A sociedade do desempenho e as patologias do neoliberalismo
Aula inaugural de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea 2019: Origens do curso
por Mario Pablo Fuks[1]
Faz parte do caminho seguido pela psicanálise – como afirmamos em trabalho publicado no boletim online em 2017[2] – não só a expansão das fronteiras clínicas, mas o perguntar-se reiteradamente sobre a relação entre o psíquico e o social, o papel do determinismo sociocultural na produção dos sofrimentos psíquicos, a forma que tomam esses sofrimentos conforme cada época e o modo como são tratados em dita época os portadores destes sofrimentos.
Através de que caminho chegamos até as chamadas patologias contemporâneas para torná-las objeto desse curso? É preciso falar da história do grupo.
Em primeiro lugar, está o fato de sermos psicanalistas e termos participado todos da criação e desenvolvimento de um projeto formativo de projeção histórica. O Curso de Psicanálise, fundado em 1976, foi o primeiro projeto paulistano independente de formação de psicanalistas. Consolidado dito curso, criou-se o Departamento de Psicanálise em 1985.
Foi nessa época que nos engajamos nas práticas institucionais da Saúde Mental pública, apoiando a Reforma Psiquiátrica e encontrando aliados nos movimentos antimanicomiais que floresceram nos anos 80 e 90, acompanhando o processo de democratização do país.[3]
O curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, assim como o grupo que o sustenta, surge em 1998, a partir de outro que iniciamos em 1993 sobre Psicoses: Concepções teóricas e estratégias institucionais que teve muito boa acolhida, em um momento de muita mobilização e trabalho com novos equipamentos de Saúde Mental, principalmente os hospitais-dia. Dita experiência teria repercussões importantes no devir do grupo.
Um dois eixos teóricos que desenvolvemos centrou-se no conceito de recusa, processo defensivo que se põe em ação quando alguma percepção angustiante ameaça socavar as crenças e ilusões que dão suporte ao narcisismo de indivíduos, grupos ou coletivos maiores e que produz efeitos dissociativos favoráveis à produção de sintomas diferentes do sintoma neurótico, como se vê no campo das perversões e da psicose.
Enfocamos a recusa desde o ponto de vista do bloqueio do processo de subjetivação, estudando quais episódios e processos intrafamiliares o produziam – e o reproduziam, no presente, no contexto institucional –, investigando também que dispositivos poderiam ser montados para superar a recusa e iniciar um processo de re-subjetivação.
Estudamos as relações dessubjetivantes presentes na instituição psiquiátrica, a evaporação das histórias singulares e a ausência de interlocução, e defendemos enfaticamente a possibilidade de uma recuperação da elaboração psíquica através do trabalho das equipes nos hospitais-dia. A compreensão mais ampla das políticas de Saúde Mental vigentes nos permitiu situar a problemática da psicose em um contexto científico, ético, social e político. Nesse contexto afirmamos, e podemos afirmar hoje, o valor da clínica psicanalítica como dispositivo promotor do processo de subjetivação e sua importância como interlocução, construção de narrativas e possibilidade de elaboração de situações traumáticas.
Valorizamos também a supervisão, que permite identificar os pontos cegos presentes na prática psicoterápica, os quais, no contexto institucional, viram pontos cegos, surdos e mudos. Coerentemente com essa posição, acolhemos rapidamente a demanda aguda surgida no espaço daquele curso frente à paralisia, reorganização e desmantelamento dos lugares de trabalho, causados pela implantação do PAS pelo governo Maluf[4]. Reformulamos imediatamente nosso funcionamento, criando grupos de elaboração das situações traumáticas que afetaram tanto os profissionais como os pacientes a partir da imposição acelerada e autoritária daquela política nos equipamentos de saúde pública da cidade.
Cabe avaliar a importância da historização para pensar a crise política que estamos atravessando, que inclui – desde 2017 – graves retrocessos nas políticas de Saúde Mental, como são: a violenta intervenção da Prefeitura nos programas ligados a drogadicções ao restaurar o modelo, questionado já em toda parte, de “guerra às drogas”; a promoção das “comunidades terapêuticas” que têm um sentido diferente, senão oposto, ao que tinham para Maxwell Jones, criador das mesmas na Inglaterra a fim de impulsionar a abertura institucional; o recente aumento de financiamento para novos leitos psiquiátricos, que ameaça ser um primeiro passo para o restabelecimento do modelo manicomial. Hoje, março de 2019, frente ao propósito recentemente declarado – através da Nota Técnica 11/2019, divulgada pelo Ministério de Saúde Pública – de desmontar os espaços conquistados e os recursos construídos por mais de 30 anos de avanços na Reforma Psiquiátrica, recusando a validez e o sentido da existência de equipamentos e métodos substitutivos da internação psiquiátrica, nos perguntamos qual será a forma de resistir. Em um primeiro movimento cabe nos unirmos aos Psicanalistas pela democracia, a diversos grupos de analistas que estão se mobilizando dentro do movimento Articulação, aos trabalhadores de Saúde Mental, aos ex-psiquiatrizados e suas famílias e a todos aqueles que fazem parte da luta antimanicomial, no repúdio a estas tentativas. A Diretoria do Instituto Sedes já publicou uma declaração nesse sentido, em 26/02/2019.
Em meados de 1995 nosso grupo tinha começado a se interessar por uma problemática mais ampla, que associa as análises sobre subjetividade contemporânea, cultura pós-moderna, neoliberalismo, etc. com a ocorrência de certos tipos de patologias, de caráter por momentos epidêmico, e que passam a ser objeto de uma abordagem frequentemente reducionista e dessubjetivante por parte das correntes vigentes no campo psiquiátrico. O assunto estava no ar, tanto no espaço sociocultural geral como no meio especificamente psicanalítico.
