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PSICANÁLISE COM CRIANÇAS DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

ANO VI | Número 10 | edição de janeiro a junho 2019
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  Resenha do livro "As crianças de Asperger"
Elisabeth Roudinesco
   
  RESENHA DO LIVRO AS CRIANÇAS DE ASPERGER, DE EDITH SHEFFER, ESCRITA POR ELISABETH ROUDINESCO PARA O LE MONDE DES LIVRES, SUPLEMENTO DO JORNAL LE MONDE, PUBLICADA EM 29 DE MARÇO DE 2019, E TRADUZIDA PARA O PORTUGUÊS POR LIA NAVEGANTES.

 

Em seu livro As crianças de Asperger, a historiadora Edith Sheffer apresenta Hans Asperger como nazista e assassino de crianças.

O psiquiatra austríaco impôs seus pontos de vista e seu nome no estudo do autismo até os dias de hoje. No entanto, ele foi o maior responsável pela implementação da política de eutanásia em crianças ditas “anormais" praticadas pelos nazistas na Áustria.

Asperger’s Children. The Origins of Autism in Nazi Vienna, de Edith Sheffer, traduzido do Inglês (EUA) para o francês, sob o título de Les Enfants d’Asperger. Le dossier noir des origines de l’autisme1 , por Tilman Chazal, Flammarion, coleção " Au fil de l’histoire ", 398 p., € 23,90.

Professora de história na Universidade de Berkeley (Califórnia), Edith Sheffer oferece em seu livro As crianças de Asperger, uma infinidade de elementos a serem levados em conta tanto sobre a questão do autismo como sobre Hans Asperger (1906-1980), psiquiatra austríaco, suposto inventor da famosa síndrome, mas que na realidade era um criminoso sombrio.

Sem qualquer exagero, descreve o percurso deste "bom doutor", culto e rígido, católico fervoroso, casado e pai de cinco filhos, até tornar-se, sob a orientação de seu mestre Franz Hamburger (1874-1954) e em interlocução com seus colegas Erwin Jekelius (1905-1952) e Heinrich Gross (1915-2005), um dos principais arquitetos da política de eutanásia de crianças ditas “anormais" implementada pelos nazistas na Áustria, dois anos após Anschluss2 , como parte do programa "Aktion T4",  (1940-1945).

Alinhados as leis da eugenia, esses cientistas e seus cúmplices - enfermeiros e médicos – se intitulavam benfeitores da humanidade. Pretendiam, tal qual seus homólogos alemães, aliviar as crianças cuja "vida não valia a pena ser vivida", alegando que esses pequenos pacientes não manifestavam qualquer Gemüt - termo genérico para designar a alma, a emoção, a sociabilidade. Dotados de boas intenções, realizaram o programa de extermínio no quadro da Sociedade de Pedagogia curativa da Universidade de Viena e nos espaços onde emergiram a psiquiatria infantil moderna de orientação humanista, socialista ou psicanalítica: em especial a Spiegelgrund, clínica anexa ao magnífico hospital Steinhof.

Uma verdadeira hierarquia
Apoiada em arquivos minuciosamente estudados, Edith Sheffer mostra como Asperger tomou para si o termo "autismo” inventado em 1907 pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939) para descrever um fechamento em si de origem psicótica e a falta de qualquer forma de contato, podendo chegar até ao mutismo.

Adepto da ideologia nazista, ele se afasta da abordagem de Bleuler para criar a categoria de "psicopatia autística", o que lhe permite diferenciar os "irrecuperáveis", enviados para Spiegelgrund3 , dos "corrigíveis", capazes de Gemüt e dignos, portanto, de sobreviver: uma verdadeira hierarquia mortífera.

A autora descreve as atrocidades cometidas em nome dessa doutrina sinistra: curas de enxofre e vômitos, tortura, execução por injeção letal. Pessoalmente responsável pelo assassinato de 44 crianças, Asperger publica em 1944, um trabalho no qual teoriza a diferença entre duas categorias de "psicopatia autística": a "positiva" e a "negativa". Após a queda do nazismo, ele permanece em Viena e consegue se fazer passar por salvador das crianças que não foram exterminadas. Igualmente, ele dá continuidade a uma carreira de sucesso nos mesmos lugares e com a mesma abordagem. Quanto a Hamburger e Gross, eles receberão inúmeras honrarias, ao passo que Jekelius, capturado pelo Exército Vermelho, terminará seus dias em um campo de trabalho forçado, após confessar seus crimes hediondos.

