Algo que estava oculto veio à luz: Sobre o Unheimliche[1]
por Mario Pablo Fuks
O que provoca o sentimento do sinistro (Unheimliche[2])? Os processos automáticos que se ocultam por trás da familiar figura do inerte, como os bonecos ou autômatos de construção mecânica. E também aqueles que parecem revelar-se na familiar figura do vivo, ou melhor, do humano, tal como as explosões de epilepsia ou de loucura. Pessoa ou autômato? Essa é a dúvida que dura enquanto se mantém o suspense, e que tende a desaparecer se pudermos colocá-la no foco da atenção, iniciar um processo indagatório, estabelecer julgamentos a serem efetuados e chegar a uma conclusão que ponha fim à incerteza.
Também podemos formulá-lo assim: quando algo que estava oculto começa a vir à luz, dá-se início a um processo de elaboração que pode desenvolver-se produzindo diversos resultados ou bloquear-se produzindo efeitos de estagnação ou desequilíbrios perversos ou psicóticos. A vivência de estranheza, pela sua própria presença, funciona como um disparador do processo e como índice de seu movimento.
A respeito do esquema clássico, uma curiosa inversão de papéis perfila-se na configuração edípica infantil do protagonista de O homem de areia, de E. T. A. Hoffmann (1817). O pai seduziu a criança, atiçando-lhe a imaginação e o interesse pelas histórias maravilhosas, e a criança divertiu-se em manter acesa a brasa do cachimbo do pai, para que este não parasse…
É a mãe quem introduz o “homem de areia” como se quisesse parar a excitação, desligando o filho da vigília e induzindo-o ao sono. A criança conecta o homem de areia ao pai e quer saber mais: “Quem é esse estranho homem de areia que nos separa de meu pai?” Ali, a mãe o corta novamente: “O homem de areia não existe!” Ela não quer saber nem quer que a criança saiba. Não quer, porque a misteriosa paixão de seu marido, que também é paixão de saber (por algo se intui que seja um pacto faustiano), introduziu o estranho-ameaçador, vindo de fora, na intimidade do lar.
A criança transgride a “censura” imposta pela mãe, como diria Penot (1992). Algo pesaroso, que a deixa desconjuntada, lhe é revelado. Ela sai da experiência apassivada (é mais forte o ser descoberto que o descobrir), marcada pelo terrífico simulacro da castração visual e, também, por um mandato-profecia agourento: “Que o moleque conserve seus olhos e choramingue seus pesares pelo mundo”. A criança é mergulhada em um sono que parece de morte (Hoffmann, 1817).
Freud situou o complexo de castração como um dos fatores que, com maior força, vem ferir o narcisismo primitivo da criança. Postulou esse narcisismo como um sistema impulsionado, construído e sustentado pelo narcisismo dos próprios pais.
O ponto mais espinhoso do sistema narcisista, a imortalidade do eu, conquista seu baluarte refugiando-se na criança. Na história familiar de Natanael, este sistema será definitivamente abalado pela morte do pai em circunstâncias misteriosas que deixarão, apesar de seus muitos pontos obscuros, uma convicção compartilhada pela mãe e pelo filho com relação à culpabilidade do intruso, um juramento de vingança de cunho hamletiano por parte do filho e um pacto implícito de silêncio.
A incorporação de dois novos membros à família que “não sabem” da história – Clara e seu irmão Lotário – restabelece o sistema narcísico, congelando o processo de luto. Poderíamos dizer que os olhos cristalinos e vivazes de Clara serão um consolo – um bálsamo – para os olhos entristecidos e desvitalizados de Natanael e de sua mãe. Sob a condição de que aquilo que permaneceu oculto não venha à luz. A saída de Natanael para o mundo leva-o a confrontar uma experiência de repetição percebida como tal, sob a forma do fatídico personagem que representa o que, para Freud (1919), é um “duplo” do pai. Esse encontro reinstala o sinistro (Unheimliche). Um processo de indagação se inicia. Natanael envia uma carta a Lotário contando todos os fatos, mas, por um ato falho dele mesmo, o desejo de “fazer saber” faz chegar a carta às mãos de Clara.
