Instituto Sedes Sapientiae

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Contornando o incontornável: sobre os sonhos na pandemia 

por Ines Loureiro[1]

 

O Projeto: recolher relatos de sonhos ocorridos durante a pandemia. O convite: escrever sobre um ou mais desses relatos, sem dispor das associações do/a sonhador/a, nem de quaisquer dados sobre ele/a. Contente por ter sido convidada, pensei “o que mais escrever, se não um texto de ficção?” É como se fosse participar de uma oficina de escrita: dado um texto (sonho manifesto), um contexto (Covid no Brasil) e uma espécie de carta-programa do Projeto Oniricopandemia[2],  produza um ensaio psicanalítico.

Era óbvio que estávamos sendo instigados a transgredir o mandamento número 1 de A interpretação dos sonhos: “Jamais interpretarás sem as associações do sonhador”. No mínimo, o chamado era para uma travessura psicanalítica: “isso não se faz, mas… vamos fazer?!”.  Freud, no entanto, já ensinara que o jogo infantil não é desprovido de seriedade – muito o contrário. As mortes e sofrimentos advindos da pandemia, a violência com que fomos diariamente atingidos pelo criminoso governo do país, a indignação exasperada ante a barbárie, tudo isso conferia um “travo” amargo ao desafio; a gravidade ímpar da conjuntura haveria de ter reflexos sobre o mundo onírico, e isso está longe de ser brincadeira…

“Penei” para escrever meu artigo, curiosíssima por saber como meus colegas estariam contornando o incontornável obstáculo; quais malabarismos – teóricos, clínicos, sociológicos, literários – estariam inventando?

Ao receber o volume, com 22 textos, 36 autores e mais de 40 sonhos, dei-me conta da variedade e da riqueza das contribuições. Estava diante de um conjunto de ensaios denso e consistente, mas também atrativo e saboroso – uma espécie de “caixa de bombons” a ser degustada aos poucos. Além disso, as guloseimas vinham embaladas num lindo pacote: uma edição caprichada, com os relatos dos sonhos destacados sobre fundo preto e os capítulos entremeados pelos desenhos delicados de Juliana Calheiros.

Chamada a participar da live de lançamento do livro, achei por bem comer todos os bombons de uma só vez.[3] A glutoneria valeu a pena, pois só então compreendi a magnitude do Projeto. Até esse momento, não havia percebido que o livro era um acontecimento cultural e editorial do qual tive a sorte de participar. Tenho agora a chance de compartilhar minhas impressões como leitora (já antecipadas no referido evento online) – e vamos a elas.

O convite à travessura psicanalítica gerou respostas bastante ousadas. Por exemplo, a montagem de um pseudo-sonho, isto é, uma cena cotidiana foi travestida de sonho (Laura Andreato). Teve também o sonho que virou foto, pois disparou a intervenção sobre uma série de imagens retiradas da obscena reunião ministerial ocorrida em abril de 2020 (Pio Figueiroa). Houve analistas que somaram seus próprios sonhos ao material recebido, como Renata Cromberg e Daniel Kupermann. Renata, aliás, se entregou gostosamente à “associação livre com o sonho alheio”. Mas ambos os autores desembocaram em questões teóricas: a noção de subconsciente segundo Sabina Spielrein (Renata) e o conceito de recusa em tempos de negacionismo(s) (Daniel). Maria Manuela Moreno e Eugênio Dal Molin chegaram a inventar restos diurnos para o sonho que lhes coube (!), encaminhando a discussão para a ideia ferencziana de clivagem funcional.

Eis uma amostra das criativas soluções oferecidas ao problema de interpretar sonhos na ausência do sonhador. Outros artigos preferiram explicitar a estratégia de enfrentamento desse impasse metodológico. Renato Mezan, por exemplo, tomou o sonho como um conto escrito em primeira pessoa – o sonhador como voz narrativa; sobre este texto, a associatividade do intérprete se propõe a formular “especulações plausíveis”, nos moldes do raciocínio clínico. Luís Claudio Figueiredo e Octavio Souza traduziram seu procedimento como “alargamento” e “expansão” do conteúdo manifesto de sonho – as associações do(s) intérprete(s) resultando em interpretações que prolongam a experiência do sonhar.

De algum modo, todos os ensaios do livro encampam a linha-mestra presente na “Introdução” assinada pelos organizadores: o sonho possui uma função traumatolítica (Ferenczi), na medida em que tenta promover a “ligação” dos excessos traumáticos ainda não metabolizados pelo aparelho psíquico; neste sentido (ou melhor, na busca de um sentido), o sonhar se reveste de um propósito curativo. Ao intérprete que só dispõe dos relatos manifestos, cabe a tarefa do co-sonhar, na qual se (con)fundem sonhador e intérprete, relato e associação, individual e coletivo, experiência e teorização, metapsicologia e contexto histórico. O que varia e particulariza cada texto é a “calibragem” sutil entre diferentes aspectos: o grau da associatividade mobilizada pelos autores, a maior ou menor presença de referências culturais nessas associações, a concentração ou dispersão das temáticas desenvolvidas e/ou dos conceitos trabalhados, as diferentes orientações teórico-clínicas, a densidade metapsicológica, o viés predominante das abordagens (clínico, histórico, político-sociológico…)  e assim por diante. Tendo em vista essas variáveis, creio que é possível discernir diferentes tipos de texto.

Um conjunto de artigos toma o sonho manifesto como ponto de partida para explorar uma temática específica – seus autores aproveitaram a onda da pandemia e “surfaram” nos relatos rumo às praias temáticas de sua preferência. Situo nesse conjunto os trabalhos de Patrícia Getlinger e Nélson Coelho Jr (corpo e inscrição corporal da memória), Luciana Pires (espaço público das cidades), Adela Stoppel de Gueller e Julieta Jerusalinsky (sonhos de jovens e a complexa situação dos adolescentes isolados) e o meu próprio (papel da arte na assimilação dos impactos pandêmicos).

