Instituto Sedes Sapientiae

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Figuras do sofrimento psíquico contemporâneo no Brasil: entre a pandemia e o pandemônio[1] 

por Ana Lucia Panachão e Tatiana Inglez-Mazzarella

 

Boa tarde a todas e todos,

Gostaria, em meu nome e de Ana Lucia Panachão, e em nome de nossos colegas do Curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, agradecer o convite para participar dessa mesa hoje. É com alegria e entusiasmo que encaramos a oportunidade de conversar com os colegas latino-americanos.

As possibilidades de recorte para pensar as cartografias clínicas do sofrimento psíquico contemporâneo, em nosso país, podem ser inúmeras.

Escolhemos falar a partir do que estamos vivendo, no decorrer do momento pandêmico. Se por um lado sabemos da dificuldade de análise de situações em tempo presente, por outro, entendemos que há uma especificidade do que vivemos no Brasil. Tais circunstâncias têm sido bastante exigentes em termos da escuta clínica, uma vez que analistas e analisandos estão atravessados por um contexto de suma complexidade.

Situamo-nos diante de uma catástrofe sanitária aliada a sérias questões políticas e sociais, que causam consequências traumáticas, tanto em termos individuais quanto coletivos. Tomaremos o trauma, segundo as palavras de Fuks (2014, p.95):

“As situações traumáticas se caracterizam pela emergência de uma magnitude excessiva de angústia real, devido a acontecimentos que implicam uma ameaça para a vida da pessoa e uma fonte de enorme sofrimento psíquico. O efeito traumático é produzido pelo excedente de angústia não passível de simbolização e não representável por meio da palavra. Sendo transbordadas as defesas, uma angústia automática, catastrófica, avassala o eu, impondo um estado de estupor, paralisia, inermidade, desvalimento e desamparo. Impõe-se um padecimento impossível de suportar, incompreensível, impensável e indizível”.

Entendemos que, para além da catástrofe sanitária de ordem mundial, a pandemia atinge-nos em tempos de uma virulência de outra ordem: “O Sars-Cov 2 chegou no Brasil em um momento histórico de grande vulnerabilidade, no qual a política do ódio e do extermínio já vinham ganhando terreno frente a Eros e ao processo civilizatório, desde as eleições de 2018[2]“.

O discurso violento foi disseminado prioritariamente por meio das mídias sociais, usadas como principal ferramenta eleitoral multiplicadora de fake news. Essa prática continua sendo utilizada e nela predomina um tipo de comunicação que visa, justamente, desorganizar as referências. Os ditos e os desmentidos publicados cotidianamente são assim incorporados, causando efeitos de desorientação.

Segundo Drapeau (2019), há um plano em curso que segue a seguinte estratégia pensada por Steve Bannon[3]: “(…) uma articulação orquestrada para que a cada dois ou três dias, um ministro do governo, ou um membro do segundo escalão solte uma frase com imbecilidades planejadas e das mais absurdas”.

Uma verdadeira estratégia de marketing que se vale da grande mídia, da mídia progressista e de influenciadores digitais e, até, da oposição para fazerem o papel de impulsionadores dessas mensagens. Publicando-as e republicando-as nas redes sociais, produzem efeitos secundários: o de sustentar o discurso da extrema direita e o de desviar a atenção de questões importantes para o país, dos erros e da incompetência política do governo.

O discurso enlouquecedor produzido por falsas notícias foi incrementado por mentiras cuidadosamente arquitetadas pelos governantes, levando à criação de uma realidade paralela. Mentiras proferidas pelo presidente em alto e bom som, exaltaram a ineficácia das vacinas, a não necessidade do uso de máscaras e a promessa de medicamentos preventivos e curativos comprovadamente ineficazes, levando ao descuido em relação à transmissibilidade do vírus e à sua letalidade.  Somado a isso, assistimos ao desprezo pelo saber científico, pelas orientações da Organização Mundial da Saúde para conter o contágio, pelas vacinas e por aqueles que poderiam fornecê-las. Tal conduta obstruiu a possibilidade de respostas rápidas que poderiam ter minimizado os avanços da doença e evitado o aumento do número de mortes no país, que contabilizamos hoje, estarrecidos, em torno de 600 mil. Algo disso já estava presente nos anos anteriores à pandemia e nas atuais circunstâncias afirma-se como expressão máxima da necropolítica na qual estamos imersos. Ainda nesse contexto, os desacordos públicos entre o presidente, os governadores e os prefeitos, quanto às medidas de isolamento a serem adotadas, evidenciaram uma polarização entre os imperativos da vida e da economia.

