Breve comentário sobre literatura, erotismo e feminismo
por Maria Carolina Accioly[1]
“Ela me perguntou o quanto eu a amava. Reuni em vidro todos os humores vertidos: sangue, sêmen, lágrimas. Amo você tantos rios.” Assim começa o romance Tudo é rio, de Carla Madeira, que me foi indicado por uma amiga ano passado. Logo soube de outras mulheres que também o estavam lendo, e alguns meses depois soube que foi um grande sucesso de vendas, com 40.000 exemplares vendidos.
Quando eu estava no meio do livro, a amiga que me indicou me disse que escutou críticas ferozes ao livro e ela se deu conta de que essas críticas tinham força e talvez consistência, inclusive com muitos pensamentos feministas que compartilhamos. Eu já estava envolvida na leitura, no enredo e na forma de escrita, e não saber quais as críticas me deu mais vontade de prosseguir, pois eu mesma, leitora, podia desconfiar quais eram: lendo, senti ambivalências.
Antes de falar das críticas e de seus possíveis efeitos, saliento que, enquanto eu lia, notei que a maioria das leitoras desse livro ao meu redor eram mulheres e estas, enquanto liam, eram tocadas pela dimensão erótica do livro.
Escolhi algumas frases do livro que grifei aleatoriamente por me soarem bonitas. Apresento as belezas antes das críticas pois sentir ambivalências através da poesia e literatura (e artes em geral) faz parte dessa experiência estética, sensorial e também ética de sermos afetados.
“amor demais é um despreparo para a dor”
“perder amores é escurecer por dentro, uma memória do corpo que o entardecer evoca quando tinge o céu de vermelho. Para quem está sozinho depois de ter amado, o fim do dia é muito triste”
“o amor, quando nasce forte, tem pressa de ser eterno. Nem se dá conta de que é carne úmida (…) aquele desejo despreparado de limites, (…) só queriam saber das vertigens”
“Essas coisas não se separam. O lugar que dói é o mesmo que sente arrepios. É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado”
“não sabia se livrar daquele sentir, e do sentir para o consentir é só um tombinho de nada, basta um descuido para quem está andando tropeçar”
“a bondade não afasta o desejo da gente”
Ao dizer que a ambivalência é uma experiência estética, sensorial e ética, não busco aqui – nesse escrito – aprofundar as importantes e instigantes análises filosóficas sobre estes temas (estética e ética). Mas sim pensar como a ambivalência, característica dos registros pulsionais mais primários para a psicanálise, pode ser experimentada como incoerência radical que parece precisar ser suprimida em relação aos discursos emancipatórios contemporâneos.
O romance (para quem não leu o livro, esse texto pode ser estraga-prazeres – spoiler) começa com a história de uma prostituta, que usufrui de um impensável prazer em ser puta. O prazer em ser puta seria moralmente impensável[2] (ainda que invejado e fantasiado) pois remete obviamente à real situação que tantas meninas e mulheres vivem de violência e submetimento (ainda mais em nosso país, com números epidêmicos de violência contra mulheres e crianças, e com um sistema criminoso de prostituição e tráfico de meninas), mas também abarca um discurso moralista em relação ao desejo e prazer sexual da mulher, discurso que supõe que toda mulher que está vivendo a prostituição é uma vítima necessariamente, ou pior, essencialmente.
O livro costura a sensualidade e o erotismo em terreno conhecido, patriarcal. E dessa forma traz erotismo e graça tanto para cenas e detalhes tecendo em palavras imagens sensoriais e poéticas, mas também para aspectos do machismo estrutural, que, sem dúvida, não tem graça nenhuma.
Percebi logo por onde o mal-estar fluía nesse rio. Como ousar colorir o que insiste em aparecer nesses desejos ambivalentes e mortíferos que precisam ser denunciados e desnaturalizados? A insensatez e a desrazão perdem a cor quando justificam a misoginia assassina que trata o corpo da mulher como posse, invadido pelo desejo supostamente viril e violento do homem.
Mas não seria aí, exatamente nas fissuras por onde algo escapa, e assim não deixa virar pensamento cristalizado e fechado, aí onde o conflito e a tensão se desnudam, que a arte, e de outra maneira, a psicanálise, se atentam?
Achei instigante e revelador o efeito quase de vergonha que gostar de um texto poderia causar. Como se, ao nos deparar com as raízes patriarcais de nosso erotismo, tivéssemos que suprimi-lo das palavras (e fantasias) que se conectam de alguma forma a essas violências.
