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INFORMATIVO ONLINE SOBRE AS ATIVIDADES DO DEPARTAMENTO
PSICANÁLISE COM CRIANÇAS DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

 
ANO VI | Número 11 | edição agosto, setembro, outubro, novembro de 2019  
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Um pouco da história por trás
do livro"O brincar na clínica psicanalítica de crianças com autismo"

Talita Arruda Tavares1

 

 

Primeiramente gostaria de agradecer à equipe editorial do Boletim Eletrônico do Departamento Psicanálise com Crianças, pelo convite para contar um pouco sobre o meu livro “O brincar na clínica psicanalítica de crianças”, lançado em agosto desse ano pela Editora Blucher. É uma grande honra apresentar esse livro para nossa comunidade no Instituto Sedes Sapientiae, já que ele deve muito às contribuições do curso de formação do Departamento Psicanálise com Crianças.

Meu interesse pela clínica psicanalítica de crianças com autismo começou ainda durante a graduação em psicologia. Através das leituras e da experiência de estágio no Lugar de Vida, fui me aproximando do complexo mundo destas crianças, aparentemente indiferentes ao contato humano e, ao mesmo tempo, profundamente sensíveis a uma mudança, a um som, a algo inesperado ou fora do lugar.

Logo depois que me graduei em psicologia, comecei a trabalhar em uma instituição voltada para o atendimento de crianças com autismo. Lá, tive a oportunidade de atender muitas crianças do espectro, aprendendo muito com cada uma delas. Nesta instituição também conheci uma abordagem terapêutica, originária da França e pouco divulgada no Brasil, chamada TED, abreviação em francês para “Terapia de Troca e Desenvolvimento”.

A abordagem da TED enfatiza formas de lidar com elementos daquilo que, em psicanálise, diz respeito ao setting e ao manejo. Os atendimentos aconteciam numa sala praticamente vazia: havia apenas uma mesa, duas cadeiras e uma caixa de brinquedos, que deveria ficar ao meu alcance e fora do alcance da criança. Nesse ambiente propositadamente reduzido em estímulos, a presença da terapeuta se colocava como o maior atrativo para a criança. Era eu quem deveria escolher a cada momento os objetos a ser apresentados à criança e, de preferência, a interação deveria acontecer ao redor da mesa. Os objetos deveriam ser explorados sempre de forma compartilhada, evitando que a criança tivesse oportunidade de se isolar com ele. Todas as ações direcionadas aos brinquedos deveriam ter como fim o contato da criança comigo. Em meio a tudo isso, tinha de estar atenta aos interesses daquela criança, trocando mais rapidamente um brinquedo de que ela não gostava ou me demorando um pouco mais em outro brinquedo pelo qual demonstrasse maior interesse. Eu deveria evitar objetos que intensificassem as estereotipias e interromper as ecolalias.

Compor o quadro de profissionais de uma instituição em que a abordagem psicanalítica não era, nem de perto, um a priori – e, diga-se de passagem, muitas vezes era criticada em sua eficácia terapêutica – impôs-me importantes questionamentos, incertezas e desafios. Durante os três anos e meio de trabalho naquela instituição, tive de me entender com a psicanalista que morava em mim; tive de questioná-la, provocá-la, desmenti-la…

Foi com grande incômodo que descobri que, por mais que eu tivesse muitas críticas a esse modo de conduzir o tratamento, a verdade era que as crianças iam apresentando importantes avanços; avanços mensurados por instrumentos de avaliação aplicados todo fim de semestre. Assim, quanto mais me envolvia com o trabalho de atendimento nessa instituição, mais parecia me distanciar da psicanálise. Porém, com o tempo, fui percebendo que na verdade eu tinha feito algumas “pequenas” adaptações à metodologia de tratamento e que meu jeito de conduzir os atendimentos não era, em absoluto, um modelo pautado exclusivamente pela TED. Fui percebendo que, muitas vezes, eu deixava as crianças escolherem os brinquedos, não me prendia às cadeiras nem à mesa para estar com elas, não evitava levar para a sala um brinquedo que fazia as estereotipias se intensificarem, outras vezes me empolgava nas brincadeiras e perdia de vista a sugestão de poucos movimentos do terapeuta dentro da sala. Assim fui me dando conta de que, mesmo respeitando e tentando seguir o modelo de atendimento institucional proposto, a psicanalista em mim escapava pelas brechas e se apresentava no contato com as crianças.

