Uma experiência construída com os alunos do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea[1]
por Márcia de Mello Franco[2]
Em março deste ano, logo após a aula inaugural dada dia 10 por Mario Fuks, coordenador do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clinica Contemporânea, fomos surpreendidos pela atordoante notícia de que o Sedes fecharia devido à pandemia causada pelo Covid-19. Naquele momento, não tínhamos ideia do que viria pela frente. Duas semanas após o fechamento do Instituto, depois de muitas discussões e não sem hesitação, passamos a realizar as aulas de modo on line. Um argumento que pesou a favor de retomarmos nossas atividades desta forma foi a aposta que fizemos em torno da importância de sustentar espaços coletivos de troca e reflexão naquele momento tão ameaçador. A partir daí, o que se passou com os alunos dos dois anos de nosso curso foi uma nova surpresa, dessa vez uma boa surpresa. Mesmo desde suas janelinhas do Zoom, os alunos desses anos constituíram uma forte grupalidade e seguiram bastante participativos, implicados e ativos com relação aos estudos. De nossa parte, esforçamo-nos para cuidar do processamento dos conteúdos programáticos e também para realizar a transmissão da melhor forma possível através de um meio que ainda era muito desconhecido para nós.
Quando os seminários teóricos e as supervisões já fluíam no novo esquema, observamos que os alunos nos demandavam maior espaço de elaboração daquilo que todos vivíamos em função tanto da pandemia e suas consequências, quanto da grave crise política, econômica e ambiental. Uma pergunta insistia: “será que estamos todos loucos?” Sintonizados com essa demanda e comprometidos com a especificidade do curso, cuja proposta remete às articulações entre subjetividade e momento histórico, sentimo-nos convocados a abrir um espaço de conversa com os alunos sobre as questões que ainda hoje nos impactam. Na ocasião, perto de 120 mil mortos em virtude da pandemia já eram contabilizados. Além daqueles que perderam a vida ou entes queridos, muitos foram privados de sua renda e quem já vivia em situação de vulnerabilidade social teve sua situação muito agravada. Diante da assustadora crise que permanece nos ameaçando, não há reconhecimento por parte do poder público da gravidade da situação e, ao contrário, direitos que visavam garantir um mínimo de bem-estar social correm sério risco de serem eliminados. Em meio a esse cenário desolador, temos passado por uma experiência inédita. Há alguns meses seria impensável darmos um curso pelo Zoom, migrarmos nossa clínica para atendimento on line, ficarmos restritos, na medida do possível, às nossas casas. As referências de leitura da realidade vacilam, o desamparo e o desalento tomam a cena social.
Já trabalhávamos com os alunos do primeiro ano a questão do traumatismo de dimensões coletivas e, em 2020, introduzimos no segundo ano um espaço para a reflexão sobre a montagem de dispositivos clínicos pelo psicanalista para lidar com essa problemática. Resolvemos então inventar um dispositivo com um duplo objetivo de realizar uma intervenção, em que os alunos pudessem viver ali uma experiência, e favorecer a transmissão de alguns conteúdos. Convidamos os alunos para um encontro on line no horário das aulas, dia 1 de setembro, com a participação de todos os professores e dos alunos dos dois anos. Dividimos o encontro em dois blocos, cada um com a conversa sendo aberta após breves apresentações de três professores sobre temas concernentes ao atual momento. Nossa ideia era que os aportes dos professores tivessem alguma relação com os conteúdos de nosso programa e servissem como disparador para o debate. No primeiro bloco, depois de uma pequena introdução realizada por mim, falaram Mario Fuks, Tatiana Inglez-Mazzarella e Ana Lucia Panachão. No segundo bloco falaram Ana Maria Siqueira Leal, Roberta Kehdy e Marcelo Soares da Cruz. Usufruímos ainda um pouco de arte fechando o primeiro bloco com a leitura, feita por Tatiana, do poema Tecendo a manhã de João Cabral de Melo Neto e o segundo bloco ouvindo a música Paciência de Lenine.
