Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras: Fala ao grupo de pesquisas Ferenczi [1]
por Ana Maria Sigal [2]
Não é por acaso que nos reunimos neste momento para acirrar a luta contra a tentativa de banalizar nosso trabalho e nosso saber. Não podemos deixar de mencionar a situação política desastrosa que atravessamos e que propicia que esta discussão se produza num momento de devastação da cultura e da ciência, as quais sofrem um golpe de destruição que as levará a precisar de muitos anos para serem reconstruídas. Mas a luta só se perde quando se a abandona, diz Pepe Mujica e, nesse sentido, os diferentes grupos e os próprios psicanalistas temos reagido com maior força para defender nossa sociedade e nosso ofício de tamanha tentativa de desestruturação. Este é um dos momentos mais perigosos que temos vivido na história do Movimento Articulação. As decisões transitam na calada da noite e, apesar de nossa intensa dedicação, persiste o iminente perigo de que se aprove a regulamentação, quiçá proveniente de um espaço do qual não pensávamos que viria o ataque. Hoje em dia, as vozes são menos escutadas e as bancadas têm uma representação de parlamentares que buscam aprovar projetos que lhes proporcionem mais votos para a reeleição. Não por acaso, determinados projetos neoliberais e de ataque ao conhecimento aparecem de forma sub-reptícia e encontram apoio de estruturas governamentais para abrir as brechas para sua realização. O desmonte do MEC abriu perspectivas que antes não teriam como acontecer. Em todas as áreas, saúde pública, política ambiental, cultura, economia, universidades, segurança, se está “abrindo a porteira para passar a boiada”. Hoje põe-se de manifesto o racismo estrutural que nos constitui, porque, como mostram as estatísticas, é a população indígena, negra e pobre a mais atingida. A pandemia é ainda mais insidiosa pela forma em que o Governo Federal tem conduzido a política de saúde do país.
O movimento Articulação, assim como os Psicanalistas Unidos pela Democracia, tem trabalhado com força, mostrando que a psicanálise não é um saber alheio à história.
São várias as questões que podemos situar e sobre as quais podemos conversar, tais como especificar por que há um grupo que luta há 22 anos para que a psicanálise não seja regulamentada, explicitando o que implica a regulamentação e os percalços que aconteceram nestes anos; esclarecer o que é o Movimento Articulação, como se constituiu e como funciona; encarar esta nova situação com que nos confrontamos ao tentarem emplacar um bacharelado em psicanálise. Destas questões derivam muitas outras que surgiram na nossa conversa: a psicanálise como mercadoria e o aproveitamento do projeto neoliberal aplicado ao ensino. Também outras poderão se colocar.
Quiçá seja interessante começar por entender e discutir a razão por que defendemos a ideia de que a psicanálise não pode ser regulamentada, já que dela derivam as outras questões.
A pergunta mais comum quando expomos nossa situação é: por que os psicanalistas não querem regulamentar a psicanálise nem criar um conselho que garanta a seriedade dos que assim se intitulam? Por que não criar um conselho que possa regular a prática? Por que não criar uma fiscalização que garanta o exercício desta profissão? Estas perguntas partem dos políticos, do público leigo e também de membros da comunidade psicanalítica que manifestam –às vezes de forma velada, outras vezes explicitamente– o desejo de que existam órgãos de controle que garantam a seriedade do trabalho psicanalítico.
Aqui começa nossa dificuldade para que se entenda esta negativa. A quem está no campo da psicanálise e tem uma formação séria, que passa pela ética de nosso saber, a resposta não parece tão difícil de entender.