Qual é a metapsicologia desses processos de “ocultar/vir à luz”? O recalcamento (Verdrängung), pedra angular da armação teórica, e o seu fracasso com o subsequente retorno do recalcado. Esse será o suporte da explicação ao longo do texto. Cabe perguntar, no entanto, como já o fizeram diversos autores, se o conceito de recalque é o que mais se enquadra nessa problemática.
No “Historial clínico do homem dos lobos,” publicado na mesma época, Freud (1918) teoriza a respeito do complexo processo de elaboração e admissão do conceito inconsciente do “pequeno separável do corpo”. Com relação a este paciente, parecido em mais de um aspecto ao personagem do conto (incidência do escópico, olhar fixo dos lobos do sonho, posição passivo-feminina em relação ao pai, pai depressivo que acaba suicidando-se etc.), ele conclui o seguinte:
“É notória a tomada de posição inicial de nosso paciente com relação à castração. Ele a rejeitou (verwirft) e se ateve ao ponto de vista da relação anal. Quando digo que a rejeitou, o sentido mais imediato da expressão é que não quis saber dela no sentido do recalque. Com isso, na verdade, não havia sido pronunciado julgamento nenhum, mas era como se ela não existisse” (p. 78)[3].
E continua:
“Essa atitude não pode ser definitiva. Há provas do reconhecimento posterior da castração, com uma persistência paralela e subjacente da corrente antiga que a rejeitava. A esse respeito o paciente relata um episódio de caráter alucinatório, acontecido aos cinco anos, no qual, brincando com um canivete, percebe com indizível terror que tinha cortado o dedo mindinho de sua mão” (p. 79).
Freud diz que isto dá o direito de supor que havia um processo de reconhecimento em andamento e que a alucinação talvez fosse um indício do mesmo.
Esse mecanismo de rejeição (Verwerfung), nitidamente diferenciado do recalcamento – que já tinha sido usado por Freud (1894), em “Neuropsicoses de defesa” – e que foi tomado por Lacan (1959) para construir o conceito de forclusão, desaparece posteriormente nas formulações, afirmando-se o conceito de recusa (Verleugnung) como mecanismo decisivo na produção de fenômenos de perversão e psicose.[4]
Vejamos agora com quais elementos teóricos Freud (1919) elabora a experiência de confronto com a morte, em torno da qual gira totalmente a segunda cena traumática infantil dessa história. A imortalidade constitui, desde o texto introdutório do narcisismo de 1914, o baluarte central do sistema narcisista. O ponto de partida, aqui, é o conceito de duplo desenvolvido por Otto Rank em 1912, a partir de estudos exaustivos de materiais literários, trabalhos etno-antropológicos e de mitologia antiga. Rank (1912) mostrou as ligações do duplo com a imagem especular, a sombra, os espíritos protetores e com a crença na alma. O duplo, diz Freud (1919), surge como o mais enérgico desmentido (Dementirung) do poder da morte.[5]
Essa duplicação do eu como defesa contra sua desaparição é semelhante ao que, nos sonhos, se manifesta como representação da castração pela duplicação ou multiplicação do símbolo genital (do qual o famoso sonho dos lobos é um exemplo muito claro). Está, entretanto, sujeita a uma evolução. Tanto na história dos povos primitivos como na vida anímica de cada criança, o significado do duplo muda de signo: começa sendo um seguro de sobrevivência, passando depois a ser o sinistro mensageiro da morte.
O conceito de recusa fica claramente estabelecido no texto de Freud (1927c) sobre o fetichismo. Nele, mostra-se de que maneira a constituição de um fetiche permite conservar a crença inconsciente no falo materno. O texto traz também casos nos quais o recusado era a morte do pai. Nas duas situações produz-se uma cisão da vida psíquica em duas correntes: uma que aceita a realidade da castração e da morte, ou seja, a diferença fálico/castrado e a diferença vivo/morto, e outra corrente ou parte da vida psíquica em que essas diferenças não existem. A ausência da corrente que está de acordo com a realidade abre a possibilidade da psicose.
