Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras: notícias do front
por Ana Patitucci[1]
O trabalho do Movimento Articulação tem sido intenso desde o início de 2021, com demandas que caracterizam sua dinâmica de reflexão e ação contínuas, nesses 21 anos, de luta contra a regulamentação da psicanálise. Ao longo desses anos, testemunhamos seu crescimento e hoje é formado por mais de 30 instituições psicanalíticas, oriundas de diversos Estados da federação.
O Articulação marca a história da psicanálise brasileira, na medida em que reúne diversas entidades, de diferentes linhas psicanalíticas, em um movimento que não encontra par no mundo. E, nesse momento, com a pandemia em curso e em que graves retrocessos e desmontes atingem vários setores da vida pública, o Articulação se mantém ativo e atento diante das movimentações das insistentes pautas no Congresso Nacional que, de forma direta ou indireta, se ligam à regulamentação de nosso ofício.
Foi assim que, no início do ano, vimos surgir novamente a sugestão de lei que propõe que a psicoterapia se torne uma prática exclusiva dos psicólogos. Esta sugestão não cita a psicanálise diretamente, mas observamos que nos países em que a lei da regulamentação da psicoterapia foi aprovada, como Itália e França, teve como consequência a regulamentação da psicanálise. Por isso a nossa atenção aos desdobramentos da Sug 40/2019, colocada para consulta pública no Senado e no CFP. Em 2018, uma sugestão de lei de mesmo teor foi rejeitada pela senadora Marta Suplicy, relatora designada para avaliação da proposição. Para a Sug 40, o senador Humberto Costa assumirá a relatoria, terminado o trabalho na CPI da Covid. Cabe esclarecer que, para que uma sugestão de lei se torne uma proposição legislativa, é necessário que ela seja examinada por um relator que, em seu parecer, deverá aceitar ou rejeitar a sugestão.
Para manifestarmos nossa posição sobre a sugestão de lei em curso, o Articulação escreveu uma carta que foi enviada para o CFP e para os CRPs, enviada aos membros do Departamento pelo Conselho de Direção, onde reafirmamos “a manutenção da pluralidade de escolhas teórico-clínicas, a necessidade no campo psicanalítico de profissionais de diferentes origens acadêmicas (…).”
Além da Sug 40, segue em tramitação, no Senado, o projeto de lei 101/2018, de autoria do senador Telmário Mota, do PTB de Roraima, por meio do qual propõe regulamentar a profissão de psicanalista. Em uma proposta anterior a esta, Mota colocou em tramitação o PLS 174/2017, para regulamentar as “terapias naturistas”. Dentre os vários grupos das terapias descritas nesse campo, se encontram as “modalidades de terapias psicanalíticas”, que, vejam bem, são as seguintes: “psicanálise clínica, psicanálise didata, psicanálise infantil, psicanálise teológica, psicanálise cognitiva, psicossomática, psicanálise institucional, psicanálise hospitalar”. A distorção não parou por aí. O senador acabou por destacar a psicanálise do conjunto das terapias naturistas e propôs uma lei exclusiva para a sua regulamentação. Dentre as bizarrices previstas, está a profissionalização do psicanalista por meio da formação acadêmica, com diploma reconhecido pelo MEC e, além disto, a fiscalização do exercício profissional ficar a cargo do Ministério do Trabalho. O Articulação segue acompanhando de perto a tramitação do PL 101 para continuar a movimentar os esforços necessários para impedir o seu avanço e para que seja sepultado.
Os motivos que levam às insistentes tentativas de regulamentação, que se sucedem desde 2000, são temas de constante reflexão. E, dentre eles, podemos destacar a confluência de dois fatores principais: interesses religiosos, no controle de comportamentos relacionados a sexualidade e identidades de gênero, e interesses econômicos.
No evento “Investidas do discurso religioso na regulamentação da psicanálise”[2], promovido por Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD), Barbara Conte, representante da entidade Sigmund Freud Associação Psicanalítica no Articulação, disse que o aumento das propostas de regulamentação da psicanálise coincide com a consolidação da bancada evangélica no Congresso, entre os anos 2000 e 2003. Vai se revelando, pelo debate entre os participantes da mesa, que, para compreendermos melhor a força e a penetração dos evangélicos em lugares representativos da política e social, é necessário conhecermos melhor as origens e o funcionamento dos grupos neopentecostais, as questões que lhes são importantes e suas reivindicações. Quando essas questões encontram uma ideologia que lhes dá voz e um lugar social correspondente, que defende pautas que lhes são caras, como a sexualidade e os papeis de gênero, esses grupos vão defender com afinco essas ideias pelas quais se sentem representados. E, por conseguinte, seus representantes no âmbito político vão tentar deter o poder sobre as áreas onde as questões que são do campo da subjetividade podem ser contempladas, decididas ou ainda “tratadas”. Não podemos esquecer que o pastor protestante Pfister foi um dos discípulos de Freud, com quem manteve uma longa correspondência e discussão sobre a teoria psicanalítica. Foi na psicanálise nascente que o pastor encontrou um importante modelo clínico e teórico para aplicá-lo em sua “cura de almas”.
