Sem intermediações: paradoxos[1]
por Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes (Dodora)[2]
Foi entre os anos de 1986 e 1989 que a psicóloga mineira Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, a Dodora, cursou Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae. Membro de primeira hora do nascente Departamento de Psicanálise, Dodora assumiu a diretoria do Instituto Sedes Sapientiae por 4 mandatos, de 3 anos de duração cada um deles. Foi sempre diretora eleita pela comunidade, pelos períodos sequenciais de 2001 a 2003 e de 2004 a 2006 e, mais tarde, de 2016 a 2018 e de 2019 a 2021. Militante política desde o ensino secundarista, Dodora se tornou reconhecida por sua contribuição aos Direitos Humanos em nosso país, tendo sido agraciada com diversos prêmios e ocupado a Coordenadoria-Geral de Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em 2009 e 2010. Mestre em psicologia clínica e doutora em ciências sociais pela PUC-SP, teve seus trabalhos acadêmicos respectivamente publicados nos livros Pacto re-velado: psicanálise e clandestinidade política (Escuta, coleção Plethos, 1999) e Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano (Casa do Psicólogo, 2013). É ainda co-autora, com Maria José Femenias Vieira, de Estresse (Casa do Psicólogo, 2002) e co-organizadora, com Flavio Carvalho Ferraz, do livro Ditadura civil-militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer (Escuta: Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, 2016). Por sua trajetória intelectual e política, nossa calorosa homenagem.
Sem intermediações: paradoxos
Na vida psíquica, nada do que uma vez se formou pode perecer.
Freud, S., Mal-estar na cultura.
A principal sensação que me atravessou ao iniciar uma visita a um presídio feminino em Recife foi a sensação, que se instalou imediatamente como convicção, de que o último lugar onde uma presa pode estar protegida é a prisão onde cumpre a pena.
Sabemos todos que a prisão não tem como proposta proteger o preso, mas sim, proteger a sociedade. A exclusão social traz, na sua outra face, a inclusão do preso no grupo dos excluídos.
Imagina-se que esta convivência compulsória, estabelecida e regulada pelas leis próprias da execução penal, reeducará o preso/presa para o retorno, um dia, à comunidade dos homens e das mulheres livres.
Esta visita da qual participei, no mês de abril deste ano, na condição de Coordenadora-Geral de Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, me pôs frente a frente, e sem intermediações, com a materialidade das relações inclusão-exclusão, proteção-desamparo e com as impossíveis relações que uma presa mulher tem que enfrentar, na sua condição feminina e, muitas vezes, na sua condição de mãe.
Neste mesmo presídio iniciei a visita com um grupo de integrantes de instituições do governo local e da sociedade civil, representantes de combate à tortura, conversando com as presas que amamentavam e que sabiam que podiam fazê-lo até seus bebês completarem 6 meses de vida; depois os filhos são entregues à família ou a instituições. Uma jovem presa, de pouco mais do que 19 anos, me disse que não iria mais ver o filho, preferia assim, para que ele não retornasse e não guardasse, pequenininho, “na retina dos olhos”, segundo sua expressão, a visão da mãe presa. Perguntei: e o leite? O leite, “eles dão remédio para secar”. E o pai? O pai também é um preso, noutro estado do país, não iriam se ver, e nem mesmo ele iria saber que o filho nasceu.
Nesta área do presídio, que abriga as mães com bebês, havia cerca de 10 mães. Os berços estavam bem arrumados, com roupas de cama ainda com as dobras de loja, cortinados e ursinhos dentro da cama, quase um brinquedo para as mães. Depois que os bebês se vão, as camas permanecem arrumadas para os que vierem; as roupas são doações para a cadeia.
Fui em seguida ao pátio onde estavam as demais presas, num total de quase setecentas mulheres, algumas permaneceram dentro das celas abertas. A capacidade total do presídio é de até 180 abrigadas! O prédio, bastante antigo, foi um convento de freiras, cedido para se tornar o presídio feminino do estado de Pernambuco, nos anos 70, quando recebeu cerca de 30 presas políticas.
Nas pequeníssimas celas que visitei, havia 20 mulheres-presas em cada uma, que se espremiam entre 2 camas beliches totalizando quatro leitos, que são ao mesmo tempo seus armários, suas camas, seus esconderijos, protegidos com as cortinas de tecidos coloridos. Não consegui entender como se distribuíam à noite: três em cada leito, e as outras, no chão. Preferem não usar os colchonetes empilhados num canto, úmidos e cheios de estranhos insetos que entram e saem dos tecidos já sem cor. A pior situação é a das que ficam perto da parede do chamado “banheiro” – uma fossa de onde à noite sobem os insetos e outros bichos que circulam pelas celas em busca de alimento.