Partimos da ideia de que a formação em psicanálise não é uma profissão. Não é uma formação que se possa cursar numa Universidade, nem ter um programa de estudos fixo e estruturado que dê conta de uma titulação. Simplesmente não existe um título de psicanalista, já que a formação tem como eixo principal a análise do analista: um trabalho árduo, pessoal, único e singular, sustentado na transferência. Deste modo, qualquer tentativa de regulamentar a psicanálise entraria em contradição com sua própria ética, implicaria aceitar que um tratamento psicanalítico pode ser regulamentado. Pensamos que cumprir leis enunciadas externamente –tanto no que se refere à prática clínica quanto à formação– torna estes enunciados vazios, pois eles requerem ser entendidos a partir de um pensamento ético-político interno ao próprio saber. Esta ética nos diz que a psicanálise é um saber subversivo que confronta o sujeito com sua verdade e que o caminho que se percorre, tanto no tratamento quanto na formação, é singular e único. É precisamente sobre a burocratização destes elementos que se apoiam os grupos que desejam lucrar ou se apropriar do prestígio que a psicanálise tem alcançado em mais de 100 anos de prática.
Não há lei jurídica de Estado ou uma deontologia profissionalizante elaborada por um conselho profissional que possa dizer sobre como transcorre uma análise ou definir quais as condições necessárias para exercer a prática desde um campo externo ao próprio saber. Partimos da ideia de que a psicanálise não é um saber teórico desengajado da prática e que sua transmissão se baseia fundamentalmente na análise pessoal cuja ética torna regulamentar impossível. Se temos regras a enunciar são as que respondem ao método, as que Freud chama fundamentais –a atenção flutuante e a associação livre–, para que o inconsciente possa emergir e ser escutado; são regras que seguem uma lógica única e singular, que desestruturam mais do que estruturam, que abrem mais do que fecham, que des-regulamentam mais do que regulamentam a lógica do pensamento consciente. São regras que libertam e não constringem, são regras que têm mais a ver com a lógica do pensamento primário do que com a lógica cartesiana. É no flutuar livre da palavra que o sentido aparece. Também a regra de abstinência imprime ao tratamento a possibilidade da liberação do desejo, escutar para que o sujeito possa escutar o próprio desejo. O psicanalista não amordaça o desejo, não deseja pelo outro, oferece sua escuta para que o desejo surja. E bom deixar claro que a abstinência é uma recomendação para o tratamento, nunca se refere a que o analista se abstenha como sujeito da história, nem dos acontecimentos que lhe exigem sua condição de cidadão.
Como seria uma psicanálise regulamentada? Seria justamente o que vai em sentido contrário da proposta ético-política que acabamos de enunciar, seria impor-lhe normas, caminhos, deveres, fins, metas e, ao fazê-lo, anularia a experiência única que surgiria no encontro em transferência.
Na psicanálise se trata do encontro com uma verdade, a verdade do sujeito que não segue as leis da lógica cartesiana e sim as leis que regem o inconsciente. A formação de um psicanalista não é um saber teórico que pode ser transmitido apenas por meio de textos, leituras ou discussões teóricas. Este conhecimento é importante, mas responde a um único aspecto do que se necessita para percorrer uma formação. Por isso insistimos que não se trata de uma profissão nem se constitui num saber universitário que transmite uma teoria, que dá uma titulação ou que autoriza alguém como psicanalista. Isto nos confronta com a situação do ensino da psicanálise na Universidade. Pensamos que a psicanálise muito se enriquece enquanto teoria ao ser confrontada com outros saberes e que, em diversas formações universitárias, o ensino da psicanálise como teoria se transforma em um elemento valioso, assim como nas pós-graduações em psicanálise se encontram elementos altamente interessantes que se desenvolvem a partir da pesquisa. A psicanálise se enriquece e enriquece outras ciências ou saberes nas suas trocas. Mas devemos diferenciar isto do que seria a formação de um analista. A Universidade não tem forma de possibilitar que um psicanalista faça sua formação, já que a análise pessoal que lhe impõe o encontro com seu inconsciente, espinha dorsal dessa formação, não pode ser regulamentada nem acompanhada dentro da Universidade. O estudo teórico nos põe em contato com outro tipo de saber. Laplanche discute a questão do ensino da psicanálise na Universidade e o promove em Paris 7, mas nunca propõe que isto seja equivalente a uma formação; em um texto de 1977[3], afirma que, para ouvir falar de psicanálise na Universidade, não é preciso ser analisado. Existe a psicanálise fora da prática, diferente da forma estrita da prática analítica. Assim, apresenta uma boa argumentação para os cursos na Universidade e o diploma de estudos aprofundados que oferece a academia. É através desta brecha, que promove o estudo da psicanálise na Universidade, que se pretende a falcatrua de oferecer um bacharelado como espaço de formação de um analista.