Em 1993 aparece o livro As novas doenças da alma da psicanalista búlgara Julia Kristeva e, em 1995, em espanhol, o livro Entre dos mundos, das psicanalistas argentinas Maria Cristina Rojas e Susana Sternbach, no qual se visualizava como, através do debate modernidade – pósmodernidade, o sujeito como tema volta a se revestir do social-histórico, desafiando as cosmovisões assentadas. Esse livro nos introduziu na análise da crise que, iniciando-se nos anos 70, avançaria ao longo do que faltava do século e do milênio. Vista como crise dos ideais e valores da modernidade face às mudanças nos processos de subjetivação derivadas da queda das grandes utopias coletivas – o chamado fim da história de Fukuyama -, da ruptura de laços sociais e da produção de um novo tipo de subjetividade, narcisista e adictiva, decorrente das lógicas induzidas pelas novas modalidades de produção e práticas de consumo.
Em As novas doenças da alma Julia Kristeva (1993)[5] sustenta que a experiência cotidiana demonstra uma redução impressionante da vida interior, perguntando-se se temos hoje o tempo e o espaço necessários para arranjarmo-nos uma alma, ou se “pressionados pelo estresse, impacientes por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os homens e mulheres de hoje economizam essa representação de sua experiência a que chamamos vida psíquica.”(2002, p. 14). Habitante de um espaço e um tempo fragmentado e acelerado, com dificuldade para reconhecer-se uma fisionomia, essa espécie de anfíbio é um ser fronteiriço, um borderline ou um falso-self.
Estes novos pacientes – diz ela – mostram todos uma particular dificuldade de representação. “O espaço psíquico, essa câmera escura de nosso ser onde se refletem tanto a angústia de viver como a alegria e a liberdade do homem ocidental, está talvez a ponto de desaparecer?”. Que significa o retorno das religiões? O aumento de interesse pelas mesmas procede de uma busca, ou todo o contrário, elas se constituem numa solução-prótese para sua pobreza psíquica?
Como diz mais adiante, “o psíquico pode ser o lugar onde se elaboram e portanto se liquidam, tanto o sintoma somático quanto a projeção delirante: o psíquico é nossa proteção, desde que a pessoa não se feche nele, mas sim o transfira pelo ato da linguagem para uma sublimação, um ato de pensamento, de interpretação, de transformação relacional…”[6] (Idem, pp. 38-39), o que supõe a abertura para um outro.
Kristeva sustenta que há um agravamento da doença psicológica que caracteriza o mundo atual, que é a outra face da sociedade do rendimento e do stress. O desassossego que se instala renova um chamado à psicanálise para dar um sentido a esse desastre interior. Eu penso que é uma verdade perceptível nos pacientes que nos procuram.
Mas a psicanálise tem dois grandes obstáculos a enfrentar: 1) a competição com as neurociências: a pílula ou a palavra e 2) aliado do anterior, o desejo de não saber em suas diversas formas… principalmente, entendemos, o tirar da cabeça que caracterizava o recalque como modo patógeno de fugir do conflito, através das diferentes defesas, e a recusa, forma teorizada posteriormente e que se apoia em diversos fetiches, discursos e relações perversas.
A autora afirma que “o homem moderno está perdendo sua alma. Mas não o sabe disso, pois é precisamente o aparelho psíquico que registra as representações e seus valores significantes para o sujeito. Ora, a câmara escura está avariada.” (p. 14).
Como desenvolvemos em um texto anterior[7], a partir da grande virada neoliberal dos anos 80 e 90, iniciada e protagonizada por Thatcher e Reagan, começa a ser fabricado um novo sujeito que pode ser chamado de sujeito empresarial, empresário de si mesmo, sujeito neoliberal ou neo sujeito. Trata-se de produzir e governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que ele cumpra. A motivação, a vontade de realização pessoal, o projeto que o sujeito se propõe desenvolver, “enfim o desejo, com todos os nomes que se queira dar a ele, é o alvo do novo poder.”[8]
A ideia de construir uma subjetividade neoliberal era clara e explícita. Há uma frase famosa de Margareth Thatcher em um discurso pré-eleitoral: “A economia é o método, mas o objetivo é a alma”. A qual, de uma maneira insolitamente precisa, dá fundamento ao toque de alarme de Kristeva.
Byung-Chul Han, um filósofo nascido na Coreia mas radicado na Alemanha, um estudioso do tema do qual publicou-se recentemente Sociedade do cansaço (Vozes, 2017)[9], afirma que a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, assim denominada e teorizada por Michel Foucault, dominada pela negatividade, mas uma sociedade de desempenho. Os muros das instituições disciplinares, que delimitavam os espaços entre o normal e o anormal, se tornaram arcaicos. Os habitantes desta sociedade não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e de produção. São empresários de si mesmos. Continuaremos na exposição esquemática e comentada, com os limites e riscos que isso supõe, das ideias vertidas pelo autor.
Na sociedade disciplinar está presente a negatividade sob a forma da proibição, do “Não, não pode”. Na imposição do dever também está presente a negatividade, que é a negatividade da coerção. A sociedade do desempenho vai se desvinculando dessas negatividades, primeiro habilitando a transgressão das regras e regulamentos, depois desregulamentando. O que a rege é o “Pode, pode tudo”, ilimitadamente. “O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho” (p. 24).