Acreditamos que só a posteriori poderemos ter a dimensão do que vivemos hoje. Estamos ainda no meio do olho do furacão, muito próximos de uma vivência que requer distância para ser processada. Pensamos que uma situação como a que vivemos, pela sua intensidade, pela gravidade e pelo contexto pouco favorecedor em que ocorre, tende a produzir rombos na trama psíquica impedindo o pensamento. Ao propor esse encontro, não tínhamos (nem temos) teorias prontas para oferecer aos alunos, mas era possível, com nossas falas, fornecer alguns fios para que nós todos, coletivamente, pudéssemos construir um tecido para pensar sobre o que acontecia. Talvez seja essa afinal a principal contribuição dos psicanalistas neste momento: buscar condições para sustentar a possibilidade de pensar.
Ficamos contentes com o clima amistoso e colaborativo em que se desenvolveu um debate rico e permeado por diferentes afetos. Um bom sinal disso é que a primeira intervenção realizada por um aluno se deu a partir de uma associação com sua clínica, suscitada pela fala dos professores. Ao publicar aqui neste boletim os textos elaborados para esse encontro, esperamos poder compartilhar com vocês algo disso que buscamos construir. Tomara que nossas palavras também possam despertar novas palavras naqueles que as lerem pois, assim como “um galo sozinho não tece uma manhã”, necessitamos uma multiplicidade de vozes para construir uma linguagem que possibilite fazer frente ao potencial traumático da atual situação.
Pandemia e laço social
por Mario Pablo Fuks[3]
Apesar de que já o imaginávamos, hoje não cabe dúvida de que estamos imersos em tempos sombrios, tendo que penar por uma enorme quantidade de mortos, tendo que assistir a processos de destruição material e moral de grande parte do que foi construído em nossa história democrática, somado a fatores conjunturais como o próprio Corona vírus que não conhecíamos e o governo desastroso, negacionista, violento e fascista, que podíamos haver previsto mas não se quis ver. Muitos fecharam os olhos para essa realidade, a recusaram, e o elegeram presidente.[4]
É bom reencontrá-los. Desde a aula inaugural não vejo vocês. Estar “aqui” [na sala virtual do curso] me faz sentir feliz, sinto que é algo que pudemos e soubemos construir.
Quero falar sobre o laço social. É um conceito que foi-se constituindo para nós em importante articulador teórico para o estudo da subjetividade contemporânea, e dos elementos que tendem a estruturá-la. E fomos trabalhando algumas ideias nesse sentido.
Freud postulava que a subjetividade própria de sua época estava sustentada por um laço social que reunia três elementos: a ilusão religiosa, a lealdade política ao monarca e a proibição de pensar a sexualidade.[5] Este laço implica na produção de um Eu conflituado, o qual, impulsionado pela angústia, tende a se defender através da operação do recalque. Corresponde ao que é conhecido como o sujeito disciplinado, dos primeiros tempos da modernidade.[6]
Consideremos a hipótese de que, na contemporaneidade, tem emergido um tipo de laço social novo, caracterizado pela articulação entre a compulsão consumista – sujeito do consumo -, a fascinação imagética pela mídia – sujeito do espetáculo – e a ilusão de suprimir tecno-magicamente a dor e o sofrimento, através dos fármacos[7]. Hoje poderíamos denominá-lo, caricaturalmente, sujeito da cloroquina.
Esse laço é produtor, tendencialmente, de um Eu narcisista que, quando desestabilizado, põe em funcionamento mecanismos de defesa e compensação baseados já não no recalque, mas na cisão e na recusa. Quando estabilizado, corresponde ao sujeito de desempenho, e é chamado de sujeito neoliberal.[8][9]
Mas, nas situações de crise, é capaz de se instaurar uma cultura narcísica da violência e do ódio dirigido contra bodes expiatórios. Trata-se aqui de um sujeito narcisista e violento, tendencialmente paranoico. Esta cultura, que é uma anti-cultura, já existiu nas crises anteriores da era industrial, nos começos do século XX. O nosso presidente e sua base política, suas Saras Winters e seus milicianos, são exemplos de sujeitos desse tipo. Os milhares de neonazistas do movimento anti-máscaras alemão também. Não podemos deixar de incluir que temos, no Brasil, uma cultura da desigualdade, do racismo e da violência que vem da escravidão, frente à qual ganha expressão política crescente um movimento de resistência e de revolta.