Há outro fenômeno que tem chamado a nossa atenção e que, de alguma forma, está conectado com as sucessivas tentativas de tornar a psicanálise uma profissão devidamente regulamentada, como forças que se alimentam mutuamente: a proliferação de ofertas de cursos de psicanálise. São cursos de dois anos de duração, se tanto, com reconhecimento no MEC, diploma, carteirinha e até, pasmem, distintivo! Embora não seja do escopo de nosso trabalho, a crescente oferta desses cursos nos dá a ver o campo em que vigoram os interesses religiosos e os econômicos em detrimento da ética que é própria à formação de um psicanalista. Nesse sentido, o próprio Articulação tem um desafio, constantemente lembrado e enfrentado, que é ele próprio não se transformar em uma instituição reguladora, ou seja, sustentar um trabalho que una as diferentes entidades representativas da psicanálise brasileira, sem definir o que é a psicanálise ou quais instituições estariam autorizadas a formar psicanalistas. Ainda que tenha definido alguns critérios que reconhecem as instituições que formam psicanalistas de maneira ética e dentro dos preceitos que Freud nos legou, que sustenta a análise laica e leiga, que se origina no tripé supervisão, clínica e análise pessoal.
E quando achávamos que o trabalho do ano havia terminado, em dezembro nos chegou a notícia sobre o primeiro curso de graduação em psicanálise, inscrito no MEC, com início em 2022, de modo 100% online, com quatro anos de duração e uma grade curricular que oferece desde “formação inicial em educação a distância” até análise didática. O curso foi lançado pela UNINTER, um grande centro universitário especializado em ensino à distância, com sede em Curitiba e centenas de polos no Brasil e no exterior. Essa notícia nos levou a avaliar que um bacharelado em psicanálise nos coloca frente a uma problemática nova e bem diferente do que o movimento tem enfrentado. Possivelmente mais perigosa, pois além de ser uma distorção da formação psicanalítica, o curso de graduação pode ser o elemento que faltava para justificar a regulamentação da psicanálise.
O Articulação escreveu o Manifesto contra o bacharelado[3], subscrito por todas as entidades que o compõe, e, divulgado para toda a comunidade psicanalítica, alcançou uma importante repercussão, com o apoio de centenas de instituições e movimentos, nacionais e internacionais. A partir da divulgação do Manifesto, além das discussões internas à nossa comunidade, muitos psicanalistas se mobilizaram e vieram a publico se posicionar contra o bacharelado, através de diversas discussões promovidas em lives, de artigos publicados na mídia impressa e digital, o que gerou um importante debate que alcançou a sociedade em geral.
Elaboramos também uma nota técnica, que foi enviada, no início deste ano, para o Conselho Nacional de Educação e a Coordenação Geral de Regulação de Educação Superior, órgãos do MEC[4], com o objetivo de alertar e fundamentar a nossa posição contrária ao reconhecimento e autorização de uma graduação em psicanálise. Outras ações de enfrentamento a esta problemática seguem em discussão pelo Articulação.
Gostaríamos ainda de destacar o lançamento, em junho de 2021, do livro Ofício do psicanalista II: porque não regulamentar a psicanálise, organizado pela Práxis Lacaniana/Formação em Escola. Ana Maria Sigal, que foi delegada pelo nosso Departamento no Articulação por quase 20 anos e que segue atualmente como nossa colaboradora, foi convidada a participar do debate que celebrou o lançamento, com uma fala onde narrou seu testemunho do trabalho intenso, produtivo e valoroso que vem sendo realizado pelo movimento ao longo de seu tempo de existência. Além disso, o evento reafirmou o laço que une as diversas entidades que participam do Articulação, incluídas as diferenças que existem entre elas e que formam a riqueza do Movimento.
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[1] Delegada do Departamento de Psicanálise no Movimento Articulação. Colaboraram Paulo Jeronymo Pessoa de Carvalho e Ana Maria Sigal.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=M6AW3hVxA9k
[3] https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=agenda&acao=vcal&idc=3486&cal_ano=&cal_mes=
[4] https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=agenda&acao=vcal&idc=3490&cal_ano=&cal_mes=