Entendemos que ser psicanalista equivale a um ofício. Ninguém seria um artista por ter feito uma faculdade de arte, assim como ninguém poderia se autorizar como psicanalista por ter estudado teoria psicanalítica. É no próprio contato com o inconsciente que vamos aprendendo o ofício. Há numerosas instituições que tomam a seu cargo acompanhar estas formações, incluídas enormes diferenças que se encontram entre elas: algumas promovem o passe, outras falam da análise didática, outras trabalham com o reconhecimento entre pares; existe ainda uma discussão segundo a qual não necessariamente se faria a formação dentro de uma instituição psicanalítica, que poderia acontecer de forma independente. Mas todas estas propostas valorizam a análise pessoal como o eixo da formação.
Em algum momento da história, a própria IPA se instituía como órgão regulador, não reconhecendo a formação de um psicanalista quem a fizesse fora de sua égide. Esta posição foi contestada por vários psicanalistas que pertenciam à IPA e pensavam que, nesta forma de transmissão, se instituía uma situação de poder e de controle estranha à própria ética, configurando-se um mercado interno que regulava o fazer psicanalítico. Lacan provoca uma revolução dentro da psicanálise ao contestar este poder, rompendo com a IPA na proposição de 9 de outubro de 1967, que marca este rompimento –não só com a IPA, mas também com grande parte do acervo histórico e teórico acumulado por vários pioneiros do movimento psicanalítico. Outros psicanalistas, acompanhando Lacan, fazem uma ruptura que, por sua vez, tem outros desdobramentos, e se separam também dele, provocando-se múltiplos rompimentos e uma verdadeira liberação da psicanálise que tinha sua origem em uma Sociedade Secreta que, nos inícios, foi promovida pelo próprio Freud. Muitos grupos, em muitas cidades, produziram movimentos semelhantes e, assim, começaram a democratizar a formação, sem abandonar o rigor e a ética próprios à psicanálise. O movimento Plataforma é outo eixo fundamental. Surgido em 1969, acompanhando o fervor de maio do 68, organizou um congresso paralelo ao que estava se desenvolvendo pela IPA na cidade de Roma. Criticou a formação de analistas, o papel da análise didática, a elitização da psicanálise e sua função social. Criou um outro cisma que teve amplas repercussões na América Latina. Hoje em dia, com as modificações que a história foi produzindo, muito tem mudado nas instituições ligada à IPA.
A repetição incansável de que a formação se baseia num tripé (análise pessoal, conhecimento teórico e prática clínica) hoje quer dizer muito pouco, não é suficiente para garantir a seriedade de uma formação.
Há um uso perverso do tripé proposto por Freud, muitos grupos que alegam basear-se nele para legalizar sua formação o deturpam; já que o modelo adotado é vazio, podendo ser preenchido de qualquer maneira, como podemos supor ao constatar o impressionante número de supostos 2.000 analistas que formava a SPOB (Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira), grupo dirigido por evangélicos que se organizaram para dar um caráter científico à manipulação de seus fiéis e segundo eles ofereciam a formação conforme o tripé da psicanálise.