Voltemos à pandemia. Para realizar adequadamente uma prevenção do crescente contágio massivo se requeria um reconhecimento do perigo, uma aceitação do conhecimento transmitido pela OMS, uma coordenação de iniciativas e recursos pelas instâncias sanitárias do Estado, uma disciplina coletiva dos cidadãos, confiante nessas instâncias e respeitosa da lei.
Para que possamos pensar que o que cada um faz afeta os outros, precisa-se que as instâncias do público, de governo e de coordenação se sustentem. Trata-se de um pacto de civilidade, que em certas circunstâncias se torna pacto civilizatório, como quando se promulgou a constituição de 1988. Não é algo tão utópico. Pode parecer assim na distopia em que nos encontramos, mas tem sido uma realidade recente nos países asiáticos (Coreia do Sul, China, Singapura). Não foi assim no começo da pandemia no ocidente, devido a prioridade neoliberal do econômico, e continua não sendo assim, hoje em dia no Brasil e nos EEUU[10]. Por negacionismo, por desincumbimento irresponsável, por essa deserção imoral e cínica que se manifestou no “…e daí?” de Jair Messias.
O que quero enfatizar é que a recusa da realidade, que vem se operando atualmente na subjetividade individual e coletiva, é tanto de origem estrutural, baseada na lógica neoliberal que trazemos desde os 80, como de origem conjuntural, associada à ascensão dos governos de ultra direita e fascistas, sendo induzida (por exemplo, através do medo) pela cultura narcísica da violência que eles impõem. O resultado da soma de ambos, além da catástrofe sanitária, é um empobrecimento crescente da subjetividade individual e coletiva.
Walter Benjamin havia diagnosticado com precisão essa pobreza da experiência da época moderna, e situava as causas na 1ª Guerra Mundial, de cujos campos de batalha
“as pessoas regressavam emudecidas… não mais ricas e sim mais pobres em experiências compartilháveis… Porque jamais há havido experiências tão desmentidas como as estratégicas pela guerra de trincheiras, as econômicas pela inflação, as corporais pela fome, as morais pelo tirano. Uma geração que havia ido à escola em bondes puxados por cavalos, estava de pé sob o céu numa paisagem na qual somente as nuvens continuavam sendo iguais e em cujo centro, num campo de forças de correntes destrutivas e explosões, estava o frágil e minúsculo corpo humano” (Benjamin apud Agamben, 2007, p. 20). [sublinhado nosso]
Entretanto, e em sentido contrário, como resistência e contra-efetuação, emergem experiências e processos que recriam o coletivo, e inventam novas formas de convívio e auto-organização. Estas experiências podem ser desencadeadas por vivências de desamparo compartilhadas que suscitam reações de solidariedade e investimentos libidinais recíprocos. Apoiam-se frequentemente em movimentos identitários. Elas contribuem na criação do comum, configurando um laço social criativo baseado em iniciativas de cooperação solidária e na sua capacidade de driblar a captura pelo individualismo e a rivalidade concorrencial promovidos permanentemente pelo modelo neoliberal. Unidos libidinalmente é possível lutar juntos contra o perigo, é possível esperar juntos apesar do isolamento, quando percebemos que esperar é saber. Unidos libidinalmente, através do trabalho do pensamento, da arte, da criação cultural em geral e da mobilização política, poderemos enfrentar com sucesso a cultura do ódio que procura dominar-nos e empobrecer-nos.
