
Medicalização da infância
Arianne Monteiro Melo Angelelli e Fernanda Pilate Kardosh
A infância não deve ser entendida apenas em termos de sua imaturidade. Esse período da vida tem um ritmo próprio. E é não somente um tempo “antes”, mas um tempo “outro”. A infância é o tempo do brincar, o tempo da dependência, do pensamento mágico. É um tempo em que pulsões e afetos são vivenciados de uma maneira particular. A criança não é um “adulto em miniatura”, não é somente promessa de futuro. Mas, em nome do futuro, a medicalização da infância, com sua visão utilitarista, gera a pressão por diagnosticar e encaminhar os pequenos cujos problemas emocionais, cognitivos ou comportamentais parecem predizer transtornos mentais na vida adulta. Assim, os manuais diagnósticos das doenças mentais, nos anos recentes, deixaram de compreender os sintomas infantis em seu universo próprio, focando no continuum em relação à vida adulta, para detectar e intervir cada vez mais precocemente nessas patologias. “Medicalização” é o termo que designa o fenômeno que consiste em trazer para o âmbito da profissão médica certos domínios que não se restringem à sua jurisdição. Este termo abrange explicações biológicas sobre aspectos da experiência e subjetividade e diz respeito a todo um modo de compreender o humano. A medicalização equaliza comportamento e emoções ao funcionamento do cérebro e propõe, para cada sintoma, uma medicação; para cada distúrbio, um diagnóstico; para cada problema, um especialista. Na infância, os avanços da neurociência, explicando todo “desvio”, são rapidamente incorporados pelo grande time de especialistas, tratando e investigando à exaustão situações enigmáticas e complexas que hoje são compreendidas pela sociedade como problemas médicos. Tal é o caso, por exemplo, da dificuldade de aprendizagem ou do comportamento disruptivo infantil. Ao contrário do que muitos pensam, a medicalização não envolve simplesmente a prática de tratar com medicamentos os problemas das crianças. Está ligada à proliferação dos diagnósticos em psiquiatria e ao aumento da prescrição de psicofármacos, mas seu alcance é mais profundo. Esse fenômeno se liga à aceleração da vida, à questão do bio-poder e à busca pelo ideal da saúde e do corpo perfeitos. Tomemos o caso do onipresente “transtorno de déficit de atenção e hiperatividade”. Em muitos desses casos, a investigação psicanalítica encontra crianças que têm dificuldade de brincar, como nos explica Victor Guerra com seu conceito de falso self motriz. É necessário “desver” o mundo, nas palavras do poeta Manoel de Barros; é preciso “des-ver” a criança oculta sob o diagnóstico, sob o teste neuropsicológico, sob o relatório escolar e as fantasias parentais. A medicalização satura o campo do encontro possível entre a criança e o adulto, é uma confusão de línguas que pode funcionar como uma “fábrica” de profecias autorrealizadas. Como nos diz a canção, aprendemos muito nesses anos, mas falta ainda assimilar esses conhecimentos, para cuidar, conhecer e medicar sem os excessos que temos encontrado em nossos dias.
Palavras-chave: medicalização, neurociência, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
Patologização da infância: (im)possibilidades de expressões do sofrimento frente ao diagnóstico
Bruna de Souza Vasconcelos Brandão Lima
Uma criança empurra a outra no balanço. É dia de semana e o parquinho é o cenário ideal para fecunda conversa entre amigas. Envolvidas pela euforia da brincadeira, continuam um diálogo que fora iniciado longe dali, num determinado momento e com toda indignação que seus, provavelmente, nove anos de vida lhe permitem ter, a menina diz à amiga: “Você não sabe que, quando uma pessoa age assim, é porque é autista? A prô já disse isso!”. Prontamente, a menina que voava com seu corpo pelo ar, indo e vindo no balanço, responde: “Ah, é, eu tinha me esquecido…”. A cena descrita acima ilustra a lógica predominante na sociedade atual, sustentada principalmente por um discurso médico-normativo, invocada em meio à tentativa desesperada de classificar as angústias que costuram as relações humanas desde que o mundo é mundo; ou seja, o que antes era “esquecido” – e aqui podemos pensar no que ainda não havia se inscrito, nem mesmo como patológico, e poderia desembocar numa infinidade de possibilidades sobre como ser e existir no mundo – agora é convocado a se apresentar a partir da validação do diagnóstico, que se apresenta para o sujeito a partir de um modus operandi “problema-solução”, carregando consigo uma “certeza e segurança” sobre questões profundas, como a causa do autismo, por exemplo. Escancara-se como parte da infância fora corrompida por esse fenômeno, cuja manifestação se dá pelo fascínio à