Tomados como esquemas externos, nossos pressupostos podem ser preenchidos de formas totalmente contrárias ao que procuram enunciar. Todos os grupos religiosos e com interesses comerciais que querem se aproveitar do significante “psicanálise” aludem ao seu tripé. Isto se encontra claramente expresso no tal bacharelado de psicanálise que, de forma perversa, incorpora o tripé e garante que, cursando sua grade, o candidato receba o título de psicanalista. Voltaremos depois à questão do bacharelado. Pelo momento, sublinharemos que foi contra essas apropriações que se constituiu o Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, ao reunir um grupo de psicanalistas para lutar contra a regulamentação.
Que é a Articulação?
Articulação é um movimento inusitado, sem equivalentes no mundo; encontramos uma nova forma de trabalhar e, ao longo dos 22 anos em que estamos juntos, conseguimos nos manter sem fraturas nem cisões –o que, como vocês sabem, não é uma tarefa fácil dentro da psicanálise e da política. Em primeiro lugar, optamos por constituirmo-nos como um movimento, escolha que exige um trabalho exaustivo, não temos site, não temos conta bancária, cada reunião é instituinte e não configura um instituído que obedece a um regulamento que patrulha o campo psicanalítico; está formado por instituições que se somam a nosso trabalho e reconhecem nosso objetivo como uma bandeira de luta. Temos uma história e documentos públicos que vão balizando a condução do Movimento. Nossa opção foi não criar uma instituição; caso o fizéssemos, nos constituiríamos num próprio órgão regulamentador. Permanentemente aparecem tentações de dizer “este grupo faz formação, este outro não”, mas isto nos constituiria nos únicos que possuem o saber sobre como se faz una formação. Partimos, sim, da ideia de que toda formação deve ser laica e leiga, apoiados no trabalho de Freud de 1926, A psicanálise leiga –que, com certeza, vocês conhecem muito bem.
Movimento é um conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por um mesmo fim. Entendemos nosso fim como a não regulamentação da psicanálise. Dentro do mesmo movimento, as diversas instituições que o compõem têm ideias bastante diferentes sobre algumas questões metapsicológicas e clínicas, assim como em relação à formação, transmissão e autorização, mas para podermos trabalhar juntos em um espaço constituído por escolas tão diferentes, tivemos que assumir a necessidade de postergar as satisfações narcísicas e entender que, no mesmo espaço, podem funcionar diversas instituições, renunciando à necessidade de detenção do poder, de ser único, mais ou melhor, ou aquele que monopoliza a verdade sobre o conhecimento de Freud. Tivemos que trabalhar arduamente na aceitação das diferenças e entender que poderíamos nos unir em torno de pontos mínimos que nos incluam a todos, fortificando o coletivo e aumentando o alcance de nossa luta. Publicamos dois livros nos quais aparecem as diferentes vozes, representadas por diversos autores, das diferentes escolas, das quais vocês poderão ter notícias através da leitura deles[4]. Mas, à guisa de exemplo, poderia descrever alguns princípios que compartilhamos e que nos diferenciam das várias psicoterapias, criando um campo de saber específico. Entendemos que na clínica psicanalítica o saber está do lado do inconsciente. O que nos diferencia de outros saberes é considerar o deslocamento que faz a psicanálise, da concepção ptolomaica de um Eu possuidor da verdade ao recentramento do inconsciente como espaço estrangeiro que deixa o sujeito à mercê de um desconhecido de si. Mesmo pensando em diversas concepções metapsicológicas segundo as diferentes escolas, impõe-se a radicalidade do inconsciente no campo do desejo e o modo em que se transita pelo caminho da sexuação na inscrição da alteridade.
Outro elemento comum é considerar o deslocamento que Freud produz nos Três Ensaios[5] (1905) ao demolir o preconceito de uma sexualidade pré-orientada instintualmente no homem, em benefício de uma pulsão que só encontraria seu objeto de maneira totalmente aleatória na sua história individual, objeto esse essencialmente vicariante e contingente. Essa substituição tira o sujeito do campo da pura biologia e o constitui na sua própria diferença, fora do determinismo biológico, a partir da valorização da fantasia e da linguagem.