Palavras e gestos, linha e agulha
por Tatiana Inglez-Mazzarella[11]
O que podemos pensar e do que podemos falar, sobre o que nos atravessa e a essa altura já contabiliza 117 mil mortos em nosso país? No momento boa parte de nós encontra-se cansada, tentando dar conta de um estado de desamparo e de desalento provocado por uma insegurança potencializada por um inimigo comum e invisível, mas não criada exclusivamente por ele: o SARS-Cov 2. Estamos em meio a uma situação para a qual os protetores psíquicos encontram-se confrontados por uma situação excessiva, intensa, que pode ultrapassar nossa capacidade representacional diante de sua imprevisibilidade e de seu potencial desorganizador.
O Brasil parecia estar em “certa vantagem” ao ser atingido um tempo depois de países que viveram situações muito difíceis e a partir delas deixaram lições, frutos da árdua experiência. De alguns desses países nos chegavam imagens siderantes de situações extremadas: UTIs lotadas, profissionais de saúde exauridos, assim como muitos mortos. Mas o Sars-Cov 2 nos atinge em um momento histórico de grande vulnerabilidade em nosso país, um momento no qual a política do ódio e do extermínio já vinham ganhando terreno frente a Eros e ao processo civilizatório.
“Assistíamos pasmos a manifestações de ódio e a promessas de eliminação de oponentes, tomados como inimigos por parte do então candidato à presidência, hoje presidente, sem que qualquer medida de interdito capaz de barrar a pulsionalidade destrutiva tenha se efetivado. E pior, as vociferações ganharam cada vez mais terreno, vindo a autorizar a colocação em ato, por cidadãos comuns na busca pela afirmação do ser, desta política de eliminação. Em vez de pensamento, já tínhamos vociferações, recusa e passagens ao ato”[12].
É nesse contexto que chega a pandemia. Se as comunidades científica e médica sanitária deram os alertas de perigo, uma outra voz contrária bradava uma minimização dos riscos e a afirmação de que a verdadeira ameaça de morte vinha não do vírus, mas como resultado dos efeitos econômicos que seriam gerados pelas ações de proteção à vida indicadas. A partir daí, fomos lançados a dois discursos paralelos sobre os riscos e a morte. O reconhecimento dos riscos à vida e a respectiva discussão de medidas de proteção do lado da ciência, e a banalização do reconhecimento dos riscos, por parte do governo federal, passaram a conviver. Do último, a mesma lógica de um discurso cínico, já instalado anteriormente, que transforma as mortes numa pandemia em um efeito natural da vida.
Um discurso pautado na recusa. Na recusa, “como ressalta Penot (1992), há uma indecisão no sentido da representação, ou seja, uma suspensão do julgamento. Ao abolir o sentido, a recusa diferencia-se do recalcamento, já que o recalcado é aquilo que, justamente, ao manter uma ligação com um sentido inadmissível para a consciência, precisa ser apartado. A recusa, como nos propõe Figueiredo (2008), não permite que aquilo que foi percebido e armazenado leve o sujeito a uma tomada de decisão, a um posicionamento. […] O que não ocorre, o que está impedido é uma inferência advinda do que foi percebido. Neste sentido, preserva-se uma posição subjetiva fixa, inalterável que desmente o percebido”[13].
Nesse cenário, estamos numa condição muito desfavorável para o acionamento da angústia sinal, aquela que protege o psiquismo ao prepará-lo para o enfrentamento de uma situação de perigo. Assistimos então a uma condição de estados de angústia devastadores frente a uma situação traumatizante. O sujeito fica lançado a um funcionamento psíquico que aponta na direção da angústia automática e da dor psíquica. Dessa situação decorre um transbordamento pulsional, o que leva o sujeito a um estado de desamparo e vulnerabilidade colocando-o numa situação de total passividade, à mercê das intensidades e sem recursos para enfrentar o vivido. Se na angústia sinal há a presença de uma libido que pode ser ligada, na angústia automática a libido desligada deixa o sujeito numa ameaça de aniquilamento que pode ser articulada com o conceito de pulsão de morte.