patologização e, consequentemente, batiza as angústias da vida em sociedade aos moldes dos manuais psiquiátricos. Sabemos que os números são avassaladores quando comparados a períodos anteriores. Então, há maior incidência de crianças autistas ou, diante do alargamento do espectro, uma maior incidência de diagnósticos? É diante dessa complexidade que a psicanálise reivindica, frente ao sofrimento humano, que esse trabalho busca ampliar a discussão em torno do mal-estar que assola a condição psíquica das crianças, refletindo o protagonismo que o diagnóstico tem assumido na vida do sujeito, considerando a existência de um processo identitário perigoso com o diagnóstico, cuja tendência indubitavelmente contribui com a negação do sofrimento infantil e aponta para a expropriação das experiências humanas, sublinhando, desse modo, a importância de manter viva a interlocução sobre o debate em torno da proliferação de diagnósticos psiquiátricos durante a infância e a barreira estabelecida perante as formas de expressão do sofrimento. Sendo assim, é pertinente que nos perguntemos o que se perde – e mais, o que se nega diante desse ato? Do que sofrem as crianças hoje? Esse é o ponto nodal alimentado aqui. Sofrem de excesso ou de ausência? Sofrem por contradizer os ideais contemporâneos ou sofrem, justamente, numa tentativa insana de correspondê-los? Estão sofrendo por apagamento ou são demandadas a um protagonismo social perverso? Sugiro reformular da seguinte maneira o questionamento anterior: Como podem as crianças sofrer em nossa época?
Palavras-chave: diagnóstico, identidade, subjetividade, psicanálise.
Transtorno de aprendizagem ou distorção de análise? Um caminho para a subversão
Claudia Del Corto
O presente trabalho tem por objetivo trazer uma análise crítica sobre a patologização da aprendizagem, à luz de perspectivas teóricas winnicottianas, como compartilhamento de experiências pessoais advindas da minha prática clínica. Quando me deparo com o assunto do diagnóstico dos transtornos de aprendizagem, inevitavelmente, surgem-me inquietações, que me movimentam constantemente, na busca de caminhos para melhor compreensão desse processo, que chega aos atendimentos diariamente. O que fazer, na prática, diante de diagnósticos que já chegam estabelecidos? Como fazer uma escuta que acolha a queixa, mas nos abra caminhos para sair do status quo, que mantém a patologização da aprendizagem? Caso não reflitamos sobre a forma de lidar com o que nos chega, podemos incorrer em distorção de análise e inflacionar diagnósticos de crianças em desenvolvimento. Aliás, aspectos naturais da vida de crianças pequenas e muito jovens podem tomar um lugar adoecido e serem medicalizados. Em minha experiência, tive e tenho a oportunidade de conhecer crianças que não se encaixam no ritmo, na metodologia e na dinâmica da instituição escolar. Essas crianças, normalmente, são encaminhadas, com o intuito de corrigir o que está de errado com elas. Logo que a identificação diagnóstica os rotula, a expectativa externa em relação ao trabalho clínico visa a correção, readequação e ajuste do indivíduo ao ambiente. Nada transformador e, sim, submetedor. Mas, no encontro, muitas mostram jeitos particulares de lidar com a aprendizagem, que são maneiras incríveis. Porém, tal condição fica invisível. Sentem-se incapazes em seu processo. Normalmente, já chegam reconhecidas e identificadas pelos CIDs (Classificação Internacional de Doenças). Confortáveis ou desconfortáveis, todos têm que se ajustar ao contexto. Esse é o esperado. O caminho deste trabalho que trago potencializa o convite para uma reflexão acerca de algumas perguntas que não têm respostas fechadas, mas que permitem novas construções. Parto da compreensão do contexto em que essas queixas chegam às clínicas para, em seguida, provocar-nos para uma mobilização, no sentido de levar a práxis, que dialogue com as demandas da contemporaneidade e questione essa inflação diagnóstica. Qual é o contexto que chega às clínicas e como lidamos com ela para a construção de novas narrativas? Como podemos lidar com as demandas do mundo objetivamente partilhado em uma via não biologizante? Com tais questionamentos, caminharemos usando Winnicott como referencial, com a intenção de nos oportunizar a subversão da lógica organicista. Eis, aí, um enorme desafio. Qual posição podemos ocupar, para não incorrermos em validação da distorção diagnóstica? Como criar caminhos potenciais para vitalizar a aprendizagem? Com essas reflexões, articuladas às vinhetas de experiências clínicas, caminharemos, na busca de subverter o que poderia nos submeter.
Palavras-chave: transtorno de aprendizagem, distorção de análise, Winnicott, revitalização da aprendizagem.