Compartilhamos a ideia de trabalhar com o conceito de abstinência, tal como o encontramos na obra freudiana, no artigo de 1915, Observações sobre o amor de transferência.
A abstinência como uma regra da prática analítica segundo a qual o tratamento analítico deve ser conduzido de modo tal que o paciente encontre o menos possível de satisfações substitutivas para seus sintomas, especialmente as satisfações que pudessem encontrar resposta no amor de transferência. Isto significa que o analista tem de se abster de seu desejo e procurar, através da escuta, aquilo que é próprio do paciente. Abstinência e neutralidade não significam que o analista tem de se eximir de sua posição como cidadão, abstinência de desejar pelo outro sim, nunca abstinência de assumir as responsabilidades como sujeitos da história. Nos valemos da transferência como uma ferramenta fundamental para o estabelecimento da relação analítica, novo laço fundamental que se instaura e reatualiza os significantes que suportaram demandas de amor na infância.
Simplesmente gostaria de dizer que, frente a cada questão e decisão que temos que enfrentar, entram em jogo diferenças teóricas que tentamos superar. O que nos une é poder trabalhar com as diferenças, entendidas como diversidade.
Somos todos analistas unidos, defendendo a psicanálise das tentativas de regulamentar seu campo e de impor o Estado como regulador de uma profissão que não existe como tal; pensamos que a psicanálise é um ofício, que só está regido e reconhecido entre nós pela ética que o constitui.
O movimento surge no ano 2.000 a partir de uma convocatória feita por numerosos psicanalistas de diversas escolas, aliados ao CRP, CRM, que realizaram uma reunião no hotel Glória do Rio de Janeiro. A convocatória se faz a partir de uma tentativa de regulamentação que se apresenta à Comissão de Assuntos Sociais da Câmara dos Deputados, que é a instância que acolhe estes projetos de lei –lei esta que surge pouco depois da criação da SPOB (Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira).
Nesta reunião se constitui o Movimento e começam as reuniões. Elabora-se neste grupo o Manifesto da Articulação e iniciam-se os contatos com deputados e senadores, que criam uma resistência importante. Os deputados Eber Silva, evangélico, e Simon Sessim acabam retirando seu Projeto de Lei (PL) depois de um trabalho feito pela Articulação, esclarecendo a questão da razão pela qual não aceitamos a regulamentação. Cria-se a escola e depois vem a lei!!! Nestes anos de trabalho temos conseguido desmontar e parar numerosas tentativas de regulamentação.
Cada grupo ou instituição tem seus princípios e prioriza suas formas de transmissão e de controle, de reconhecimento ou de autorização, a partir da experiência singular que significa uma análise e que se depreende das teorias sobre as quais se apoia.
A psicanálise trabalha com um conceito próprio de verdade que é singular e único a cada tratamento, não há verdades universais, dogmatizantes, nem objetivos de conduta a serem alcançados. Na psicanálise se parte do conflito, resultado da própria condição cindida do sujeito e o que está em jogo é se confrontar com essa condição. Não se propõe a apagar sintomas, mas a fazê-los falar por meio da disponibilidade da escuta.
O Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, portanto, sempre teve como proposta intervir nos órgãos oficiais para evitar a regulamentação; não é nova essa proliferação de centros de formação que se dizem psicanalíticos e, entrando em suas publicidades, encontramos discursos totalmente deformantes. Nunca nos ocupamos de desacreditá-los, muitos afundavam por si mesmos, mas agora temos sido surpreendidos por uma nova tentativa que pode desembocar numa regulamentação a partir da criação de uma faculdade de psicanálise. Este modelo não existe no mundo inteiro. Este curso é um estímulo à impostura, oferece aos participantes uma ilusão de poder se inserir no mercado de trabalho, mas não é mais do que uma formação oferecida com uma clara motivação empresarial que contradiz todos os postulados do que seria uma formação.