Deixamos para o final desta enumeração a referência a um trabalho anterior de Freud (1913) que tem, porém, muito a ver com o que estamos considerando. No texto “O tema dos três escrínios”, ele aborda a questão da aceitação da morte através de um desenvolvimento que mostra uma dinâmica parecida à do duplo. Na evolução da mitologia grega, a criação das Moiras, deusas do destino, do inelutável e da morte, significou um avanço no reconhecimento de que, sendo parte da natureza, o homem também se achava submetido à lei imutável da morte. Mas ele se rebela, através da fantasia, contra o conhecimento encarnado nesse mito e cria outro, no qual a Deusa da Morte é substituída pela Deusa do Amor ou por figuras humanas equiparáveis. A mais bela e a melhor das mulheres, a mais cobiçada e mais digna de ser amada virá a ocupar esse lugar.
A escolha da mulher (esse é o tema no material mitológico ou literário) vem, dessa maneira, substituir a fatalidade. A morte, admitida no pensamento, é superada na fantasia. Trata-se de um triunfo da realização de desejos, o que não impede que “a mais bela e a melhor” conserve certos traços inquietantes.
Munidos destas referências conceituais, voltemos agora à história do conto. Há uma cena que me parece fundamental para nosso propósito. A sequência escolhida não contém nada de sobrenatural; o sinistro apresenta-se, para nós, pelo viés da loucura. Trata-se da volta para casa de Natanael, depois do incidente com o oculista italiano (Hoffmann, 1817, p. 31). É o primeiro reencontro com sua namorada, que já sabe, através da carta, dos fatos da história familiar. É um encontro terno e amoroso, mas não por isso menos tenso. Clara se reconhece chocada e comovida pelos acontecimentos referentes ao pai de Natanael, mas isso não a leva a perder a calma e a serenidade que a caracterizam. E ela lhe propõe considerar uma versão mais sensata, lúcida e realista dessa morte. Seguramente o pai, atiçado pelo desejo enganador de conquistar um saber, entregava-se a práticas alquímicas que o levaram progressivamente a negligenciar a família. Provavelmente, teria sido ele mesmo o responsável pela sua própria morte, ocorrida em um momento de descuido. Coppelius não deve ser culpado de nada e, se lhe aparece e lhe infunde temor, isso se deve apenas ao fato de que “não é mais do que um fantasma desdobrado de seu próprio eu” (Hoffmann, 1817, p. 29 e 36).
Natanael contrapõe a essa colocação um ideário místico e ocultista, defendido com veemência e paixão, sentindo a posição de Clara como fria e insensível a seus apaixonados argumentos. O confronto cresce entre eles, que começam a entediar-se e a distanciar-se. Aí, algo novo acontece.
Natanael tinha capacidade de escrever narrativas interessantes e divertidas. Encurralado pelos presságios, decide dar vazão a todos esses pensamentos sombrios num poema de estilo típico romântico, cheio de alegorias misturadas com a fúria dos elementos da natureza.[6] Nele, enfrenta todos os seus fantasmas. Nesse poema, Clara e ele, unidos pelo mais fiel dos amores, chegam até o altar, onde se interpõe a negra mão de Coppelius, arrancando os olhos dela, que vêm incrustar-se no peito de Natanael. Ele é jogado na vertigem de um círculo de fogo que não cessa de girar.
“Mas, em meio a esse bramido selvagem, ele ouve a voz de Clara dizendo-lhe: ‘Não consegue me enxergar? Coppelius enganou você, não eram meus olhos que ardiam em seu peito, e sim gotas ardentes de seu próprio sangue. Olhe para mim. Olhe para mim, meus olhos estão aqui!’ – Natanael pensa: ‘É Clara, e serei dela eternamente’. Então esse pensamento penetra com tamanha força na roda de fogo que ela para, e no negro abismo o estrondo dissipa-se num som cavo. Natanael olha nos olhos de Clara, mas é a morte que o fita gentilmente com os olhos dela” (p. 37).
E aí acaba o poema.