O sujeito do desempenho da modernidade tardia não se submete a nenhuma ordem compulsória. Suas máximas são a liberdade e a boa vontade. Contrariamente à proscrição de gozo – presente na ética protestante do trabalho, da acumulação de capital e da renúncia aos prazeres, sem a qual não se teria desenvolvido o capitalismo (Max Weber), e que tem muito a ver com o superego freudiano repressor das pulsões[10] – o sujeito do desempenho espera do trabalho, acima de tudo, o prazer. O paradoxo é que surgem coações internas e se apresenta uma crise provocada pela falta de gratificação.
Na sociedade disciplinar, há um Deus, os correligionários, um outro exterior ou interior que gratificava, que premia finalmente a meta realizada com a bem-aventurança. Podia estar no além, mas estava. “O sujeito moral que aceita também a dor e o sofrimento por causa da moralidade está seguro de receber a gratificação. Ele mantém uma relação íntima com o outro como instância de gratificação. Aqui não há crise de gratificação porque Deus não engana, nele se pode confiar” (p. 83).
O sujeito empresarial apresenta uma crise no campo da satisfação. Não tem a gratificação de chegar a uma meta. Vive constantemente num sentimento de carência, de insuficiência e de culpa. Tentando sempre superar a si mesmo, acaba esgotando-se, entra em colapso psíquico, o burnout. A síndrome de burnout (SB) é uma das figuras psicopatológicas paradigmáticas da sociedade de desempenho. Para Byung-Chul Han, junto da depressão, do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e do transtorno de personalidade limítrofe (TPL), determina parte da paisagem patológica de começo de século XXI (p. 7).
Seguindo Richard Sennet, ele afirma que essa crise é o resultado do narcisismo e da falta de relação com o outro. Mergulhar em si mesmo não traz gratificação, só dor e sofrimento.
O narcisista não é afeito à experiência, ele quer vivenciar. No encontro com o outro se vivencia a si mesmo, bebe-se no si mesmo. Na experiência, ao contrário, encontramos o outro. Esses encontros são transformadores, nos modificam. De nossa parte, temos afirmado que a psicanálise é uma prática que está em posição de resistência à lógica do consumo, na medida em que promove uma experiência em que os protagonistas entram dispostos a modificar-se reciprocamente. É claro que poderão existir percursos analíticos pífios marcados por modos consumistas de encará-los.
Quando compara a depressão com a histeria, B.-C. Han diz que esta última é uma doença típica da sociedade disciplinar. Pressupõe a negatividade da repressão, que leva à formação do inconsciente. As representações recalcadas se manifestam através da conversão do afeto em sintomas corporais, mas numa conformação característica que os diferencia das somatizações. A histeria mostra uma morfologia característica. A pessoa depressiva, em contraposição, não tem forma, é amorfa… Essa falta de forma, essa excessiva flexibilidade favorece uma eficiência econômica elevada.
Nas doenças psíquicas de hoje não se veria a marca da repressão, da negatividade. Elas remetem a um excesso de positividade. Tampouco se detecta nas depressões a relação ambivalente com um outro que se perdeu –negatividade da perda- e foi incorporado, causando a relação agressiva e destrutiva consigo mesmo, tal como reconhecido por Freud na melancolia. A causa da depressão é a autorrelação sobre-exaltada narcisista, que acaba adotando traços depressivos. O eu se desgasta, correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma.
O sujeito do desempenho pós-moderno, que dispõe de uma quantidade exagerada de opções, não é capaz de estabelecer relações intensas. O luto distingue-se da depressão sobretudo por sua forte ligação libidinosa com um objeto. “O ego pós-moderno emprega grande parte de sua energia de libido para si mesmo. O restante da libido é distribuído em contatos sempre crescentes, em número, e relações superficiais e passageiras. Em virtude de um fraco elo de ligação, é muito fácil retirar a libido de um objeto, e com isso, direcioná-la rumo à posse de novos objetos. O ‘trabalho de enlutamento’, demorado e dolorido, acabou-se tornando desnecessário. A ‘alegria’ que se encontra nas redes sociais de relacionamento tem sobretudo a função de elevar o sentimento próprio narcísico. Ela forma uma massa de aplausos que dá atenção ao ego exposto ao modo de uma mercadoria” (p. 93).
Há uma violência sistemática que habita no seio da sociedade de desempenho, própria das relações de dominação neoliberal, se radica no elemento psicológico e transformou o sujeito ilusoriamente livre e soberano, empreendedor de si mesmo, em escravo de si mesmo, escravidão manifesta, como já vimos, nas enfermidades psíquicas do sujeito do desempenho.
O homem soberano, anunciado por Nietzsche, e que é uma referência para pensar o sujeito pós-moderno, aparece no depressivo como uma pessoa esgotada por sua soberania. Já não tem mais força de ser “senhor de si mesmo”. Daí o título do livro, Sociedade do cansaço. Não é o super-homem, senhor de um tempo livre, que conserva o repouso e se movimenta lentamente; ao homem da época falta gravidade, não há o bastante dentro de si, isso o torna doente. Mas as relações de produção capitalistas requerem esse homem leve e flexível… A sociedade disciplinar industrial dependia de uma identidade firme e imutável, a sociedade de desempenho não industrial precisa de uma pessoa flexível para poder aumentar a produção. O burnout é a consequência patológica de uma autoexploração.
“Na transição da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho, o superego acaba se positivando no eu-ideal” (p. 100). O supereu é repressivo, pronuncia proibições; contrariamente, o eu-ideal é sedutor. O sujeito de desempenho projeta a si mesmo na linha do eu-ideal, o sujeito da disciplina se submete ao supereu. No lugar da violência gerada por um fator externo, entra a violência autogerada, que é mais fatal, porque a vítima imagina ser alguém livre.
