Tecnologia e Saúde Mental
por Renata Calife Fortes[1]
Meados de Agosto de 2021, estávamos atravessando há mais de um ano uma situação pandêmica. Neste período tornaram-se comuns, nas editorias de jornais, assuntos relacionados à Saúde Mental. Houve uma profusão de matérias, de lives, de entrevistas. Se por um lado colocar o assunto em pauta é importantíssimo, já́ que há muito tempo vem sendo negligenciado por políticas públicas e empresariais, por outro lado parecia haver até mesmo por parte de um grupo de profissionais da área de psicologia uma tentativa de circunscrever um único modo de sofrimento psíquico diante do evento mundial do Covid 19.
Uma matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo de 18 de agosto destaca a junção entre a tecnologia e a psicologia no intuito de criarem ferramentas para auferir a Saúde Mental de funcionários de empresas. Traçando linhas muito objetivas sobre o assunto, a publicação ressaltava empresas que desenvolviam modelos de compilação de dados que permitem avaliar a predisposição do funcionário para apresentar questões psicossociais mais graves. A partir do preenchimento de pesquisas eletrônicas, o software emite uma avaliação sobre a Saúde Mental do sujeito. Citando a matéria: “com ela, é possível saber se o funcionário trabalhou a mais, se fez pausa para o almoço ou se está perdendo tempo excessivo em determinadas tarefas (…) a start up desenvolveu uma inteligência artificial que, instalada no computador, traduz tempos e movimentos em dados.”
Confesso que a matéria me pareceu indigesta, mas eu ainda não sabia o motivo. Vale destacar a clareza do texto que de antemão assinalara os benefícios de controle que servem para evitar ações trabalhistas, principalmente, no ambiente de home office. Este tema fica para o campo da advocacia.
Sigo aqui, incomodada com o que li.
No mesmo dia, no consultório, recebo um jovem que trabalha em uma empresa de tecnologia. O paciente tem sofrido de crises de ansiedade, insônia, queixa-se de alta demanda de trabalho e uma vivência de alguém que não vai conseguir atingir as metas. Sente-se “sempre devendo”.
Outro relato: uma mulher, por volta de seus 30 anos, apresenta-se muito irritada, diz não ter tempo para a vida pessoal, relata que com o home office a casa foi invadida pelas demandas profissionais, os chefes solicitam a qualquer hora do dia. Está extremamente sobrecarregada e tem medo de “pifar”.
Pronto, aqui localizo o significante que liga uma cena a outra e começa a se justificar o meu incômodo diante da matéria lida pela manhã.
As máquinas pifam e tornam-se obsoletas; por ora, em função do discurso capitalista, ficam obsoletas antes mesmo de pifar. A tecnologia que se propõe a mapear a Saúde Mental dos funcionários mais parece aqueles sistemas inteligentes que diagnosticam falhas nos carros modernos. Um simples check up eletrônico evidencia os problemas do veículo.
Curioso observar que os pontos de atenção das tecnologias que se propõem a cuidar da Saúde Mental dizem respeito a tempos e movimentos. Mais assustador me parece quando pensamos nestes conceitos à luz de máximas como “tempo é dinheiro” ou ainda, quando o recurso de envio de mensagens WhatsApp agora permite avançar a mensagem em velocidade de escuta.
Então, retomamos a chamada do artigo: Startups criam ferramentas para reduzir riscos à Saúde Mental em profissionais. Riscos de que os profissionais “pifem”, riscos que podem sugerir um declínio de produtividade da equipe, me parece.
Kehl (2009), em seu livro O tempo e o cão, afirma que, muitas vezes, o sujeito que apresenta um quadro depressivo o faz na intenção de denunciar uma impossibilidade de atuar num cenário de extrema produtividade, competitividade e absoluta falta de individualidade. Ela destaca o imperativo do discurso capitalista que coloca o sujeito no ritmo eufórico e repetitivo de produção, consumo e gozo.
Nenhum algoritmo, nenhuma compilação de dados, nenhum gabarito escutará o empobrecimento psíquico do sujeito e a anulação da subjetividade tão escancarada nos relatos de consultório. O funcionário que apresenta sofrimento psíquico, para além de “pifar”, tem medo de desaparecer enquanto sujeito. O diagnóstico eletrônico pode sugerir algum índice da Saúde Mental do sujeito, mas somente a escuta clínica – seja em terapia individual, seja em dispositivos de grupo – pode oferecer um cuidado e preocupação com o sofrimento psíquico de cada funcionário.
Afinal, zumbis também podem ser monitorados, não? Como andam, quanto dormem, qual o ritmo do passo? Que sons fazem?
Sigo ansiando por novas notícias. A propósito: ainda hoje leio o jornal impresso, dedos sujos de tinta, que satisfação!
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[1] Psicanalista, aspirante a membro de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.