Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

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Sabina Spielrein, uma pioneira da psicanálise[1]

por Renata Udler Cromberg[2]

 

A atualidade da Guerra entre Ucrânia e Rússia, do crescimento do movimento nazista me faz querer começar apontando o quanto a situação histórico-política é o maior fator que determina o destino do esquecimento de uma vida, de uma obra, de um trabalho. E afirmar que Sabina Spielrein, mulher, judia, russa vive através de seus escritos. Sabina escreveu sobre a guerra em A destruição como origem do devir em 1912, aos 25 anos. Diz ela: “A guerra é uma situação propícia de eclosão da neurose pela perturbação que traz à vida sexual. A guerra provoca representações de destruição, pois as devastações da guerra suscitam representações do componente destrutivo da pulsão sexual. Se no homem normal a guerra apela representações de futilidade da vida, no neurótico, em quem as representações de morte são mais importantes que as de vida, a guerra traz a ocasião de liberação dos fantasmas destrutivos.”

Eu digo que é fato que os totalitarismos anulam vidas, a ciência, as manifestações artísticas e culturais usando a mentira e o ódio mortal a um inimigo criado como bode expiatório, como instrumentos. De uma maneira psicanalítica é necessário recordar para elaborar simbolicamente e transformar o infernal círculo da repetição. Para que a repetição deixe de ser um gozo masoquista e se torne um diferencial simbolizante que permite sair de seu círculo infernal sonhando e inventando novos devires. Assim, a história trouxe de volta uma vida que acabou violentamente e permitiu inventar um novo devir a ela, quando foi descoberto em 1977, o que eu denominei um achado arqueológico. Um bauzinho com as cartas de Sabina Spielrein a Freud e Jung e outros e deles a ela e seus diários, que permitiu a redescoberta dos seus ensaios visionários e pioneiros da segunda e terceira década do século XX, início ainda deste novo campo de saber inaugurado por Freud, na primeira década de XX, a psicanálise.

A morte de Sabina Spielrein expõe antes de mais nada os fatos criminosos de dois totalitarismos. Ela morreu na cidade na qual nasceu, Rostov-sobre-o-Don, na fronteira com a Ucrânia atual, mas na época unida a ela, assassinada aos 56 anos junto com suas filhas Irma Renata, de 28 e Eva, de 16, pelos nazistas, naquilo que ficou conhecido como o Holocausto das valas, onde os próprios prisioneiros cavavam as valas onde eles eram fuzilados, suas crianças jogadas a eles e todos queimados para uma nova sequência de assassinatos. Estima-se que um milhão e meio de judeus morreram na Ucrânia junto com enorme quantidade de soldados soviéticos e de ciganos. Os alemães foram vistos como libertadores, pois qualquer coisa parecia melhor do que a polícia secreta de Stalin. Os ucranianos tinham muitas razões para odiar os russos e principalmente Stalin que, de 1931 a 1933, organizou uma política da fome, o Holodomor, que matou quatro milhões e meio de vítimas estimadas na Ucrânia e mais de três milhões nas demais regiões soviéticas. O Holodomor é considerado um genocídio pois é uma ação deliberada de extermínio, pela fome, do povo ucraniano enquanto entidade étnica social. Sabina havia perdido seus três irmãos assassinados em 1937 e 1938 pelo Grande Terror de 1934 a 1939, como ficaram conhecidos os grandes expurgos stalinistas com centenas de milhares de assassinatos e desterros. Seu pai e marido também pereceram de causa natural nesta época, embora o pai tenha sido preso antes.

A importância do trabalho pioneiro de Spielrein e seu esquecimento pela história deve-se sobretudo ao desaparecimento e proibição da psicanálise na União Soviética de 1931 a 1989. Eram as razões políticas que orientavam a crítica às teorias a serem condenadas e proibidas. Ser publicamente identificado como teórico ou pesquisador que não estivesse trabalhando dentro do paradigma estabelecido pelo partido era um bilhete para o completo esquecimento profissional ou ainda para possibilidades mais ameaçadoras. É, portanto, a importância da obra pioneira de Sabina Spielrein que eu pretendi destacar publicando-a em português, terceira língua em que ela aparece, depois do alemão e russo.

A autoria de Sabina Spielrein foi efeito do fim de sua análise com Carl Gustav Jung. Sigmund Freud interferiu na relação entre Jung e Sabina de uma forma que lhe permitiu transferir seu desejo erótico para a escrita de sua própria poesie, sua obra. Esta era a metáfora que adotava quando queria falar de seus encontros amorosos e de intercâmbio intelectual com Jung. Após sua análise, tornou-se médica, psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica de Viena e depois da Sociedade Psicanalítica de Moscou, pesquisadora e escritora de 1910 a 1931. Em meu trabalho de reflexão, a história de vida de Sabina Spielrein em seu percurso psíquico, emocional, profissional e social, e as condições históricas, sociais, institucionais e culturais de seu tempo que contribuíram para o esquecimento de sua obra e de sua importância para a psicanálise proporcionaram a moldura daquilo que pretendo destacar: a importância de sua obra pioneira.

O primeiro volume das obras completas traz os três primeiros ensaios de Spielrein e uma carta. Nesse primeiro período, seu lugar de pioneira surgiu ao formular: 1) em “Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia, de 1911, por meio da análise do discurso de uma paciente esquizofrênica, que seu conteúdo tinha um sentido afetivo sexual. Com isso, tornava-se parte da Psiquiatria Nova, psiquiatria dinâmica influenciada pela psicanálise e que tinha em Eugen Bleuler seu principal expoente. 2) em “A destruição como origem do Devir, de 1912, a existência do componente destrutivo da pulsão sexual, afirmando, 9 anos antes de Freud, a existência de uma pulsão de morte que produzia dinamicamente a transformação, o devir e, estaticamente, o masoquismo primário, o gozo na dor. 3) Em “A sogra, de 1913, uma formulação sobre o masculino e o feminino e a empatia materna. 4) Na carta a Jung de 20 de dezembro de 1917, uma metapsicologia psicanalítica própria, baseada principalmente em Freud.