A partir disso, eu fui tentando entender o que eu fazia entre as quatro paredes com as crianças. Ao mesmo tempo, decidi que era hora de entrar na tão sonhada formação em Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. A formação me ofereceu uma base teórica bastante sólida sobre o brincar primitivo e sua relação com o processo de constituição subjetiva. Foi aí que surgiu uma pergunta que se tornou minha motivação e meu norte para a pesquisa de mestrado: se entendemos que a constituição subjetiva da criança acontece de forma interdependente ao desenvolvimento do brincar primitivo, como nós, psicanalistas, podemos ajudar as crianças com autismo a dar um passo a mais no seu processo de subjetivação através do brincar na clínica?

Desta forma, a pesquisa de mestrado se apresentou, sobretudo, como um exercício de recuperar o que acontecia nos atendimentos no período em que trabalhei naquela instituição, estabelecendo relações entre o brincar, ou o não brincar, e a constituição subjetiva à luz da psicanálise. Foi a partir desta costura entre o brincar primitivo e a constituição subjetiva que me deparei com o conceito de objeto tutor, um conceito que me ajudou a entender e a dar sentido para o que acontecia no tratamento das crianças do espectro autista. Mas para entender o lugar que o conceito de objeto tutor desempenhou em minha compreensão do tratamento, convém darmos um passo atrás e retomarmos algumas premissas importantes entre o brincar e a constituição subjetiva e a especificidade da clínica do autismo.

Autores de referência para a clínica psicanalítica de crianças como Winnicott, Ricardo Rodulfo e Victor Guerra aprofundam a compreensão de que o desenvolvimento do brincar acontece concomitantemente ao processo de constituição subjetiva do bebê. Rodulfo (1990) entende que o processo de constituição subjetiva pode se ver refletido em três etapas sucessivas do brincar primitivo: a constituição de uma película de continuidade entre o bebê e o mundo ao seu redor, a diferenciação progressiva entre o eu e o não eu e, finalmente, o brincar de se separar da figura materna – o que antecipa o desenvolvimento da capacidade simbólica da criança. No dia-a-dia, esse brincar primitivo pode ser observado quando um bebê brinca de se lambuzar com uma papinha e não podemos mais identificar onde termina a meleca e começa o bebê. Esse brincar primitivo também está presente nas brincadeiras de abrir e fechar uma gaveta ou portas de um armário ou ainda de tentar colocar um objeto dentro do outro. E, por ultimo, o brincar de se esconder do olhar da mãe e o júbilo do reencontro. Todas essas brincadeiras são manifestações deste trabalho fundamental e imprescindível no processo de se tornar sujeito.

Tendo em vista a premissa de que o processo de constituição subjetiva da criança pode se ver refletido no desenvolvimento do brincar primitivo, não é de se estranhar que as crianças com autismo apresentem sérias perturbações no seu brincar. Além disso, esse “brincar” empobrecido, no geral, está apoiado nos objetos autísticos. Os objetos autísticos podem ser definidos como aqueles objetos tomados pela criança como extensão de seu próprio corpo e que são explorados de forma disfuncional, estereotipada e repetitiva (Tustin, 1975). Esses objetos ocupam uma função de sustentação vital para a criança, ainda que precária, pois na impossibilidade de lidar com as mudanças no ambiente que a cerca, a criança se apega ao seu objeto autístico, se fechando para o mundo ao seu redor, evitando qualquer vivência de iminente despedaçamento do eu, ainda muito frágil. Neste sentido, o uso do objeto autístico pode ser a única saída possível em uma constante ameaça de fragmentação. No entanto, a presença do objeto autístico impede a criança de lidar com os descompassos do tempo na relação com o outro, quebras de ritmo no encontro com o outro, fundamental para a instauração da alternância entre presença-ausência, para a abertura ao terceiro, para o acesso ao campo da linguagem e para a capacidade de simbolização. 

Mesmo que o uso dos objetos autísticos possa criar alguns obstáculos importantes para a subjetivação, simplesmente proibir seu uso no tratamento terapêutico não parece ajudar a criança a avançar no seu processo de constituição psíquica. Assim, o tratamento terapêutico de base psicanalítica tem o árduo trabalho de ajudar essas crianças na tessitura de outras redes de sustentação, menos restritas, menos defensivas ou pobres do ponto de vista simbólico. A intervenção psicanalítica pode ajudar a criança a transformar o objeto estático, pobre e aprisionante em um instrumento musical, em algo que se movimenta, em um personagem vivo com histórias para serem contadas, em qualquer coisa que a surpreenda e que a leve para a dimensão da fantasia e do lúdico. E é aqui que entra uma das contribuições mais valiosas do psicanalista uruguaio Victor Guerra para a clínica psicanalítica do autismo, a partir da formulação do conceito de objeto tutor.

