com Lacan. Como é que você o conheceu? Fez análise com ele durante quanto tempo? Fez outra análise após essa experiência?

MCT: Bom, eu queria ser etnóloga. E, para tanto, era necessário fazer uma matéria na faculdade de ciências humanas. Escolhi a Psicologia. Então, eu morava na cidade de Tours e estudava Psicologia. Na universidade, havia um professor de Literatura Comparada que lia Lacan em suas aulas. Decidi frequenta-las e as achei extraordinárias: a maneira como Lacan se utilizava da língua, sua forma de pensar a loucura, tudo era maravilhoso! E então, aos 21 anos, ainda estudante em Tours, fui até uma agência de correio e fiz uma ligação para marcar um horário com Lacan (eu não possuía telefone, nessa época). Sua secretária passou a ligação para ele, que me disse, com uma voz baixinha: “venha me ver na quarta-feira”. Bom, durante anos, eu fiz o caminho Tours-Paris para analisar-me com Lacan.

A: Você se lembra da impressão do primeiro encontro?

MCT: Quando cheguei em seu consultório, chamou-me bastante a atenção o fato de que ele falava como eu, como nós (rs). Foi uma aventura extraordinária que durou 10 anos! Um belo dia, em junho de 1981, resolvi não ir mais. E em 9 de setembro do mesmo ano, no hospital-dia no qual eu trabalhava, contaram-me que Lacan havia morrido. Lembro-me que ele tinha por hábito tirar férias a partir de 14 de julho para retomar em setembro. Quando eu soube de sua morte, fiquei aliviada que havia decidido parar de vê-lo antes das férias.

A: Analisava-se com que frequência?

MCT: De 3 a 4 vezes por semana. Lembro-me que eram sessões bem curtas.

A: Você assistiu aos seminários?

MCT: Sim. Comecei a frequentá-los em 1971, em Sainte-Anne. Tratava-se do seminário “...Pior” (em francês, “Ou Pire et le Savoir du Psychanalyste”).

A: Você os frequentava ao mesmo tempo em que fazia sua análise? Ele convidou-lhe para assistir aos seminários?

MCT: Era na mesma época de minha análise. Mas ele não me disse nada. Na verdade, éramos um grupo de colegas, em torno da revista “Ornicar”. Eu estava casada com um escritor e poeta que fazia parte desse grupo de jovens analistas que eram próximos de Jacques Alain-Miller.

A: E a aproximação com o estudo de Melanie Klein se deu nessa época?

MCT: Foi mais tarde, quando eu trabalhava no hospital-dia, em 1979. Eu ainda estava em análise com Lacan.

A: E há outros psicanalistas que trabalham com crianças pelos quais você se interessa? Quais?

MCT: Aprecio muito o trabalho de Michèle Faivre-Jussiaux, cito-a inclusive em meu livro. Ela escreveu sobre o mal-estar do tratamento.

A: Eu a conheço, ela assina o verbete sobre autismo, no Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, do Pierre Kaufmann.

MCT: Sim, eu o li, é muito bom. Ela tem uma visão crítica sobre o autismo.

Lia Rudge: Como estamos nos aproximando final da entrevista, não gostaria de perder a chance de ouvi-la um pouco sobre a questão que começou a nos contar sobre o jogo, durante nosso evento. Você disse que pensou na função do jogo como oficina da metáfora e que essa hipótese foi extraída das questões aristotélicas e pascalinas do jogo. Pascal une jogo, matemática e fé, e chamou a atenção para a questão da aposta. Eu gostaria de saber um pouco mais sobre esse tema.

MCT: Ao ler Melanie Klein, quando ela fala sobre o jogo como substituto da associação livre, minha curiosidade foi de tentar relacionar aí a linguagem, nos seus aspectos de metáfora e metonímia. Minha hipótese é que o jogo tem uma função de oficina da metáfora. É onde vai haver a substituição de um gozo (e é isso o recalcamento originário, de qualquer forma) pela criação, daí a utilização das palavras “laboratório”, “oficina”, expressões que utilizo no meu livro “Lacan, leitor de Melanie Klein”.