Birman (2021, p. 130), apoiado nas ideias de Bateson, destaca os efeitos de cisão psíquica resultante de um sistema de comunicação caracterizado pela dupla mensagem das autoridades. Para ele, há: “(…) a produção sistemática de um estado psíquico de confusão mental. Não se sabia em quem acreditar nesse contexto comunicativo, uma vez que a incerteza psíquica era alimentada permanentemente pela simultaneidade e pela injunção da dupla mensagem pela mídia.”

A complexidade dessas variáveis e seus efeitos comparecem cotidianamente na clínica.

Camila trabalha em um serviço hospitalar e atende diretamente afetados pelo coronavírus em sua fase crítica. A constatação da insuficiência dos saberes advindos da formação e da prática médicas, para acompanhar e intervir evitando o agravamento de seus pacientes, a faz sofrer. Simultaneamente a confronta com a impotência diante da morte. Logo, começa a sentir-se muito ameaçada pela condução da crise sanitária. Fica enraivecida com as autoridades e com as pessoas que seguem negando a gravidade daquilo que ela vive -na pele- todos os dias na unidade de terapia intensiva. Fragilizada diante do descaso e do descuido que percebe, é tomada por uma grave crise de angústia frente à ameaça de que ela própria seja contaminada e morra. Sente-se extremamente desamparada e até invisibilizada com tamanho desprezo em relação à vida. De que vale o risco a que se expõe, se o entorno não vê valor nos cuidados e na preservação de sua própria vida?

O que o sofrimento de Camila revela de sua singularidade é próprio de todo processo analítico. Mas o que o sofrimento de Camila também nos revela do que estamos vivendo no Brasil?

“Levallois (2007) chama a atenção para o quanto a articulação história/História, quando considerada em um processo analítico, permite analisar o modo como a história coletiva foi absorvida e interiorizada, o modo como o sujeito se localiza em um espaço social” (Inglez-Mazzarella, 2021, p. 103). Não seria possível pensar nas análises individuais sem levar em conta o contexto atual no qual o sujeito, exposto à invasão traumática, sofre graves consequências psíquicas que podem levar do desamparo ao desalento.

Ao abordar o contexto da pandemia, Kupermann (2021) aponta para três tipos de negacionismo no cenário brasileiro: o ilusório, o hipócrita e o pragmático. Essa divisão nos ajuda a compreender o negacionismo como ato político e como defesa psíquica. Assim se manifesta desde a condução governamental frente à pandemia até suas manifestações em setores da sociedade civil e nas subjetividades. Sua proposta visa contribuir para uma cartografia do sofrimento com as especificidades do Brasil, dando especial destaque à desesperança e ao ceticismo.

O negacionismo ilusório responde como defesa psíquica frente a situações de vulnerabilidade e impotência e seduz boa parte da população angustiada frente aos riscos pandêmicos, “(…) o que confere a essa forma de negacionismo grande potencial ludibriador das massas assustadas e descrentes” (p. 150).

O negacionismo hipócrita, presente em uma parcela das classes privilegiadas, está assentado no narcisismo das pequenas diferenças. Ele se apoia numa invulnerabilidade seletiva devido às melhores condições de cuidado e proteção, o que lhe confere também algum grau de ilusão. Segundo o autor, é ele o responsável pelo falso problema: ou se salvam vidas ou se salva a economia.

O negacionismo pragmático, por sua vez, é localizado nas camadas econômicas mais vulneráveis como defesa frente à doença e à morte. Essas pessoas não tiveram alternativa a não ser trabalhar, fato que confirma a extrema desigualdade social brasileira e o pouco valor atribuído a essas vidas.