O volume 2 traz a contribuição pioneira de Sabina Spielrein no campo da origem da linguagem, do pensamento e da imagem corporal e visual na constituição do processo de simbolização e no campo da psicanálise com criança. São 31 escritos que completam a publicação em português da obra de Sabina Spielrein, cujos textos foram todos publicados nas principais revistas de psicanálise e psicologia de sua época. Eles são acompanhados de ensaios que situam o ambiente em que foram escritos, sua posição geográfica no trajeto da sua história pessoal e familiar, bem como da história das instituições psicanalíticas, educacionais e de saúde nas quais trabalhou em Berlim, Lausanne, Genebra, Moscou e Rostov-sobre-o-Don, e a história política do período que abrange sua vida como psicanalista e médica, durante a qual escreveu. Ao final do volume, são apresentadas minhas reflexões sobre a contribuição pioneira de Sabina Spielrein.

O texto de 1912, “Contribuições para o conhecimento da alma infantil”, faz de Sabina a pioneira em psicanálise com criança. Já os textos entre 1922 e 23, “A origem das palavras infantis ‘mamãe’ e ‘papai’. Algumas considerações sobre os diferentes estágios do desenvolvimento da linguagem’; ”O tempo na vida subliminar da alma” e  “Algumas analogias entre o pensamento da criança, o dos afásicos e o pensamento subconsciente” são também inéditos.

Eles mostram Spielrein pensando no papel das linguagens não verbais — o ritmo e a melodia como precursores da linguagem verbal e sempre presentes junto das linguagens visual, tátil e gestual, além do papel importante da arte e da música para as pessoas e os povos. Ela elabora uma teoria inédita e visionária sobre a construção da linguagem e do significado do aleitamento e do ato de sugar no desenvolvimento da criança, além de diferenciar as linguagens que não têm por objetivo a comunicação com outras pessoas, autistas e mágicas, daquelas que visam à comunicação, as linguagens sociais. Além disso, ela postula pela primeira vez o surgimento da linguagem infantil a partir da relação entre a mãe e o bebê e seu projeto investigativo psicanalítico teórico sobre a formação de símbolos por meio das reflexões sobre a origem da linguagem.

Ela foi a primeira psicanalista a fazer a ligação entre psicanálise e linguística, a partir dos textos de Freud, e a formular suas próprias ideias sobre a linguagem. Seus principais trabalhos teóricos escritos no período de Genebra demonstram uma consciência implícita da absoluta necessidade de inserir a teoria psicanalítica nas novas descobertas da psicologia do desenvolvimento e da linguística. Com a sua partida para a Rússia em 1923, a importante tarefa que ela apenas começara só viria a ser retomada décadas depois no campo psicanalítico. Há também as diferenças e semelhanças de seu pensamento com Lev Vigotsky e Piaget, pioneiros do estudo do pensamento e da linguagem infantil, apontando a sua importância no inconsciente literário desses pensadores por terem participado da transmissão do seu saber psicanalítico antes da elaboração de suas próprias ideias. O seu último artigo publicado na Imago, em 1931, é “Desenhos infantis de olhos abertos e fechados. Estudo sobre as representações cinestésicas subliminares”. Ele sequer foi publicado originalmente em russo, nessa época de construção da crítica e proibição da psicanálise, e foi o último artigo de psicanálise a sair da URSS. Esse artigo contém a elaboração final das reflexões de Spielrein sobre a origem do pensamento e do símbolo e permite, a posteriori, retomar, a partir dele, as etapas anteriores de sua elaboração, uma possível teoria sobre a formação do símbolo que ela nunca escreveu como tal, apesar de anunciá-la desde 1920. Seu pensamento teórico-clínico fundamenta e antecipa conceitos que aparecerão alguns anos mais tarde no campo da psicanálise como integração somato-psíquica, imagem inconsciente corporal e mentalização. A atualidade do ensaio e da reflexão sobre a importância do cinestésico e do visual, e da função de ensinar as crianças a verem se sobressai quando pensamos no contexto atual em que há uma revolução tecnológica, com a internet, computadores e celulares, que trouxe a questão da imagem virtual – e os riscos de desconexão com a visão do mundo externo e da diminuição da interação com o outro não virtual – ao primeiro plano, trazendo à tona a discussão da mudança do modo de pensar, do pensamento por imagens e a discussão do quão regressivo ou progressivo seriam esse fenômeno e suas consequências, quando o visual se sobrepõe às interações em presença, em que se sente o próprio corpo e a presença corporal do outro.

Sabina Spielrein nos deixa um devir pela maneira com que foi força instituinte, guerreira quatro vezes de maneira transdisciplinar com a psiquiatria, com a educação, com a linguística e com a neurociência, campos nascentes que ela pôs em contato de maneira inédita, preservando a psicanálise como a força imanente central dos desdobramentos de suas criações, trazendo compreensões inéditas da loucura, da linguagem e do pensamento infantil, formulando uma teoria da simbolização entre o corpo e o pensamento para torná-lo vivo, simultaneamente singular e universal, inventando formas terapêuticas, criando na atualidade renascida e renovada de sua obra, novos devires.

 

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[1] Originalmente apresentado por ocasião do lançamento online dos volumes 1 e 2 do livro de mesmo título, que contou com as participações de Flavio Ferraz, Renato Mezan, Silvia Alonso, Adela Gueller e Eugenio Dal Molin. Disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=ZqDEAVRqhnQ

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.