Observamos um paradoxo no percurso da reflexão teórico-filosófica de Byung-Chul Han. Ele afirma, enfaticamente, que a concepção psicanalítica do psiquismo e seus conceitos maiores – o recalque e o inconsciente -, determinando um espaço psíquico dividido por fronteiras, censuras, etc., segue a lógica própria da sociedade repressiva, do que Foucault definiu como sociedade disciplinar, sujeita ao imperativo da proibição, dos não pode. Responderiam, portanto, a uma dialética da negatividade. A metapsicologia freudiana serviria para explicar a histeria e a neurose obsessiva, doenças próprias da sociedade disciplinar, mas não as doenças que se produzem na sociedade do desempenho e que são paradigmáticas da mesma. Estas são efeito da positividade, ou melhor, do excesso de positividade, o que parece requerer, do autor, o recurso a referências ou metáforas outras: por se tratarem de “patologias” do DSM, as que utiliza mais frequentemente são tomadas das concepções e vocabulário médico ou biológico: enfermidade neural versus enfermidade de imunidade, superaquecimento neural, infarto psíquico ou gordura dos sistemas (remetendo-se a Baudrillard).
Mas, para descrever e aprofundar-se nas depressões contemporâneas, o autor se serve amplamente das comparações com a melancolia, tal como compreendida por Freud, e com o luto. Também lança mão, de forma teoricamente eficaz, dos conceitos de narcisismo, investimento objetal, supereu, eu ideal, etc. Penso que a reflexão sobre a negatividade e a positividade é muito interessante e frutífera. E me leva a conectá-lo com um dos trabalhos mais importantes de um dos autores pós freudianos que nos servem de base para a abordagem das patologias contemporâneas, André Green, que se intitula, precisamente, O trabalho do negativo. Mas mesmo em relação a Freud, a bagagem metapsicológica freudiana a que recorre, ao menos em Sociedade do cansaço, não parece passar de O Ego e o Id, de 1923. Nada de A (de)negação [(Die Verneinung), 1925] nem dos conceitos psicopatológicos desenvolvidos em 1926 em Neurose e psicose, onde entram em cena as neuroses narcísicas, as alterações do eu, a cisão e a recusa. É por aí, justamente, que, no curso, tentamos avançar, incluindo os trabalhos de Green, de Winnicott, de Lacan.
É possível debater, por exemplo, as questões colocadas por Byung-Chul Han a respeito do supereu, eu ideal, etc. partindo das contribuições de Lacan, consideradas por Vladimir Safatle em “Por uma crítica da economia libidinal” (2008). Postula-se – também nesse trabalho – que existiram consequências psíquicas da passagem da sociedade de produção à sociedade de consumo. “Jacques Lacan identificou talvez a maior delas ao insistir que a figura social dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais vinculada à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo. Daí porque ele nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é: “Goza!”, ou seja, o gozo transformado em uma obrigação” (nota V, p. 21). O declínio da imago paterna, postulado por Lacan paralelamente aos trabalhos da escola de Frankfurt sobre a absorção, por parte de corporações sociais burocráticas, de funções que anteriormente haviam sido do pai na família, enfraquecendo sua autoridade, “deu espaço para o advento de figuras fantasmáticas de autoridade que se assemelhavam ao pai primevo do mito freudiano de Totem e tabu; ou seja, ao pai-senhor do gozo que pauta suas ações pela procura incessante da satisfação imediata. Figura perversa, feroz e obscena, como dizia Lacan, que pouco tem a ver com a figura tradicional de um pai que converge imperativos de repressão e de sublimação” (p. 22).
As reflexões desses autores servem para validar o percurso escolhido em nosso programa, não só como programação do curso, mas no sentido de projeto teórico-crítico. Este parte do reconhecimento da complexidade do aparelho psíquico concebido por Freud, sujeito a diferentes regimes de funcionamento, capaz de produzir diversos “trabalhos”: trabalhos do sonho, do luto, da perlaboração, trabalho do negativo, trabalho de cultura.
Transportando-nos agora para um contexto político mais amplo, nos aparecem algumas questões: Trump não está levando, acaso, uma luta ferrenha no Congresso dos EUA para poder construir um muro que separe a América, a grande América, do resto do continente? E o governo Bolsonaro não parece seguir a mesma linha, na mesma tessitura, na sociedade brasileira, facilitando, entre outras coisas, a pretensão de retorno ao modelo manicomial? Sem descartar o elemento de reação frente a fracassos do neoliberalismo que apontamos no trabalho anterior sobre o tema (ver Fuks, 2017), penso que os processos de direitização que atravessam o mundo trazem consigo não somente a modalidade autoritária centrada na figura do homem forte[11], que pretendem compatível com a democracia, mas também marcas emblemáticas totalitárias, visivelmente fascistizantes, que são resíduo de outros tempos, mas resíduo ativo. Buscam instaurar uma topologia de muros, fronteiras e terrores, materiais e imaginárias. O homem forte faz parte do laço instituído nas sociedades totalitárias. Foi estudado por Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921) e por W. Reich em Psicologia de massas do fascismo (1933).
A cultura narcísica da violência – tematizada por Jurandir Freire Costa em “Narcisismo em tempos sombrios”[12] – nutrida pela deterioração social e pelo descrédito na justiça e a lei, apresenta como saída “… a fruição imediata do presente, a submissão ao status quo e a oposição sistemática e metódica a qualquer projeto de mudança que implique em cooperação social e a negociação não violenta de interesses particulares.” (p. 167). Ou seja, oposição à vigência de um laço solidário e de um funcionamento político democrático.