Quando ele o lê, assusta-se com essa voz, depois se acalma e o aprimora melhorando cada verso. Torna-o mais harmônico. Sente que é um bom poema. Pensa que o espírito frio de Clara vai inflamar-se, mas reconhece também que não entende muito por que precisa inflamar Clara, e ainda mais com imagens tão aterrorizantes. Ele o deixa de lado… Alguns dias passam sem problemas. Num certo momento, vendo-o tão alegre e vivaz, Clara lhe diz: “Só agora volto a ter você inteiro para mim, viu como expulsamos o horrível Coppelius?”. Apenas nesse momento ele lembra que tem o poema no bolso – e o lê. À medida que ele vai inflamando-se, ela começa a fitá-Io com olhos cada vez mais fixos.
“Finalmente, ao terminar, gemeu de profundo cansaço. Tomou a mão de Clara e suspirou, como se tivesse sucumbido a uma dor desconsolada: ‘Ah, Clara, Clara!’. Ela o apertou suavemente contra seus seios e disse baixinho, mas lenta e seriamente: ‘Natanael, meu Natanael! Atire ao fogo essa história absurda-disparatada-demente’. Natanael, indignado, levantou-se de um salto e gritou, empurrando Clara para longe de si: ‘Seu maldito autômato sem vida!’ E saiu correndo enquanto Clara, profundamente ferida, vertia amargas lágrimas: ‘Ah, ele nunca me amou, pois não me entende!’, soluçou.” (p. 37-38).
O drama se completa com a entrada em cena de Lotário que os leva a um enfrentamento furioso, um duelo com espadas que por muito pouco não acaba em morte.
Pobre Clara! Não deve ser nada fácil encarnar a noiva e a terapeuta ao mesmo tempo. Ouvimos isso muitas vezes. Mas toma-se mais difícil quando a transferência e o imprevisível percurso do processo elaborativo levam-na a ocupar um lugar tão marcado pelo sinistro. Pelo que nos consta, a única que pôde suportar ser um espectro para seu amado até o final da cura foi Zoe Bertgang, a Gradiva, e isto provavelmente porque se tratava também de um conto (Freud, 1907). Clara demorou a compreender que ali algo novo estava se produzindo, um empuxo sublimatório e criativo que dava curso à elaboração possível, tanto do desejo erótico e da angústia de castração quanto da experiência de confronto com a morte e a angústia de morte, ressignificando, assim, as situações traumáticas da sua história.[7]
A identificação com o inflamado de seu pai ficava “limitada” pelo apoio a um dos modelos identificatórios da época, constituído pela figura do poeta, romântico, lânguido, suspirante[8].
Mas Clara não o suporta. Ao fechar-se para a intenção e significação do poema, ela repete a atitude da mãe frente à fantasia da criança. Trata-se de uma atitude de “censura” como diz Penot (1992), e, ao incitá-Io a “jogar tudo isso no fogo”, lembra-nos o lugar cultural do fogo como instrumento de supressão, presente desde a Inquisição até Fahrenheit 451[9]. Mas não se trata só disso.
Será que ela não vê tudo o que pode ser o fogo para ele, o da brasa que ele mantinha acesa no cachimbo do pai, o da fornalha onde os olhos da criança seriam queimados, o da roda de fogo da qual a própria voz dela tinha conseguido arrancá-Io no poema… para vir agora a “jogá-Io de volta ao fogo”? Porque, ao tocá-lo como se fosse em um ponto “nevrálgico”, o novo equilíbrio narcísico alcançado se desmorona, o processamento simbólico se interrompe, e a recusa se reinstala.
Os olhos da morte, que no universo do conto estavam no plano da ficção, passam a situar-se no plano que, nesse mesmo universo, corresponde à realidade. Como? Através do ato de rejeição do maldito autômato sem vida que acaba de encostar em seu peito. Este é o efeito do sinistro que dispara o incerto das situações da loucura: quanto há de inconsciência e de intenção cruel no dito por ela? Quanto há de metáfora injuriante ou de alucinação no que ele transmite? Algo, no entanto, é certo. Trata-se dessa faceta da experiência do sinistro em que fica abolida a distinção entre fantasia e realidade e entre símbolo e simbolizado.