A história dessa prostituta se desenrola em uma narrativa de uma menina desamparada, órfã, cujo tio, o adulto que mais afetivamente se conectou a ela, a desejava sexualmente (e que ela, menina adolescente, irresistível, seduziu!); narrativa que escandaliza a naturalização da sexualização precoce que as meninas vivem em nossa sociedade e cultura (do estupro).
Essa mulher, que escolheu ser prostituta, mito da mulher irresistível (que se articula com o mito de um impulso libidinal masculino-viril incontrolável…), se depara com um único homem que a rejeita, e isso incendeia seu desejo de conquista.
Então essa mulher insaciável, que encobre seu desamparo numa postura poderosa, adentra na história do amor desse homem. Homem também sofrido, desamparado de certa forma, com um pai brutal e distante, apaixonado por uma mulher que, diferente da prostituta, vinha de uma família amorosa, com uma mãe alegre e presente.
Mas esse casal, de provocar inveja devido a tanta paixão que exalava, vive uma dor e uma perda brutal, violenta e traumática, escancarando o horror que a posse e o ciúme podem provocar enquanto violências contra mulheres e crianças.
O enredo se desenlaça por fim e consegue à sua maneira sair do horror traumático para reencontrar alguma cor, luz e erotismo. Isso talvez pareça obsceno demais. Será que o romance se arrisca (ou nos arrisca) ao romantizar o machismo em momento tão crucial das lutas feministas? Será possível inventar um final feliz quando o cenário é de denúncia e desnaturalização do lugar social e sexual que meninas e mulheres ainda vivem? Pode parecer ingênuo ou uma afronta criar personagens que encarnam clichês patriarcais, como a puta que goza e que captura todos os homens, os homens casados que passam a tarde no puteiro, a mãe bondosa, a tia invejosa, a esposa amorosa, o ciúme doentio do marido, o crime passional.
De algum modo, tais efeitos ambivalentes (perceber os clichês e ao mesmo tempo se afetar pelos personagens ou sentir vergonha ao se excitar com uma narrativa composta por fantasias machistas) não poderiam evocar nuances de uma profundidade necessária para acessarmos a complexidade dessa questão?
Não é de certa forma o que escutamos na clínica também em relação à sexualidade: as repetições, os descompassos, os encontros e desencontros, as ambivalências, os excessos pulsionais, os modos singulares de prazer, a potência inventiva do desejo?
Os feminismos enquanto movimentos e discursos emancipatórios extremamente importantes e necessários têm produzido transformações na forma pela qual circulam e se articulam os desejos, os prazeres, as relações sexuais-afetivas, e também as defesas e os imperativos superegoicos.
Escutamos adolescentes e jovens mulheres iniciando uma vida sexual mais empoderadas da possibilidade de dizer sim ou não, assim como meninos e jovens homens atentos para escutar e respeitar o consentimento e o prazer do outro. São efeitos significativos e conquistados do feminismo contemporâneo. Concomitantemente percebemos às vezes uma falta de espaço e tempo para dúvidas ou ambivalências: Será que eu quero? Como sinto prazer, como dou prazer? Será que ultrapassei o limite do outro/a/e? Meu desejo, voraz, pode se manifestar violento? Inúmeras dúvidas e confusões que a sexualidade e o corpo despertam e que precisam transitar sem se agarrar rapidamente a respostas precipitadas podendo gerar um clima repressor um tanto paranoico e superegoico.
Ao mesmo tempo, as mudanças discursivas e narrativas vem desconstruindo o universal e soberano lugar de fala do homem branco e do pensamento eurocêntrico, desarquivando narrativas e sustentando outras representatividades. Nos restam perguntas vivas, com as quais estamos lidando diariamente: como tais mudanças efervescentes afetam os encontros e também a produção cultural e científica, como isso nos atravessa na clínica, o que se tornou inaceitável e precisa ser revisto tanto enquanto conceito e palavra como enquanto ato e posição, o que precisa ser desconstruído, e como fazê-lo?
Um caminho fértil tem sido as mulheres tomarem um lugar de fala e escrita que lhes seja próprio, que elas se escrevam e assim se inscrevam, uma escrita mulher, como propõe Hélène Cixous[3]: “escreva-te: é preciso que seu corpo se faça ouvir”.
_______________
[1] Maria Carolina Accioly C. Silva, psicanalista membro do Departamento de psicanálise, participa dos grupos de trabalho “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo” e do GTEP (Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise).
[2] Sobre este tema da prostituição e da cultura do estupro recomendo o livro Teoria King Kong de Virginie Despentes.
[3] O riso da medusa, Hélène Cixous (1975), publicado pela Bazar do Tempo em 2022.