Pensemos em Marielle Franco: como vereadora e líder social ela significava uma mudança crucial na forma de fazer política de defesa dos direitos humanos, aprofundando a democracia, tornando a política representativa, inovadora, fortemente inclusiva e de mobilização e reconhecimento dos movimentos sociais. Por isso precisava ser eliminada, de modo a semear-se o terror nos indivíduos, coletivos e comunidades representados e identificados com ela.[13]
Antes ainda de ser eleito, o candidato a homem forte brasileiro já dirigia expressões de ódio e de não reconhecimento social a diversos grupos da população, expressões configuradas como verdadeiros anátemas, enunciados condenatórios que operam como as excomunhões e maldições, privando de reconhecimento social e expondo as agressões, ao modo do que se dirige aos homini sacer. Foi eleito e continua a se manifestar, desde a posição de figura maior de poder Executivo, contrariando as exigências mínimas de decoro que seriam pertinentes ao cargo de que está investido.
Superando o medo e o desânimo, as expressões de repúdio massivas por ocasião do carnaval – que mostraram toda a potencialidade política crítica da festa popular estudada por M. Bakhtin – dirigidas contra esse poder despótico que não só desqualifica grupos sociais inteiros, como pretende anular realizações e conquistas democráticas, constituem, no momento, a resposta mais contundente e efetiva, a interposição de um NÃO coletivo, destinado a pôr um limite ao retrocesso civilizatório que ameaça esfacelar a cidadania e destruir a cultura.
A tarefa comum, a solidariedade, o poder contar uns com os outros, é a única possibilidade que temos para enfrentar não só o desamparo frente a essas forças regressivas, mas também frente ao poder destrutivo do supereu, que aumenta quando ficamos isolados.
Cito um colega argentino que se ocupou muito das questões da contemporaneidade, ao comentar O mal-estar na cultura: “O homem tem, assim, duas alternativas frente ao outro: ou se liga libidinalmente identificando-se com ele para constituir alguma forma de laço social, abolindo o domínio do amo (pai primevo), ou desgarrado dos membros da fratria, fica entregue ao poder absoluto desse outro interior que é o supereu”[14].
A qualidade da união amorosa entre os “irmãos”, o fluir dos reconhecimentos, o tipo de identificações que estabeleçam, o modo de processar as tensões intra grupo e as formas de agir sobre a realidade exterior serão determinantes para seu destino ou sua história.
Psicopatologia psicanalítica, construção de subjetividade e neoliberalismo[1]
por Mario Pablo Fuks[15]
A produção de novas enfermidades da alma no Estado de mal-estar social.
Faz parte do caminho seguido pela psicanálise não só a expansão das fronteiras clínicas, mas o perguntar-se reiteradamente sobre a relação entre o psíquico e o social ou, mais precisamente, o sociocultural. Freud nunca deixou de considerar os determinismos sociais, as marcas que deixam no psiquismo as diversas épocas históricas. Freud não esteve nisto sozinho. Teve apoios e teve aliados. Apoiou-se nos cientistas de sua época, nos poetas e nos escritores. Juntou-se a filósofos e humoristas, figurando-os como um grupo de “companheiros de descrença” no qual se incluía, dando assim sustentação imaginária e simbólica aos seus ensaios referidos às origens, à história da cultura e ao papel da religião[16].
Falar de muitos dos quadros que se fazem presentes hoje na clínica como patologias da contemporaneidade implica valorizar, em um recorte particular, suas conexões com o espírito e a configuração social da época. Conexões que explicam uma historicidade das formações psicopatológicas, o que não invalida o reconhecimento de aspectos invariantes, se bem que sujeitos a discussão, balanço e reavaliação por parte dos psicanalistas. “Nos lapsos, nos sonhos, nos sintomas de nossos pacientes revela-se a eficácia do inconsciente fazendo parte de uma divisão, de uma spaltung subjetiva, que subsiste além do câmbio histórico. Porém os modos em que se manifestam os sofrimentos psíquicos não são alheios aos códigos culturais. O sintoma é uma formação de compromisso, mas também é um apelo ao outro e este apelo se formula dentro dos códigos compartilhados.”[17]
Mas retomo nossa pergunta: certo tipo de quadros que vemos hoje na clínica expressam novos modos de produção de subjetividade ou apenas vicissitudes de formas conhecidas de subjetivação, novas roupagens para problemáticas já estudadas pela psicanálise? E antes disso, como apropriarmo-nos do conceito de subjetividade e de modo de produção de subjetividade? Na exposição – em boa medida esquemática – que me proponho a fazer, tomo ideias de um livro chamado O desmantelamento da subjetividade[18], escrito por uma psicanalista argentina, Silvia Bleichmar, e de outro, escrito por um filósofo e um sociólogo franceses, Pierre Dardot e François Laval, chamado Uma nova razão do mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal, publicado pela Boitempo em 2016.
Subjetividade e produção de subjetividade
Subjetividade e produção de subjetividade são conceitos inicialmente sociológicos. Produção de subjetividade diz do modo em que as sociedades constituem sujeitos plausíveis de integrar-se em sistemas que lhes outorgam lugar. Segundo Silvia Bleichmar, trata-se da produção instituinte, no sentido de Castoriadis, de um sujeito histórico, socialmente pertinente e necessário.