Essa perda da função simbólica, afetando o processamento de um enunciado metafórico, fica bem ilustrada, a meu ver, também no trabalho de Freud (1915) sobre “O inconsciente”, quando traz exemplos sobre transtornos da linguagem em estados iniciais da psicose. Ele toma como exemplo uma paciente de Tausk que conseguia proporcionar, ela mesma, a explicação de suas palavras. A paciente chega à consulta depois de ter brigado com seu noivo e exclama: “Os olhos não estão bem!” (interessante, de novo os olhos!) “Meus olhos não estão bem, estão tortos!” E acrescenta, depois de uma série de reprovações contra o noivo: “Nunca me compreende. Cada vez se mostra diferente. É um hipócrita que me entortou os olhos, fazendo com que eu veja de forma torta todas as coisas”. A palavra usada pela paciente é Augenverdreher, literalmente “entortador ou virador de olhos”, com o sentido figurado de enganador ou simulador. Freud (1915) explica isso como efeito da retração narcísica da libido, que carrega as representações dos órgãos do corpo com a totalidade da significação de um determinado conteúdo, dando à frase um caráter hipocondríaco.
No caso de Natanael, não é o corpo dele, mas o dela que vira um “maldito autômato sem vida”. Abolição da representação, como vimos, da Morte, a deusa no sentido mítico recuperado no poema que constituía uma “admissão”, uma elaboração simbólica do trauma da morte do pai. Ou, talvez, uma manutenção da representação com abolição do sentido, só que sempre ligada à imagem dela. Uma imagem que, no entanto, pode reverter-se em imagem dele mesmo, que foi desventurado e manipulado como um boneco sem vida na primeira das cenas traumáticas do conto. Corresponderia, enfim, a um fantasma organizado a partir da imagem especular.
Esse conceito de imagem especular aparece bem desenvolvido no trabalho de Rank (1912) sobre “O duplo”; está presente no conto de Hoffmann, explicitamente como “imagem do eu”; é retomado por Freud no texto Das Unheimliche, e é sabido que atingirá seu máximo valor metapsicológico e clínico quando Lacan (1949) o articula com todas as investigações sobre o desenvolvimento da percepção de si mesmo e do outro, por parte da criança, que estavam em curso na França. Ele mostrará, justamente, que o fantasma de castração não é mais do que uma variante, que se impõe posteriormente, do fantasma de “corpo cortado em pedaços”. Fantasma este que pode reaparecer toda vez que falha a sustentação narcísica do eu.
Os fenômenos de transitivismo, translocação de ideias, sentimentos etc., de uma pessoa a outra, permutação de pessoas e outros fenômenos do mesmo tipo, que Freud enumera neste trabalho, serão aprofundados por Lacan (1949) em relação ao outro especular a partir de estudos importantes de Wallon nesse sentido (Merleau-Ponty, 1990; Rosolato, 1983).
Por outro lado, não sei se Melanie Klein (1952) e seus seguidores conheceram esses trabalhos, mas todas as teorizações que giram em torno do conceito de identificação projetiva conseguem dar uma explicação bem coerente a esses fenômenos e têm grande eficácia clínica. A identificação projetiva está presente, por exemplo, no centro da interpretação que a autora realiza do romance de Julien Green, Se eu fosse você, que gira em torno, também, de um pacto com o demônio (Klein, 1955).
Prossigamos com nosso conto. A partir dessa briga entre Natanael e Clara segue-se, como vimos, uma explosão de agressividade entre ele e Lotário que por pouco não acaba em morte real. Enfim, uma repetição quase completa da cena familiar infantil com um ato final parecido. Todos se acalmam, mas concordam que a mãe não deve saber nada sobre o acontecido. No sistema de recusa familiar, Clara e a mãe intercambiaram seus papéis.
Gostaria de retomar esse momento final do encontro com Clara no qual, como dissemos, aparece o sinistro da eclosão da loucura. Esse desenlace da trama no final da cena que escolhemos nos remete a pensar no papel do outro real na eclosão da psicose. Consideremos, para isso, o caso Schreber (Freud, 1911), seguindo a análise que propõe Octave Mannoni (1978) para entender o papel de Flechsig.