O conceito de objeto tutor foi definido como quaisquer objetos que possa despertar o interesse do bebê, desde que a mãe perceba esse interesse e possa apresentá-los de forma lúdica ao seu filho. Através de sua disponibilidade lúdica, a mãe faz com que aquele objeto possa ganhar um sentido, uma história, uma cantiga, criando uma brincadeira compartilhada com o filho. Diferentemente do objeto transicional, os objetos tutores podem ser muitos e variados e são sempre co-criados pela dupla mãe-bebê. O objeto tutor se mostra fundamental para a constituição subjetiva do bebê, já que possibilita na relação com a mãe uma forma de troca prazerosa, mediada pela linguagem e não atravessada pelo contato corporal. Neste sentido, os objetos tutores, sustentados pela interação lúdica com a mãe, introduzem ao bebê outras possibilidades de relação com o mundo, incluindo uma abertura para o terceiro, para linguagem e para a cultura na relação entre a mãe e seu bebê.

Guerra (2010b) assinala duas definições de dicionário para a palavra “tutor” que nos ajudam a pensar em sua relevância para o processo de constituição subjetiva:

  1. Vara ou estaca que se finca junto a uma planta para a manter direita em seu crescimento.

  2. Exercer tutela – que guia, ampara ou defende. Autoridade a quem, na ausência paterna ou materna, confere-se os cuidados de pessoas ou bens de alguém que, por ser menor de idade ou por outro motivo, não tem completa capacidade civil (p. 9, tradução nossa).

Na primeira definição, Guerra traz o papel da estaca para a planta, comparando a função de sustentação dos objetos tutores para o desenvolvimento do bebê, já que esses objetos ajudam o pequeno a se distanciar da mãe–terra à medida que se desenvolve.

Na segunda definição, Guerra marca a responsabilidade do tutor na ausência dos pais, já que é quem assume os cuidados com o filho — e aqui incluímos os cuidados em relação à constituição intersubjetiva na ausência dos pais.

Tendo isso em vista, os objetos tutores criam as condições necessárias para que o pequeno possa vivenciar as primeiras formas de simbolização em presença materna (ROUSSILLON, 2003 apud GUERRA, 2013). É também nesse intervalo entre a dupla mãe-bebê que ocorrerá a construção da alternância entre ausência e presença materna, colocando o bebê em contato com a alteridade e levando-o ao desenvolvimento da capacidade de simbolização.

         Considerando que a intervenção psicanalítica pretende ajudar a criança a seguir no seu processo de constituição subjetiva e que isso só poderá ser conquistado por meio do desenvolvimento do brincar primitivo, o conceito de objeto tutor é de grande valia para essa clínica. Se nossa intervenção parte do interesse das crianças e, em geral, esse interesse aparece apoiado no uso de um objeto tomado como autístico, nosso trabalho é o de criar as condições, com a criança, para que o objeto autístico possa ser transformado em objeto tutor. 

Portanto, minha pesquisa de mestrado se apresentou com um exercício teórico-clínico à luz da psicanálise de retomada das experiências de atendimento para compreender o que é que acontecia nos encontros com as crianças que possibilitava pequenas conquistas subjetivas – e é esse processo que relato com mais detalhes no livro. 

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1 Talita Tavares é membro do Departamento Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, psicóloga e mestre pelo Instituto de Psicologia da USP, e pós-graduada em Psicopatologia Perinatal e Parental pelo Instituto Gerar. Atua em consultório particular e é psicoterapeuta voluntária no Projeto de Atenção à Infância da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.

 



 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GUERRA, V. Palavra, ritmo e jogo: fios que dançam no processo de simbolização. Revista de Psicanálise da Sociedade de Porto Alegre, V. 20, nº 3, 2013. 
GUERRA, V. Simbolizacion y objeto en la vida psíquica: los objetos tutores. Texto não publicado, 2010b.
RODULFO, R. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
TUSTIN, F. Autismo e Psicose Infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1975.


 
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