Ela esclarece que, quando se fala de subjetividade, em geral há diversos eixos que devemos considerar. Em primeiro lugar, aqueles que abarcam aspectos que podemos chamar de universais, próprios do sujeito psíquico: os enigmas das origens, a angústia de perda de amor e da perda de reconhecimento, o impulso à conservação biológica e à preservação identitária, a angústia de desamparo ou de Hilflosigkeit, de falta de auxílio por parte do outro.
Em segundo lugar, o que pode ser chamado de subjetividade em sentido estrito: o posicionamento do sujeito de cogitação (do sujeito pensante do cogito ergo sum), que implica em um pensamento reflexivo, em como o sujeito se posiciona diante de si mesmo e diante dos outros. Desde a psicanálise – diz Bleichmar – sabemos que este sujeito é atravessado pelo inconsciente, mas está articulado por uma lógica que permite a consciência de sua própria existência. Ela enfatiza que, em cada período histórico, esta relação entre o inconsciente e o eu está sujeita a mudanças. O eu se constitui a partir de uma matriz imaginária, mas tem uma dimensão instituída pela cultura própria.
É fundamental, neste recorte, a ênfase colocada no sentido de que o conceito de subjetividade não recobre totalmente o conceito de psiquismo, de aparelho psíquico. Este tem a ver com o conceito de inconsciente, com o para-subjetivo, o não reflexivo, o que é materialidade psíquica stricto sensu. A subjetividade implica categorias ordenadoras de tempo e espaço, que não se encontram no inconsciente. A produção de subjetividade é o lugar onde se articulam os enunciados sociais relativos ao eu. O aparelho psíquico implica certas regras que excedem a produção de subjetividade, por exemplo, o recalque.
Sabemos que o reconhecimento da existência de regiões inconscientes do psiquismo envolve resistências narcísicas contra algo que Freud definiu, em “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” de 1915, como uma afronta psicológica ao narcisismo do homem, significada pelo descobrimento do inconsciente. A consciência, tão valorizada pelo homem moderno, não recobre a totalidade de sua vida anímica – nem se encontra no centro da mesma, nem domina seu funcionamento. O homem não é senhor em sua própria casa, ignora muito do que acontece dentro dela.[19]
Mas não se trata somente de narcisismo, e sim de relações de poder que tendem a produzir certo tipo de subjetividade e a naturalizá-la.
O que se chama de produção de subjetividade é de ordem política e histórica. Tem a ver com o modo em que cada sociedade define aqueles critérios que possibilitam construir sujeitos capazes de se integrarem à sua cultura de pertinência. Há um projeto de produção de subjetividade em cada sociedade.
Passo agora para as ideias de Laval e Dardot, no Ensaio sobre a sociedade neoliberal, centrando no capítulo 9, “A fábrica do sujeito neoliberal”, mais precisamente no ponto em que se refere ao sujeito plural e a separação das esferas.
No começo da modernidade e durante muito tempo, o sujeito ocidental moderno era um sujeito plural, dado que pertencia a regimes normativos e políticos heterogêneos: a esfera dos costumes e da religião, a esfera da soberania política e a esfera mercantil das trocas. Esta foi sempre uma divisão movediça e implicava em um desafio para as relações de força e as estratégias políticas quanto a como estabelecer as fronteiras. Contudo, dentro de certos limites, respeitava o funcionamento heterogêneo do sujeito, assegurando a separação e a articulação das diferentes esferas da vida. Eu acho que isto pode ter aspectos que se ligam, também, com a divisão do trabalho e com a separação entre público e privado.
Estas sociedades que nasciam na modernidade foram atravessadas e tensionadas por dois movimentos paralelos e de alguma maneira disjuntivos: a democracia política e o capitalismo. O homem moderno precisou dividir-se em dois: o cidadão, dotado de direitos inalienáveis e o homem econômico, guiado por seus interesses; ou seja, como dizem Laval e Dardot, o homem como “fim” e o homem como “instrumento”. E eles dizem, com razão, que a história dessa modernidade consagrou um desequilíbrio a favor do segundo pólo: o desenvolvimento de uma lógica de relações humanas submetida à regra do lucro máximo.
Desde o ponto de vista da criação instituinte de subjetividade, a grande obra da sociedade industrial foi a fabricação do sujeito produtivo, capaz de inserir-se no grande circuito da produção e do consumo; esta foi levada a cabo através de um conjunto de práticas de treinamento e vigilância de corpos e mentes que começou pela invenção dos contratos. Foucault o denominou de dispositivo de eficácia. Este dispositivo permitia, entretanto, a existência do sujeito plural, sujeito assujeitado a diversos discursos: religioso, político, econômico, moral.
No século XIX surgem certas misturas, certas hibridações muito importantes. Nas relações econômicas começam a ser incluídas considerações “sociais”, direitos sociais e políticas sociais que passam a limitar – e a contrariar seriamente – a concepção estritamente contratualista das trocas sociais. Ou seja, a norma da eficácia econômica passa a ser limitada e contida por discursos sociais heterogêneos a ela. O momento de auge desta configuração será o Estado de Bem-Estar Social instaurado pela política keynesiana do Presidente Roosevelt, após a Grande Depressão dos anos 30. Podemos acrescentar que, segundo alguns historiadores, desde fins do século XIX surgiram, no continente europeu, posições de economistas conservadores e liberais com a finalidade de funcionar como uma alternativa contraposta aos ideais socialistas que cresciam entre os trabalhadores promovendo sua união e fortalecimento, e que acabaram aportando fundamentos para o Estado de Bem-Estar Social.