Numa internação anterior, Schreber o tinha conhecido e admirado, estabelecendo, como diz Freud, uma transferência. Quando o consulta pela segunda vez, com uma queixa de insônia, a esperança íntima é de ser reconhecido em suas conquistas profissionais (Presidente do Senado etc.). Flechsig recebe-o, ouve sua queixa e inicia “um longo discurso de notável eloquência sobre os progressos da neurologia, prometendo-lhe a cura mediante soníferos novos e muito eficazes”. Nisto, diz Mannoni (1978), o discurso neurológico de Flechsig repete o discurso pedagógico de Gottlob Schreber, o pai do paciente. Ambos suprimem o outro como sujeito, sujeito de desejo. E esse é o âmago da repetição mortífera na psicose, como se o destino tivesse tramado o pior dos encontros.
Tampouco esteve aí ausente a frase infeliz. Parece que Flechsig diz a Schreber que com o auxílio desses remédios novos ele iria conseguir um sono tranquilo e “fecundo em sonhos”. Isto dito a um homem que ansiava por ter descendência, e cuja mulher abortava ano após ano. Ele tocou assim, tal como Clara no conto, no núcleo da estrutura narcísica do paciente. Schreber não só não conseguiu liberar-se da insônia, como entrou, tempos depois, naquele delírio tão fecundo em que uma alma-Flechsig o perseguia para destruir a sua.
Penso que é fundamental compreender que nesses vínculos a sombra do sinistro se apresenta pelo lado do outro, daquele que dá um ponto de apoio para o ego ideal do paciente, à sua imagem especular (Bleger, 1967; Cesarotto, 1987; Penot, 1992). Uma espécie de alegoria disso torna-se patente na explosão final da história de Natanael. Ele e Clara estavam na torre da Prefeitura, olhando para a paisagem, e nos é dito depois que entre as pessoas na frente do prédio se podia ver o advogado Coppelius que reapareceu surpreendentemente no relato. Freud dá a seguinte interpretação: “Temos direito a supor que a loucura estourou quando Natanael viu pelo binóculo que ele se aproximava.” Não obstante, o texto do conto diz o seguinte:
“Veja só aquele estranho pequeno arbusto cinzento, que até parece estar andando em nossa direção – observou Clara. Automaticamente, Natanael pôs a mão no bolso, encontrando o binóculo de Coppola e olhou para o lado: Clara estava na frente das lentes! Aí seus pulsos e suas veias palpitaram convulsivamente – lívido fitou Clara…” (p. 51).
Dissemos que nessas situações de repetição mortífera o destino parece tramar os piores encontros. Dito assim, dessa maneira, formula-se um enunciado com forma de sinistro, ao estilo de Natanael, o discurso do demoníaco. Penso, justamente, que a teoria da pulsão de morte que Freud (1920) está produzindo simultaneamente ao texto de Das Unheimliche, que será publicada no ano seguinte, combina, em seu tecido discursivo, enunciados ao estilo de Natanael com enunciados ao estilo de Clara, sendo isso, também, o que o faz tão impressionante.
Surge aqui uma pergunta possível. Seria imprescindível a hipótese da pulsão de morte para explicar a emergência da reação terapêutica negativa, quando poderia considerar-se como algo que surge entre os membros da dupla analítica, em função da estrutura do sistema narcísico que aí se constitui e que passa por fraturas, reformulações e estagnações? Porque ao analista também escapam coisas, inclusive, às vezes, frases infelizes que nos dão vontade de “morder a própria língua”. Mas ele “se toca”, podendo, inclusive, ao aceitar-se falhando, inserir uma abertura no processo.
O que está em jogo é uma disposição para situar-se frente ao que faz sentido, aos sentidos inesperados, aos contrassentidos, ao que não faz sentido e talvez nunca faça, mas, principalmente, frente à abolição de sentido. Não se trata de familiaridade com o sinistro – modo de recusa que lembra os fenômenos de tolerância social ou cultural identificáveis como “banalizações”. Trata-se de uma estranheza que põe em marcha um movimento de indagação a ser compartilhado com outros. E que, quanto mais o façamos, melhor.
Bleger, J. Simbiosis y ambiguedad. Buenos Aires: Paidós, 1967.