Enquanto isso, o psiquiatra Leo Kanner (1894-1981), judeu vienense que emigrou para os EUA em 1924, deu continuidade ao trabalho de Bleuler ao retirar o autismo infantil precoce do campo da psicose.

Ele então o descreveu como uma incapacidade da criança, desde o nascimento, para estabelecer contato com o seu ambiente: isolamento extremo, gestos estereotipados, violência autodestrutiva, distúrbios de linguagem. Ou a criança nunca fala ou ela usa um idioma desprovido de sentido, sem ser capaz de distinguir qualquer alteridade. A partir de 1943, a síndrome de Kanner se torna o principal paradigma da definição de autismo.

Desconhecido do grande público, Asperger retorna à cena e republica sua tese em 1944, agora cuidadosamente “desnazificada”. Em 1970, ele conhece a psiquiatra britânica Lorna Wing (1928-2014), mãe de uma criança autista, que dará um impulso considerável ao seu trabalho. Segundo ela, Kanner e Asperger descrevem duas facetas diferentes de um mesmo espectro autístico. Asperger rejeita essa ideia e replica que ao contrário, é necessário distinguir os autistas superiores dos autistas inferiores.  O "bom doutor" reintroduz assim, sob uma nova roupagem, a concepção nazista de "psicopatia autística".

Asperger morre dez anos mais tarde, no momento em que, ignorando os crimes que ele cometeu em Spiegelgrund, Lorna Wing inventa a famosa "síndrome de Asperger" para definir um tipo de autismo chamado de "alto nível". Esta, caracterizada por uma falta de alteração na linguagem e uma capacidade extraordinária de memorização. Ao longo dos anos, o termo será retomado nas diferentes versões do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (ou DSM).  E é assim que milhões de pessoas em todo o mundo ditas "autistas Asperger", hoje ostentam orgulhosamente esse nome para se distinguir “dos autistas de baixo nível" descrito por Kanner. Eles ignoram que este é o nome de um criminoso nazista.

Um debate infernal
Através de um estratagema trágico da história, o conceito de autismo tornou-se a questão de um debate infernal, levando primeiro a eliminar vidas e, em seguida, a classificar as existências atípicas com a ajuda de uma síndrome edificada sobre a hierarquia de uma patologia boa ou má.

Para concluir, Edith Sheffer dá a palavra ao seu filho, a quem o livro é dedicado. Diagnosticado com autismo aos 17 meses de vida, ele explica como se sentiu humilhado na escola por esta designação, a ponto de rejeitar qualquer ideia de síndrome: "O autismo não é uma deficiência ou diagnóstico é um estereótipo para alguns indivíduos. As pessoas com autismo deveriam ser tratadas como as outras, porque se elas não o são, isso irá torná-las ainda menos sociáveis. "

Ao concluir essa investigação magistral, Edith Sheffer se pergunta, com toda razão, se não devemos abandonar essa assustadora "síndrome de Asperger": fonte de polêmica, de discriminações, derivas, sofrimentos e estupidez. Desejamos que ela seja escutada.

Esclarecimento

A mania das classificações discriminantes
Na França, As crianças de Asperger não deixará de ser explorado no debate que há anos opõe os edipianos fanáticos, seguidores da culpabilização das mães, aos anti-freudianos radicais, adeptos da reabilitação comportamental de crianças autistas. Isso sem contar os doutores Folamour, convencidos de que o autismo é causado por pesticidas ou antibióticos.

Este retorno à história, realizada por Edith Sheffer sobre as origens de uma síndrome em Viena no período nazista, tem muito pouco a ver com a exumação de qualquer “dossiê negro", como levianamente indica o subtítulo da edição francesa. Nem livro negro nem discurso a favor da eficácia de um tratamento em detrimento de outro, esta obra mostra para qual tipo de delírio a mania de estabelecer classificações discriminatórias pode levar. É o que também aponta em seu prefácio, Josef Schovanec, que foi diagnosticado inicialmente com esquizofrenia e em seguida Asperger, antes de se libertar deste "magma pútrido".

Elisabeth Roudinesco
Historiadora e colaboradora do "Monde des livres", suplemento semanal do Jornal Le Monde



1
[Tradução livre para o português: As crianças de Asperger. O dossiê negro das origens do autismo na Viena nazista. N.T.]
2 Termo utilizado para descrever a anexação político-militar da Áustria pela Alemanha nazista, em 1938. N.T.
3 Clínica infantil em Viena durante a Segunda Guerra Mundial, onde 789 pacientes foram mortos sob o Programa de Eutanásia Infantil do Regime Nazista, também conhecido como Aktion T4. (N.T.  Extraído do Wikipedia)


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