LR: E onde entram os filósofos?

MCT: Interessei-me por pesquisar o jogo antes de Freud e Melanie Klein, sobretudo, o que os filósofos disseram sobre o assunto. Comecei por Aristóteles, e descobri, muito espantosamente que o jogo é, de início, visto como aquilo que ele chamava de o “bem absoluto”, o “fim supremo do homem”, para, logo depois, ser desqualificado pelo filósofo. As razões para essa desqualificação são porque o jogo não é sério, traz um prazer de corpo, é viciante se o jogamos demais. Bom, essas razões são, no fundo, a definição do jogo até hoje. Huizinga, filósofo que escreveu coisas muito interessantes sobre o jogo, mas bem mais tarde, vai abordar esses aspectos também. E depois, eu cheguei às extraordinárias construções de Pascal sobre a aposta. Há uma historiadora da ciência, chamada Catherine Chevalley, que escreveu um livro que se chama “Pascal, Contingence et Probabilités”, que me ajudou muito. Ela é bastante precisa em suas análises. No século 17, as pessoas jogavam muito, e apostavam dinheiro. Quando uma partida de jogo de cartas se interrompia, antes que houvesse um ganhador, era necessário calcular a repartição do dinheiro que restava, o que era feito de modo muito empírico. Pascal conseguiu resolver matematicamente essa questão, colocando a condição de que a aposta inicial estaria perdida, ou seja, a aposta inicial que os jogadores fizeram não os pertenceria mais, estaria perdida para sempre. Para Lacan, essa construção era extraordinária e ele se aproveita dela para pensar aquilo que nomeia, por vezes, de “aposta analítica”, a problemática da transferência, do objeto a, da Verdade e do final da análise (finita ou infinita).

A: Vou interromper um pouco seu raciocínio porque pensei que há uma ideia que, com essa concepção de jogo, de aposta, ele altera a ideia de verdade, já que começa com a questão da probabilidade...

MCT: Absolutamente. Somente que Pascal não fala de probabilidade, mas de aposta. Probabilidade é um termo dos jesuítas. Mas a questão da Verdade, você tem razão, é bastante importante nesse contexto. É necessário que se aposte no incerto e é isso que vai se tornar a Verdade. Então, para Descartes, e seus contemporâneos, a Verdade é dada pela transcendência. Ele tinha uma formação clássica (ou seja, nada de Aristóteles), enquanto que Pascal fora formado por seu pai e pelos seus colegas, que eram matemáticos. Dessa forma, ele escapou completamente à formação clássica de sua época. A verdade para Descartes era o que vinha de Deus, todo um sistema de pensamento que se encadeia a partir daí, enquanto que para Pascal era apostar pelo incerto e a repetição, e isso que daria a certeza, e não a verdade. E então, Lacan fez do sujeito de Pascal, o sujeito do desejo. Para Descartes, o sujeito do pensamento era o sujeito da ciência; para Pascal, tratava-se do sujeito do desejo. É muito bonito o seminário “De um outro ao Outro” (sem. 16), no qual Lacan fala dessas ideias. Penso que, para o trabalho com crianças, apostar pelo incerto me ajuda muito, principalmente nos casos mais difíceis: é tomar aquilo que nos chega e apostar no incerto.

A: Creio que essa questão sobre a probabilidade transformou bastante a ideia de Ciência, o que me leva a pensar no uso da Estatística, atualmente. E a origem disso tudo é o trabalho de Pascal.

MCT: Sim, Pascal inventou uma máquina de cálculos, ele participou da criação de uma sociedade de ônibus em Paris, ele se correspondia com Pierre de Fermat, um matemático famoso, era um verdadeiro homem da ciência, mas também com um lado irracional, com sua fé, sua aposta em Deus. Se localizamos a racionalidade do lado de Descartes, poderíamos atribuir a Pascal uma certa irracionalidade. De fato, duas figuras opostas. A Estatística apresenta a versão mecânica, científica da probabilidade. Mas Pascal mostrava também o lado da aposta e da fé, que não está compreendida na Estatística.