Cesarotto, O. No olho do Outro. In: Contos sinistros. São Paulo: Max Limonad, 1987
Freud, S. (1894) Las neuropsicosis de defensa. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1996. v. III.
________. (1907) EI delirio y Ios sueños en Ia “Gradiva” de W. Jensen. Op. cit., v. IX.
________. (1913) EI motivo de Ia elección deI cofre. Op. cit., v. XII.
________. (1915) Lo inconciente. Op. cit., v. XIV.
________. (1918) De la história de una neurosis infantil. Op. cit., v. XVII.
________. (1919) Lo ominoso (Das Unheimlich). Op. cit., v. XVII.
________. (1920) Más allá del principio del placer. Op. cit., v. XVIII.
________. (1927c) El fetichismo. Op. cit., v. XXI.
Hoffmann, E. T. A. (1817) O homem de areia. In: Contos sinistros. São Paulo: Max Limonad, 1987.
Klein, M. (1952) Desarrollos en psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1962.
________. (1955) Sobre Ia identificación. In: Nuevas direcciones en psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1965.
Lacan, J. (1949). EI estadio del espejo como formador de Ia función del yo tal como se nos revela en Ia experiencia psicoanalítica. In: Escritos. México: Siglo XXI, 1977.
________. (1959) De una cuestión preliminar a todo tratamiento possible de Ia psicosis. In: Escritos 2. México: Siglo XXI, 1978.
Mannoni, O. Presidente Schreber, Profesor Flechsig. In: Psicoanálisis de la psicosis. Carpeta de psicoanálisis 1. Buenos Aires: Letra Viva, 1978.
Merleau-Ponty, M. A experiência do outro. In: Merleau-Ponty na Sorbonne. 1949-1952. Campinas: Papirus, 1990.
Penot, B. Figuras da recusa: aquém do negativo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
Pichon-Rivière, E. Del psicoanálisis a la psicología social; v. 2. Buenos Aires: Galerna, 1971.
Rank, O. (1912) El doble. Buenos Aires: Orión, 1976.
Rosolato, G. EI narcisismo. In: Narcisismo. Buenos Aires: Ediciones del 80, 1983.
Zito-Lema, V. Conversaciones con Enrique Pichon-Rivière: sobre el arte y la locura. Buenos Aires: Timerman, 1976
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[1] Publicado originalmente no livro Freud: um ciclo de leituras, organizado por Silvia Leonor Alonso & Ana Maria Siqueira Leal (São Paulo: Escuta / Fapesp, 1997, pp. 205-217). Grande parte do elaborado em sua apresentação no 1º ciclo de debates do Curso de Psicanálise em 1995, intitulado Leituras de Freud, teve como origem o trabalho realizado com os alunos do 4º ano do Curso de Psicanálise e com a equipe do Curso Psicoses: concepções teóricas e estratégias institucionais.
[2] Mantenho, para traduzir Unheimliche, o termo “sinistro”, correspondente à palavra siniestro utilizada na tradução ao espanhol pela edição Amorrortu (Buenos Aires).
[3] A tradução deste trecho de Freud, bem como as demais que se seguem neste livro, foi feita livremente pelo autor a partir da edição em espanhol da Amorrortu.
[4] Este percurso teórico é desenvolvido de forma clara e detalhada em Figuras da recusa, de B. Penot (1992).
[5] A palavra aqui usada, Dementirung, foi traduzida para o espanhol como desmentida, e para o português, na Edição Standard Brasileira, como negação. Seu significado coincide teoricamente com o de Verleugnung, ao qual, pelo uso comum admitido hoje, corresponde o termo recusa.
[6] Semelhante, nesse aspecto, ao estilo dos poemas de Lautréamont (Pichon-Rivière, 1971).
[7] Ver as relações entre o “sinistro” e o processo criativo em Pichon-Rivière (1971) e em Zito-Lema (1976).
[8] Hoje e aqui, talvez ele chegasse a ela com uma canção com letra de Gabriel, o pensador, música dos Mamonas Assassinas e interpretação da banda Sepultura – nomes sombrios é que não faltam.
[9] Romance distópico publicado em 1953 por Ray Bradbury e filmado por François Truffaut em 1966.