Diante de um excesso de realidade da morte e desprotegidos por um tempo atravessado por intensas doses de recusa, nos encontramos na urgente e necessária tarefa de narrar o que nos passa, de nos lançarmos coletivamente em esforços de figurabilidade, de tentarmos proteger, o melhor que conseguirmos, nossos recursos de pensamento e nossa capacidade de afetação. Ao nos colocarmos nessa empreitada, mesmo que seja a partir de fiapos, seguiremos resistindo a uma entrega passiva e dessubjetivante frente a uma realidade excessiva e, portanto, traumática. Palavras e gestos como linha e agulha tentando cerzir ali onde a cisão e a violência ganham terreno frente ao conflito e a civilização.
Tecendo a manhã
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Publicado no livro A educação pela pedra (1966). In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira).
O sonhar como tentativa de elaboração psíquica frente à invasão traumática desencadeada pela pandemia
por Ana Lúcia Panachão[14]
Desde o início da pandemia, observamos na clínica um aumento de relatos de sonhos trazidos pelos pacientes que, por sua vez, também comentam lembrarem-se mais de seus sonhos. Muitas angústias se exacerbaram com a eclosão da crise mundial provocada pelo corona vírus, que trouxe consigo o risco de contaminação e a proximidade constante da ameaça de morte, obrigando os sujeitos ao isolamento social e às suas consequências nefastas. O encontro com esse inusitado, para o qual possuímos referências escassas, tem nos exigido maior trabalho do aparelho psíquico. Sonhar mais ou lembrar mais dos sonhos são índices do excesso a ser processado a partir do que está sendo vivido.
No texto A interpretação dos sonhos, Freud apresenta um modelo de funcionamento psíquico original capaz de dar conta, num primeiro momento, dos sonhos e em seguida dos processos psíquicos em geral. Um modelo de aparelho de sonhar, memorizar, fantasiar, pensar, falar, enfim, de simbolizar. Aparelho psíquico cujo trabalho é capturar e distribuir as excitações provindas de estímulos internos e externos ao aparelho, possibilitando a diminuição da tensão geradora de desprazer.
Os sonhos são realizações de desejos, que pelas leis de deslocamento e condensação próprias ao funcionamento inconsciente e sob o regime do processo primário correspondente à livre circulação da energia psíquica sobre a cadeia de representações, buscam reproduzir a experiência de satisfação regida pelo princípio de prazer. O sonho é a via régia de acesso ao inconsciente, constituído pelas inscrições de traços mnêmicos, derivados das experiências de satisfação que repousam na prematuridade que caracteriza a espécie humana e sua condição de desamparo original. A sobrevivência física e psíquica do bebê depende da presença, acolhimento e cuidados de um outro humano. Reconhecemos aqui o ponto central e o papel crucial da alteridade na constituição do sujeito, que o introduz na ordem simbólica. Sonhar é um trabalho psíquico simbolizante, mesmo quando os sonhos se apresentam como pesadelos ou em sua repetição traumática. É um dos modos pelo qual o aparelho psíquico, organizado segundo suas inscrições e representações, busca saídas para lidar com a ansiedade, medos, desejos, ameaças e registros das experiências cotidianas.
O sono exerce uma ação benéfica sobre as atividades mentais e sonhar é uma forma pela qual o sono propicia benefícios. O sono funciona como um afastamento – um intervalo temporal – uma retração necessária do interesse no mundo externo. O sonho é guardião do sono à medida que enlaça as excitações que poderiam perturbar o sujeito que dorme, numa cadeia de representações psíquicas. É necessário dormir para poder sonhar. A relação sono-sonho é fundamental para o psiquismo e tem função de elaboração simbólica e de regeneração narcísica.
O trabalho do sonho pode falhar em sua importante função elaborativa, como acontece no pesadelo, que implica num fracasso parcial da função onírica. Ainda assim, o pesadelo pode ser reconhecido no seu sentido psicopatológico positivo, como tentativa de elaboração de um conflito e como experiência angustiante ou dolorosa que pode ser relatada e escutada, produzindo novas significações. É um sonho angustiado com imagens assustadoras, mas que podem ser retomadas na vida de vigília dentro do campo representacional.