A: Não sei como isso se passa na França, mas, atualmente, após o DSM e toda essa epidemia de diagnósticos, a questão da Verdade, os ataques à Psicanálise, questionando se ela é científica ou não, tudo isso é embasado pelo critério da Estatística. E temos um exemplo forte disso nas questões que vivemos hoje sobre o autismo, principalmente quando nós, psicanalistas, somos convidados a conversar com o Governo e demandados a apresentar os números de casos com os quais trabalhamos. A questão é como podemos quantificar isso, para a saúde pública se esses resultados numéricos não existem?

MCT: Bom, já de partida, deve-se levar em conta isso que você acaba de dizer: como fazer existir algo que não existe?

A: Sim, pois consideramos um a um, caso a caso. É o critério que temos.

MCT: É isso que temos, é isso que podemos dizer, no mínimo. Mas, de fato, é uma dificuldade porque são duas maneiras diferentes de considerar a loucura que são díspares.

A: Temos aí também a dimensão de como nós, psicanalistas, falamos com as demais áreas da saúde, e com as outras áreas que fazem interface com nosso trabalho. Sobre o que é importante falar, o que transmitir?

MCT: De fato, eu não sei muito bem como falar com os outros; então, eu escrevo (risos). Creio que eu seria incapaz de ir a uma reunião como essa de que você fala. Temos um papel de cidadãos, um papel na política da psicanálise, e aqueles que se predispõem a discutir nesses contextos, muito melhor.

A: Mas essas perguntas que me faço não concernem somente às conversas com o governo, mas também para conversar com os médicos, com a escola, os educadores, os pais. Coloco-me sempre a pergunta sobre o que é importante de dizer nesses momentos.

MCT: Acho que não há uma resposta mais geral, mas é caso a caso. De outra forma, somos massacrados por essa missão que nós mesmos nos damos.

A: Mas não penso somente nas situações de conversa, mas, por exemplo, na escrita de um texto, que não será lido somente por psicanalistas.

MCT:Não podemos convencer aqueles que não estão prontos a serem convencidos.

A: Não me parece que seja convencer, mas poder trocar com os demais. Você já disse que a questão com Lacan não é a comunicação, mas intercambiar palavra. Penso algo assim. Que palavras podemos trocar com aqueles que não são psicanalistas, mas que, talvez, interessem-se pela infância ou interroguem-se sobre o autismo.

MCT: É necessário que se fale com a voz que possa ser escutada. À época das últimas eleições na França, no último debate entre Macron e Marine Le Pen, ele evocou os autistas e os deficientes, como seu último argumento. Escrevi a ele depois, dizendo que ele evocou algo muito importante e que havia muitas maneiras de conceber essas questões, e que eu estava pronta a discutir com ele sobre esse assunto. Mas, silêncio total da parte dele. Eu tentei. Uma bela carta, escrita à mão, e um e-mail. Talvez uma garrafa jogada ao mar. Mas eu trabalho dessa forma, não tenho um programa para mudar a sociedade, acho que é impossível. Me dei conta disso em 1968, quando era militante. Por outro lado, resolvi escolher um pequeno espaço de ação como psicanalista, fazendo meu máximo ali, no meu trabalho. E todo projeto político que eu tinha se reduziu a esse espaço. Minha política é a psicanálise e eu não quero misturar as duas áreas. Não quero que o tratamento seja um lugar de discussão política, ou de orientação política. Tenho convicção de que manter o dispositivo do tratamento psicanalítico é uma posição política também.

A: Sim, absolutamente. Esses parênteses no cotidiano, que é o processo de uma análise, também é uma posição política que tem suas consequências.


 
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