Já avançado o século XX, e como reação à crise dos anos 70, uma nova orientação tomou corpo em dispositivos e mecanismos econômicos que mudaram as “regras do jogo” entre os diferentes capitalismos nacionais, as diferentes classes sociais e o interior de cada uma delas. Os programas de M. Thatcher, na Inglaterra, e de R. Reagan, nos Estados Unidos, protagonistas centrais da grande virada, foram apresentados como resposta a uma situação “impossível de gerir” desde o ponto vista econômico, dada a diminuição da margem de lucro, o desemprego, a estagflação. Este resultado foi atribuído ao mau governo da economia – o chamado pacto social-democrata, que procurava estabelecer um manejo equilibrado entre os ganhos de produtividade, preços e salários.
As mais ressonantes medidas adotadas foram a privatização das empresas públicas e a desregulamentação da economia que deu liberdade de ação para os atores privados. Instaurou-se a concorrência geral como norma suprema universal de governo. Criou-se um sistema disciplinar mundial, expresso no Consenso de Washington, que estabelece regras de adaptação à globalização que os estados que querem conseguir empréstimos e auxílios das financeiras internacionais – vejam só quais: comprimir salários, reduzir gastos públicos, tirar direitos adquiridos de proteção social, enfraquecer mecanismos de solidariedade que escapam à lógica assistencial privada, condições fiscais e sociais mais favoráveis para atrair investimentos e valorizar o capital.
Retomando a análise iniciada em torno do sujeito plural e da separação das esferas nos começos da modernidade e da industrialização, o momento neoliberal aponta para uma homogeneização do discurso do homem tendo como eixo exclusivo a economia, girando em torno da figura da empresa. “Isto foi obra, em grande parte, de técnicas e dispositivos de disciplina, ou seja, de sistemas de coação, tanto econômicos, sociais e administrativos, cuja função era obrigar aos indivíduos a governarem a si mesmos sob a pressão da competição, segundo os princípios do cálculo maximizador e uma lógica de valorização do capital”[20].
A ideia de construir uma subjetividade neoliberal era clara e explícita. Há uma frase famosa de Margareth Thatcher em um discurso pré-eleitoral: “A economia é o método, mas o objetivo é a alma”.
Começa a ser fabricado um novo sujeito, não mais plural, mas unitário, que pode ser chamado de sujeito empresarial, empresário de si mesmo, sujeito neoliberal ou neo sujeito. Trata-se de produzir e governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que ele cumpra. A motivação, a vontade de realização pessoal, o projeto que o sujeito se propõe desenvolver, “enfim o desejo, com todos os nomes que se queira dar a ele, é o alvo do novo poder.” (idem, p. 327). É possível delimitar a existência de um novo dispositivo, o chamado dispositivo de desempenho-gozo, cujo objetivo é produzir o máximo rendimento unido ao máximo gozo.
Tanto desejo como gozo são conceitos que os autores do ensaio tomam da psicanálise. O conceito de gozo tem seu ponto de partida em Freud, mas é amplamente reelaborado por Lacan, sendo reconhecido como uma contribuição importante pela maior parte dos psicanalistas.
Este neo sujeito deve funcionar em regime de gozo de si, a partir de um mandato internalizado de ser ele mesmo. Trata-se de uma aspiração mítica a uma plenitude impossível, que a própria instituição empresarial – como todas as instituições – se ocupa de limitar, mas mantendo nesse caso uma denegação (sic)[21] que facilita a constituição de uma crença onipotente. As conquistas alcançadas por este empresário de si mesmo são apresentadas como uma decisão individual que não deve nada a ninguém. Ao sujeito lhe é exigido que as leve em frente, mas enquanto empresa de si mesmo, arcando com os riscos e as responsabilidades (pergunto-me quanto deste protagonismo heroico e desafiador não camufla e recusa o medo e a culpa causados pela insegurança no emprego e a ameaça de exclusão social a que o sistema submete todos os trabalhadores, como um dos fatores mais violentos e eficazes de sujeição).
Tendo-se convertido em um ser pleno e total, o eu se funde com o desejo e se funde com seu lócus de pertinência que é a empresa. Assume total responsabilidade pelo que faz e pelo que promete, se define como accountable, com alguém que se obriga a prestar contas e autoavaliar-se. Sua vida pessoal consiste em aquisições que permanentemente o tornam melhor, enriquecem seu potencial, seu capital humano.
A própria empresa, em si mesma, é capturada por lógicas de expansão infinita, por exemplo através de uma valorização infinita na Bolsa. O gozo de si ilimitado fica aliado ao ilimitado da acumulação mercantil.
O sentimento de si é dado no excesso, na rapidez, no ir sempre para além do limite, na sensação bruta de agitação que atropela o funcionamento psíquico elaborativo.
A patologia que disso resulta, em sua vertente frequentemente maníaca, adictiva e perversa, não é disfuncional. Integra-se ao sistema, eu acho, como se integravam as neuroses e as caracteropatias obsessivas ao contexto do sujeito produtivo da era industrial. Até que, por esgotamento depressivo, adictivo ou por colapso narcísico, aparecem os sintomas e transtornos que chamamos, desde que Julia Kristeva assim os batizou, de novas enfermidades da alma.
Neoliberalismo e democracia
Em um trabalho de 1973, “A crise de democracia”, produzido pela Comissão Tricontinental convocada por David Rockfeller, falava-se de uma ingovernabilidade das democracias ocidentais devida a um excessivo envolvimento dos governados na vida política e social. Queixavam-se de um excesso de democracia surgida nos anos 60, de um aumento de reivindicações igualitárias e de participação política ativa dos mais pobres e marginalizados. Concluía: “Há um limite desejável para a ampliação indefinida da democracia política.[22]Precisava-se de bons governos, não necessariamente democráticos; o ditador chileno Pinochet foi ungido por Margareth Thatcher como o pioneiro latino-americano da transformação econômica neoliberal.