Os sonhos traumáticos também atestam o fracasso da função onírica, o que levou Freud a reconsiderar a afirmação feita em sua primeira teoria do aparelho psíquico, de que os sonhos seriam sempre realização de desejos. Frente à compulsão à repetição do desprazer, ele observa um funcionamento psíquico para além do princípio de prazer, que o leva a formular o conceito de pulsão de morte. O sonho traumático falha pelo fracasso em transformar os traços mnêmicos, em sua realidade traumática, num desejo realizado. Em situações extremas de traumatismos violentos, a realização alucinatória do desejo é preterida por uma função primitiva do psiquismo que busca, através dos processos de ligação, dar vazão ao excesso de excitação intolerável, não processável pelo psiquismo. Apesar do fracasso dos processos de simbolização, é importante salientar que, ainda assim, o sonho traumático detém um potencial simbolizante, mesmo que evidencie a falha básica do princípio de prazer.
Embora o sonhar seja um trabalho singular para cada sujeito sonhador, os sonhos também apresentam elementos comuns captados do entorno social, político e econômico, e podem ser lidos a partir dessa dimensão coletiva do contexto atual. As pessoas estão muito angustiadas não somente com a ameaça real de adoecimento pelo vírus, pelo medo de morrer, mas também pela falta de perspectivas e referências para o enfrentamento da crise que causam um efeito de desorganização psíquica. Situações de perseguição, medo e fuga de perigos difusos, isolamento e imagens de desabamento comparecem frequentemente nas narrativas oníricas, principalmente nos relatos de sonhos de angústia.
Não havendo instâncias políticas confiáveis que antecipem ou atendam rapidamente às necessidades que se apresentaram e na falta de um discurso simbólico capaz de acolher as tensões geradas pela ameaça à sobrevivência, estamos sujeitos ao desamparo.
Umas das respostas possíveis para evitar cair no desalento diante dessa situação tão adversa é poder dormir e sonhar, recolher-se num intervalo de tempo regenerador para o psiquismo.
Outras saídas importantes para restituir os caminhos de representação simbólica na vida de vigília são os diversos grupos de trabalho, que funcionam como importantes redes de sustentação, que se constituíram em torno da enorme transformação que atingiu a todos.
Uma importante pesquisa sobre sonhos está sendo realizada em conjunto por universidades federais de todo o país: Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo. O projeto Sonhos em tempos de pandemia -sonhos confinados- interroga o que tem habitado os sonhos dos sujeitos nessa época e como a crise tem se refletido nos sonhos. Os pesquisadores já receberam cerca de mil relatos de sonhos que lançam luz sobre a realidade da qual provêm. As cenas dos sonhos são singulares, mas permitem uma leitura do que está sendo vivido no coletivo. Os sonhos recolhidos formam um tecido discursivo que pode ser tomado como testemunho de seu tempo.
Esse projeto foi inspirado no livro Sonhos do terceiro Reich, escrito por Charlotte Beradt, que entrevistou os alemães no período de 1933 a 1939. O livro aponta para a função coletiva dos sonhos, nos quais aparecem com mais clareza os pensamentos, impressões e percepções que não estão admitidos na vida de vigília. O inconsciente capta o que a consciência não consegue captar. No processo de sonhar, a censura está rebaixada, o sonho não pensa e não julga, o inconsciente funciona sob leis próprias de deslocamento e condensação, elaborando coisas que não daríamos conta de admitir com as ferramentas da consciência. Pelos relatos dos sonhos recolhidos, a autora inferiu que os alemães começaram a perceber o perigo muito antes de se darem conta dele conscientemente.
O paradoxo da democracia
por Ana Maria Siqueira Leal[15]
Nas pesquisas que elaborei para produzir esse texto, encontrei Mitsuo Tanaka, de 77 anos, ativista do maio de 68 no Japão – feminista, chamou seu movimento da “revolução sem sutiã”.
O maio de 68, marco da Revolução Contemporânea, surgiu na França e se espalhou por toda a Europa, Ásia e América.