Um outro grupo de artigos, utilíssimo, aborda a literatura psicanalítica de um ponto de vista histórico. A história das teorizações sobre os sonhos, sobretudo na escola inglesa, foi traçada com detalhes por Marina Ribeiro, Elisa Cintra e Carla Penna. Já Ada Morgenstern nos trouxe o desenvolvimento das pesquisas acerca dos sonhos infantis, incluindo aí algumas publicações recentes situadas nas adjacências do campo psicanalítico.

Dentre os vários textos mais densos do ponto de vista teórico e metapsicológico, encontramos dois de inspiração laplancheana. Com base na teoria da sedução originária, Paulo Carvalho Ribeiro e Maria Teresa Carvalho afirmaram que, mesmo quando ausente dos relatos, a dimensão da sexualidade permanece indispensável para a compreensão dos sonhos. Fábio Belo também se apoiou na teorização sobre os significantes enigmáticos para se debruçar sobre a noção de tradução.

Naquele que talvez seja o capítulo mais lacaniano do livro, Raul Pacheco Filho, Clarissa Metzger e Pedro Ambra entenderam que no campo da “psicanálise em extensão” é preciso identificar e articular os elementos estruturais presentes no relato manifesto. A partir dessa posição metodológica, percorreram os meandros da neurose e das diferentes figuras paternas.

A questão do mal e da maldade foi o ponto de partida de Wilson Klain em sua incursão pelas paragens da pulsão de morte e também da pulsão anarquista, que remete aos potenciais efeitos “liberadores” de Tânatos. Já Paula Peron e Ricardo Bueno adotaram Piera Aulagnier e Radmila Zygouris como importantes referências teóricas para analisar os efeitos da catástrofe pandêmica sobre o eu e os processos de pensamento.

Todos os ensaios contidos no livro têm por base sólidos “colchões” ou “camas” teóricas – nas palavras dos organizadores. Mas alguns se destacam por recorrer também a um espesso “acolchoado” de referências culturais. Tal “edredom associativo” vem recheado de alusões à filosofia, literatura, antropologia, assim como a séries de TV, histórias em quadrinhos, cinema, música e dança.

O ensaio de Adriana Barbosa e Gustavo Dionísio situa-se na fronteira entre os textos cerradamente teóricos e aqueles que se nutrem na cultura. Partindo de Jacques Rancière e Didi-Huberman, consideraram o sonho como uma experiência estética e enveredaram pelo conceito de figurabilidade. As instigantes metáforas que foram evocadas por Jô Gondar não deixam de ser belas figurações de nossa realidade: em tempos de terror coletivo, vividos como nevoeiro ou sombras brancas (José Gil), os sonhos são sismógrafos (Walter Benjamin) que produzem também um efeito imunizante, tal como as autovacinas.

Inúmeras referências culturais compuseram os fios da colorida malha associativa tecida por Cristina Dias, Marta Cerruti, Paulo Rona e Tatiana Filinto. Personagens tão variados como Guimarães Rosa e Mano Brown, Antônio Cândido e Krenak/Kopenawa se cruzaram num pensamento associativo aparentado do sonho (que, lembremos, é também uma modalidade do pensar).

Em virtude dessa impressionante diversidade de referências teóricas e culturais é provável que o interesse pelo livro ultrapasse em muito os limites dos círculos psicanalíticos. Além de ampliar nossa visão sobre os sonhos, ele oferece ao leitor o contato com uma outra dimensão do horror sanitário e político: a contaminação de nossa intimidade até os recônditos do mundo onírico. Nessa medida, é uma leitura pra lá de inquietante…

Porém, a imersão na coletânea também me trouxe uma boa sensação – a de fazer parte de um esforço coletivo em prol do pensamento crítico. Senti um alento ao me perceber ladeada por pessoas que compartilham ideais políticos, éticos e poéticos, e que com isso tentam se opor ao descalabro vigente. O artigo de Ana Loffredo contém uma formulação exemplar desse sentimento – o de pertencer a uma cadeia de produção de elos/produção de Eros. Encantada com o projeto Oniricopandemia e compreendendo de imediato suas implicações, Loffredo constatou aliviada: “evidentemente, eu não estava só”. É disto que o livro nos assegura – seguimos acompanhados, apesar do desalento.

Robusto documento de nossa época, esse volume bem poderia ser anexado a um pedido de impeachment de Bolsonaro e seus asseclas, pois comprova como a brutalidade invadiu os quartos, contagiou os sonhos e infiltrou-se no inconsciente de cada cidadão. Além das constantes agressões externas, somos continuamente atacados também a partir de dentro. O adoecimento nos foi implantado na alma.

Bem, pelo menos podemos contar com iniciativas como a do projeto Oniricopandemia, que ajudam a oxigenar nossos corpos e mentes. O trabalho coletivo tem em comum com a função onírica uma propriedade muito salutar: ambos nos auxiliam a figurar o terror e sustentar o desejo.

 

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[1] Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), professora do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica (COGEAE/PUC-SP).

[2] O artigo de Adriana Barbosa Pereira, “Da dor ao sonho: sobre a Coleção Oniricopandemia”, foi retrabalhado em parceria com Nelson Coelho Jr.; essa versão modificada consta agora como “Introdução” do livro.

[3] Live promovida pelo LIPSIC e disponível em https://www.youtube.com/watch?v=w8wgPfmMA5s&t=3293s

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