Que é a Uninter, Centro Universitário Internacional que promove este Bacharelado? É um conglomerado institucional de ensino que tem 12 polos ativos no exterior, sendo 9 nos Estados Unidos, 2 na Europa e 1 na Ásia. No Brasil está presente em todos os estados da Federação, com aproximadamente 400 cursos de graduação, pós-graduação e mestrado, já formou cerca de 500.000 alunos. Faz anos que os fundos de aplicação financeira vêm propagandeando que o investimento em educação é dos mais rentáveis; assim tais aplicações vêm se expandindo e o mercado da educação se multiplica, o que aparentaria algo interessante, mas ao ser confundido com a democratização do saber se cria uma falácia que precisa ser denunciada. Cada vez mais estas instituições vão explorando o desconhecimento que a população tem, oferecem cursos com garantia de inserção no mercado de trabalho, fantasia que fica só no papel de uma titulação. O anúncio de tal bacharelado diz: “Ao final do curso o egresso terá um diploma de Bacharel em Psicanálise e poderá atuar como empregado em empresas para serviços de prevenção e recuperação da saúde mental, ou por conta própria” e realça os lucros interessantes que este exercício profissional reportaria aos que fizessem esta formação.
Atendendo ao desenvolvimento das ideias expostas anteriormente vemos a perversão desta oferta: oferecem formação enganosa, copiando ideias, falas, considerações reproduzidas de publicações de instituições sérias, e muitas vezes, argumentos que foram elaborados pelo próprio Movimento Articulação, tentando valer-se do fato de a psicanálise não estar regulamentada para sugerir que, por esta razão, qualquer um poderia exercê-la e ensiná-la. O curso preenche o quesito de análise pessoal com um tratamento oferecido em grupo no último quadrimestre da grade do curso universitário.
Frente à pergunta feita por um candidato que deseja se inscrever no bacharelado proposto e quer saber qual a portaria que regulamentou/autorizou o curso de Bacharel em Psicanálise, respondem: “Não demorará muito e as Associações Psicanalíticas que promovem cursos livres vão entrar na justiça pedindo o cancelamento do curso com alegação que o ensino da psicanálise deve ser livre e laico, blá-blá-blá.” (isso figura no seu site!).
Estão bem aparelhados e assessorados, o movimento Articulação nunca questionou nenhum dos numerosos cursos que se oferecem, inclusive com as propostas mais estapafúrdias como “curso de psicanálise evangélico”, “curso promovido pelo sindicato de psicanalistas” e outras aberrações, por não ser um órgão regulador, mas desta vez a situação é diferente, se lança um curso que garante que será aprovado pelo MEC, órgão oficial do Ministério de Educação e Cultura e, ao dar um título universitário, institui de fato a Psicanálise como profissão; daqui à regulamentação é um passo só.
Por esta razão o Movimento Articulação lançou um manifesto assinado com o apoio de mais de 100 instituições e grupos de formação que questionam ao MEC a aprovação desta formação, sem nada de blá-blá-blá, com argumentos sérios e bem fundamentados muitos dos quais estão enunciados neste trabalho.
Acho que temos elementos suficientes para escutar os outros palestrantes e depois abrir a discussão. Muito obrigada pela escuta.
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[1] Evento produzido no espaço das Inquietações ético-políticas, intitulado Bacharelado e outras imposturas: a formação psicanalítica hoje. Os demais expositores foram Alexandre Abranches Jordão, da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro e Daniel Kupermann, presidente do grupo brasileiro de pesquisas Sandor Ferenczi, professor livre docente da Universidade de São Paulo.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[3] Laplanche, J. O inconsciente e o id. Problemáticas 4. Buenos Aires: Amorrortu, 1987, p.23.
[4] Alberti, Sonia e outros. Ofício do psicanalista: formação vs regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009; Sigal, Ana Maria e outros. Ofício do psicanalista II. São Paulo: Escuta, 2019.