Apesar do descaso daqueles que deveriam proteger a população e do desmonte que o Sistema Único de Saúde (SUS) vem sofrendo nos últimos anos, os brasileiros responderam imediata e positivamente quando as vacinas foram disponibilizadas, demonstrando, assim, seu desejo de preservar a vida.

De que modo o negacionismo, enquanto ato político, afeta as subjetividades?

Entendemos que frente às ameaças de perigo real incrementadas pelas inconsequências do discurso negacionista, o mecanismo psíquico da recusa opera como forma de defesa no sujeito. A recusa mantém afastadas as representações que seriam contraditórias e, assim, interrompe o processamento antes que o conflito se instale; isto impede que se tire consequências daquilo que é percebido. Esse processo afeta diretamente a capacidade de simbolização com consequências para a formulação do pensamento.

Tyszler (2021) argumenta que a incerteza inibe a simbolização e a imaginação. Entendemos que esse fenômeno pode ser efeito da recusa. Se, por um lado, a recusa defende dos excessos desse discurso que deixa o sujeito imerso em desamparo extremo, por outro, custa-lhe a capacidade de pensar, de habilitar a angústia sinal e de acionar defesas eficazes.

A experiência traumática presente como pano de fundo na clínica e provocada pela eclosão da pandemia, manifesta-se singularmente em cada sujeito. Birman (2021) aponta para a exacerbação de formações sintomáticas nesse contexto. Dentre elas evidencia a neurose de angústia (síndrome do pânico) na qual a angústia real é o sinal manifesto do impacto traumático sobre o sujeito. Entregue ao desamparo originário, o sujeito experimenta a sensação de morte e dificuldades respiratórias que também estão presentes como um dos sintomas na infecção pelo vírus.  O temor da morte, ligado a variações de intensidades corporais, assume um caráter patológico levando o sujeito a fazer interpretações hipocondríacas sobre seu mal-estar.

Como efeito do confinamento, do isolamento social e da ausência dos processos de interação, o autor afirma que os sujeitos estão mais expostos a manifestações de depressão. Observa também, um aumento de ritualizações obsessivo-compulsivas ligadas às novas práticas de higiene, assim como um incremento de violência doméstica pensado como resposta contra a fragilidade e a impotência frente ao desamparo. Aponta ainda como destinos para o trauma a automedicação, a ingestão de álcool e de drogas e as compulsões alimentares.

A partir da clínica, observamos que a vida familiar e a conjugalidade foram afetadas. As brigas passaram a ganhar um lugar de destaque nas queixas relatadas.  A diminuição do investimento na vida erótica foi outra queixa que se tornou comum.

Birman (2021) destaca ainda como formação sintomática, o conjunto de efeitos psíquicos que o incremento das mortes pelo vírus provoca no sujeito, devido à impossibilidade de realização do trabalho de luto. Acompanhamos a presença de quadros com características melancólicas que vem chamando a atenção na clínica, inclusive dentre os muitos jovens. Os adolescentes, para quem a companhia dos pares é tão fundamental, estão sendo especialmente afetados pelo isolamento e pelos períodos de suspensão das aulas presenciais.

Gostaríamos de salientar outro aspecto: os efeitos do excesso de tempo ao qual as crianças estão expostas às telas. A hiper digitalização na infância tem agravado os quadros depressivos e contribuído para uma visível desorganização corporal e para dificuldades de sono e alimentação.

Quais poderiam ser as saídas para esse cenário desolador?

Sabemos que elas certamente vão muito além daquelas que podem ser propostas apenas pela psicanálise. Situações como a atual requerem ações nos campos jurídico, político, social, econômico, sanitário etc. para que tenhamos maiores chances de construir uma saída para o traumático. Contudo, visamos contribuir com essa ampla discussão a partir de nosso referencial de trabalho.

Diante do desalento, da confusão e do impedimento do pensar, a possibilidade de construir narrativas, aliada ao imprescindível trabalho de luto diante de tantas perdas, constituem-se como pontos de partida. Sublinhamos quão imprescindível é a grupalidade nos trabalhos de elaboração de situações traumáticas e de lutos coletivos. Vale ainda lembrar a importância da cultura, em suas várias dimensões, como elemento de simbolização para fazer frente a Thanatos.