O Estado, visto como instrumento encarregado de reformar e administrar a sociedade para colocá-la à serviço das empresas, deve ele mesmo curvar-se às regras de eficácia das empresas privadas. Essa mutação empresarial não visa apenas a aumentar a eficácia e a reduzir os custos da ação pública; ela subverte radicalmente os fundamentos modernos da democracia, isto é, o reconhecimento dos direitos sociais ligados ao status de cidadão.
Hoje em dia, concluem os autores, com a universalização da norma de concorrência para os agentes econômicos, o mercado, o Estado, as empresas e o indivíduos convertidos em sujeitos empresários de si mesmos, realiza-se uma extensão da racionalidade mercantil a todas as esferas da existência humana, fazendo da razão neoliberal uma razão-mundo. Esta extensão, que faz desaparecer a separação entre esfera privada e esfera pública, corrói os fundamentos da democracia liberal, levando-a ao esgotamento como norma política.
Toda reflexão sobre administração pública tende a passar pelo discurso técnico – o que a mídia incrementa entre nós ad nauseam – seja nos argumentos para sustentar o impeachment, a PEC do gasto público, a reforma da previdência social, a reforma trabalhista, em detrimento de toda consideração política e social. As categorias da gestão substituem os princípios simbólicos comuns que foram os fundamentos da cidadania, e que ficaram expressos no Brasil na Constituição de 1988, denominada Constituição Cidadã.
Piccolo finale incerto
Os acontecimentos internacionais dos últimos tempos, o Brexit e a eleição de Trump – na Inglaterra e nos Estados Unidos, os mesmos países da grande virada de Thatcher e Reagan – mostram que algo neste mundo neoliberal globalizado está falhando. Espalha-se um sentimento de crise. Não há no momento crescimento econômico, distribuição de riqueza, integração social. O modelo de negócios das grandes empresas, o modelo de acumulação e de reprodução do capital se mostra nocivo para o próprio sistema. O arrocho salarial afeta o consumo e estrangula o mercado. Isto explica o Brexit e a eleição de Trump por um eleitorado que se viu estagnado ou empobrecido pelo processo de globalização e que aposta agora no nacionalismo. Enfim, como diz Vladimir Safatle numa condensação criativa, o neoliberalismo tem se transformado em um Estado de Mal-Estar Social.
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[1] Aula inaugural de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, 2017. Originalmente publicado no boletim online 41, abril de 2017.
[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professor do Curso de Psicanálise, coordenador do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea e integrante da equipe editorial do boletim online.
[2] Leia a seguir: Fuks, M. P. “Psicopatologia psicanalítica, construção de subjetividade e neoliberalismo”, originalmente publicado no boletim online nº 41, abril 2017.
[3] Fuks, M. P. “Psicanálise, Saúde Mental e instituições: história de um projeto”, in A subjetividade nos grupos e instituições: constituição, mediação e mudança, Cristiane Curi Abud (org). Lisboa: Chiado, 2015.
[4] Ver Elias, P. E. “PAS: um perfil neoliberal de gestão de sistema público de saúde”, Estud. av. vol.13 no.35 São Paulo Jan./Apr. 1999. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141999000100013
[5] Kristeva, J. “A alma e a imagem” in As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
[6] Kristeva, J. “Para que servem os psicanalistas em tempo de desgraça que se ignora?” in As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
[7] Fuks, M. P. “Psicopatologia psicanalítica, construção de subjetividade e neoliberalismo”, Boletim Online nº 41, abril 2017.
[8] Dardot, P. e Laval, F. Uma nova razão do mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 237.
[9] Han. B.-C., Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017. Ver também, do mesmo autor Sociedade de Transparência, Petrópolis: Vozes, 2017 e Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.
[10] Ver Safatle, V. “Por uma crítica da economia política”, IDE, psicanálise e cultura, São Paulo, 2008, 31(46), 16-26.
[11] Ver Baumann, Z. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, Capítulo 3: “Um espectro ronda a terra da democracia: o homem (e a mulher) forte”.
[12] Costa, J. F. “Narcisismo em tempos sombrios” in Percursos na História da Psicanálise, vários autores, Rio de Janeiro: Taurus, 1988, pp. 151-174.
[13] Temas desenvolvidos na aula inaugural do curso em 2018.
[14] Galende, E: “Violência, psicosis y alienación – Nuestro malestar actual.” In Teoria y línica de las configuraciones vinculares. Buenos Aires: Paz Producciones, 1991.
[15] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor do Curso de Psicanálise, coordenador do curso Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea, supervisor do Projeto A/B e integrante da equipe editorial deste boletim online. Este artigo foi elaborado a partir da aula inaugural de 21/03/2017.
[16] Freud, S. O futuro de uma ilusão (1927).
[17] Rojas, M. C. e Sternbach, S. Entre dos siglos. Buenos Aires: Lugar Editorial, 1994, p.128 (Tradução livre).
[18] Bleichmar, S. El desmantelamento de la subjetividade: estalido del Yo. Buenos Aires: Topia, 2009.
[19] Freud, S. (1917 [1916] “Una dificultad del psicoanálisis”. Obras completas, vol. 17, Amorrortu, 1996.
[20] Dardot e Laval, op. cit., p. 358.
[21] Seria interessante conhecer a palavra usada no original em francês.
[22] Dardot e Laval, op. cit., pp. 194-195.