A fronteira entre os corpos, as vidas, os calores, os humores, completamente eclipsada. A sensação se materializava quando uma delas começava a falar e outra continuava, sem espaço na frase que se completava, sem pausas, querendo aproveitar ao máximo nossa presença: falavam de comida ruim e estragada, de banheiros entupidos, de insetos noturnos que passeiam sobre seus rostos e seus corpos embolados na mesma cama e no espaço do chão convertido em leito; falavam ininterruptamente sobre a higiene, os castigos, sobre incertezas em relação à progressão de suas penas.
Após a visita, conversamos com a direção do presídio, demos entrevistas à imprensa e articulamos outras ações que sempre decorrem destas visitas, para encaminhamento imediato.
Voltei para casa, menor, e com uma sensação de opacidade “na retina dos meus olhos”; um travo insólito, físico e psíquico, uma sensação de impotência frente à devassa do que se imagina como civilização e regulação das relações entre os humanos.
Não sei exatamente se a formação como psicanalista diminui ou aumenta a sensibilidade neste mergulho nos espaços onde o humano deixou seus piores vestígios, materializado na situação da prisão onde esta visita foi apenas uma experiência, entre outras que se repetiram. De qualquer forma, pensei que a prisão e as cadeias são uma reserva do que a civilização tem de pior, não pela história individual do preso que ali cumpre sua pena e tenta pagar a dívida que contraiu com a sociedade, mas pelas condições de cobrança desta dívida.
A psicóloga, a psicanalista, a cidadã, e nesta visita, a mulher, se misturaram em mim, e prevaleceu a dor do feminino encurralado e uma vontade de abraçar a cada uma das jovens mães, e das mulheres mais velhas, das que estavam revoltadas, das que falavam ao mesmo tempo, tentando aprisionar a reserva de esperança que aquela visita podia lhes trazer.
Esta é uma parte do trabalho que fui convidada a fazer dentro da Secretaria de Direitos Humanos que tem, no Ministro Paulo Vannuchi, o principal fiador das ações de defesa dos direitos humanos, levadas à frente por um determinado e incansável grupo de cidadãos e cidadãs que apostam que o Brasil pode avançar muito mais na busca de mudanças nesta área. Entendo minha participação nesta função como um fragmento, do tamanho e com as possibilidades de um fragmento: nem maior e nem menor, mas essencial, neste que é designado como o lugar onde o enfrentamento da violência e da tortura nas prisões e nos locais de privação de liberdade é o principal trabalho a ser realizado.
Brasília, 22 de agosto de 2010.
Para saber mais:
Acervo on line de escritos de Dodora Arantes em publicações do Departamento de Psicanálise:
O encontro das águas – Percurso 18, 1º semestre 1997
O tamanho do divã – Percurso 22, 1º semestre 1999
Vestígios que façam sonhar – Percurso 23, 2º semestre 1999
Flores brancas para Efigênia – Percurso 24, 1º semestre 2000
Um copo de H2O – Percurso 35, 2º semestre 2005
Raízes e interfaces – boletim online 03, dezembro de 2007
Pelo fim absoluto da tortura em qualquer circunstância – boletim online 06, outubro 2008
Crimes contra a humanidade: reflexões a partir de Nathalie Zaltzman – boletim online 11, novembro 2009
Configurações do racismo no Brasil são questões para a psicanálise? – boletim online 20, abril 2012
Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano – boletim online 21, junho 2012
Anistia 1979-2013: o que falta? – boletim online 26, setembro 2013
Ditadura civil-militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer? – boletim online 30, setembro 2014
Psicanalistas pela sustentação e apoio incondicional à democracia no Brasil – boletim online 38, junho 2016
Clandestinidade política: impasses. Meu nome é Ninguém! – site do Departamento de Psicanálise, entretantos 2, 2016
Recolhendo palavras (entretantos 2) – boletim online 40, novembro 2016
Transformar o sofrimento em força – boletim online 48, novembro 2018
Clandestinidade política: um ladrilho para incluir – boletim online 57, novembro 2020
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[1] Originalmente publicado no boletim online 14, de setembro de 2010.
[2] Maria Auxiliadora Almeida Cunha Arantes é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1985. Foi Coordenadora-Geral de Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, quando da publicação deste artigo. Foi diretora eleita do Instituto Sedes Sapientiae por 4 mandatos.