De acordo com as belas palavras de Bezerra Júnior (2020, p. 95) “o fabuloso recurso de inventar recursos, é tudo com o que podemos contar para enfrentarmos os aspectos trágicos da vida”. Neste sentido, se assistimos, por um lado, a um esgarçamento do tecido social e psíquico que nos sustenta, assistimos, por outro, a criação de diversas iniciativas pautadas em gestos de solidariedade diante da grave crise que atravessamos. Muitos dispositivos têm sido criados no Brasil por psicanalistas e por outros profissionais da área de saúde mental que oferecem, de forma voluntária, acolhida e escuta para aqueles que buscam ajuda diante do sofrimento produzido pelo atual contexto.

No Instituto Sedes Sapientiae, uma iniciativa multidepartamental, envolvendo também funcionários da Clínica do Instituto criou o coletivo Escuta Sedes e seu dispositivo rodas de conversa. Esse coletivo iniciou seu trabalho em 2018, período no qual Jair Bolsonaro foi eleito e a intolerância atingiu de forma contundente o espaço público, os núcleos familiares, os grupos de amigos e as relações de trabalho.

As rodas de conversa se constituem como espaço aberto, gratuito, não partidário, no qual a palavra circula e as angústias advindas da situação política são acolhidas a partir de uma posição ética de respeito ao outro em sua singularidade. O grupo idealizador do projeto propõe não naturalizar o sofrimento como condição individual, buscando resgatar sua dimensão coletiva. A proposta consiste em favorecer a criação de novos laços e a abertura para emergência do contraditório e do conflitivo. O coletivo Escuta Sedes aposta num espaço grupal que, ao acolher o múltiplo e o diverso, contribui para restituir as condições de pensamento que vêm sendo tão atacadas.

O Escuta Sedes, bem como outras iniciativas, configura-se como tentativa de propiciar condições para o trabalho de Eros frente ao caos e à morte, motivo pelo qual temos prazer em partilhar nosso esperançar tal qual nos propõe Paulo Freire (1992):

… É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…”.  

 

BIBLIOGRAFIA:

BEZERRA JUNIOR, B. “O que a era do Covid-19 pode legar à psicanálise e aos psicanalistas”. In Percurso, Revista de Psicanálise. Ano XXXII.  junho de 2020. Número: 64, p.95-106.

BIRMAN, J. O trauma da pandemia do Coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

DRAPEAU, S. “A estratégia de Steve Bannon por trás das imbecilidades bolsonaristas”. https://vermelho.org.br, 2021. Disponível em  https://vermelho.org.br/2019/12/04/a-estrategia-de-steve-bannon-por-tras-das-imbecilidades-bolsonaristas/.  Acesso em 06/09/21.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

FUKS, M. “Trauma e Dessubjetivação” In Percurso, Revista de Psicanálise: Ano XXVI: junho de 2014.  Número 52, p. 95-102.

INGLEZ-MAZZARELLA, T. Histórias Recobridoras: quando o vivido não se transforma em experiência. São Paulo: Editora Blucher, 2021. 

KUPERMANN, D. “A catástrofe e seus destinos: os negacionismos e o efeito vivificante do ‘bom ar”’ In STAAL, A. & LEVINE, H. B. Psicanálise e vida covidiana: desamparo coletivo, experiência individual. São Paulo: Blucher, 2021.

TYSLER, J-J. “Para além do todo-traumático: a imaginação narrativa e as novas temporalidades da sessão In STAAL, A. & LEVINE, H. B. Psicanálise e vida covidiana: desamparo coletivo, experiência individual. São Paulo: Blucher, 2021.

 

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[1] Originalmente apresentado na mesa FLAPPSIP da Asociación Escuela Argentina de Psicoterapia para Graduados, de Buenos Aires em 2021.

[2] Inglez-Mazzarella, T. Comunicação oral.

[3] Estrategista das eleições de Donald Trump em 2016 e das eleições brasileiras em 2018, sendo cotado também para esta função nas eleições brasileiras de 2022.

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