Este movimento incendiou os países, com reivindicações de toda ordem, que iam da Greve Geral de trabalhadores à liberação dos costumes – lutas de rua com a polícia e assembleias por toda a parte.
Nos EUA, o flower power e a luta contra a Guerra do Vietnã trouxeram, em paralelo, os tanques e as bombas, despejadas contra a população civil.
Me surpreendi que Mitsuo Tanaka vá até hoje ao metrô de Tóquio, onde todos passam, como se ela não estivesse ali, carregando um cartaz escrito PAZ, e afirmando, em entrevista, que jamais vai desistir da sua luta!
As questões que me mobilizam neste pequeno texto são: Por que a democracia liberal e o liberalismo econômico não estão dando conta de responder ao desenvolvimento do capitalismo na atualidade?
Por que a direita vem tomando um espaço maior no mundo?
Onde estão os ideais de liberdade, paz e justiça social?
Que significado tem as eleições de Bolsonaro, Trump e outros por todo o planeta?
Não pretendo responder a todas estas questões – o que me exigiria um tratado – mas sim trazer aportes para uma possível conversa entre nós.
Aproximando-nos mais do contemporâneo e chegando a 2008, nos EUA, a crise das bolsas e nos investimentos imobiliários trouxe um baque para o país e para o mundo, ainda maior que a crise de 1929 – falta emprego e falta dinheiro.
Movimentos de rua se intensificam, com pautas abertas e reivindicações além das econômicas – pautas LGBTQ+, feministas e contra o racismo engrossam esses movimentos.
Isso tudo trouxe a volta do povo e do público para as ruas.
A partir de 2011, nova onda de protestos. Em 17 de setembro o movimento Occupy se mobilizou mundialmente. Dizia: “Somos 99%” e expressava oposição à desigualdade social e econômica e à falta de “democracia real”.
Palavras chaves como: desobediência civil; Occupy Wall Street; luta pela preservação do meio ambiente, estão presentes.
Em 2013 no Brasil, o movimento Passe Livre, iniciado nas grandes capitais, toma todo o Brasil – e apresenta reinvindicações amplas – cada qual com seu cartaz na mão!
O que o movimento Occupy tem a ver com os protestos no Brasil?
Suas reivindicações amplas.
Em Saint Paul, catedral de Londres, foram montadas barracas, como uma feira e ofereciam palavras de ordem, as mais variadas, contra a ordem estabelecida – confirmando a ideia de que o privado é político.
Hoje, com a pandemia, vivemos o agravamento de todas essas questões!
– Mais desigualdade social e desemprego.
– Injustiças e violências cada vez maiores.
– Milhões de pessoas estão abaixo da linha de pobreza.
– Tudo isso aliado a um déficit de democracia.
O acúmulo do capital, a dificuldade de distribuir riquezas e uma sociedade de consumo, apenas de olho no mercado, nos deixa órfãos e sem direção, principalmente em nosso país.
Encerro trazendo a declaração de José Saramago, na inauguração de sua exposição: A consistência dos sonhos, na Espanha:
Se toda gente boa, pudesse se unir… poderíamos fazer um novo projeto civilizatório, para enfrentar a barbárie do MUNDO!
No último momento, ao encerrar este texto, encontrei esta outra frase de Saramago, que acredito ter tudo a ver com o que vivemos neste momento:
O que as vitórias têm de mau, é que não são definitivas. O que as derrotas têm de bom é que também não são definitivas.
Setembro de 2020
Resiliência ou resistência?
por Marcelo Soares da Cruz[16]
Fala baseada no texto de Ana Berezin e Gilou García Reinoso, “Resiliência ou a seleção dos mais aptos”
Resiliência – ferramenta de conquistas adaptativas e eficazes – chamada de “criatividade” no jargão do marketing – engloba uma linha que começa na seleção de pessoal para empresas e termina no racismo, no classismo e nas exclusões de todos os tipos.
O termo vem da física e também é usado pela engenharia e arquitetura. Refere-se à qualidade de certos materiais em não alterar suas características mesmo após fortes impactos, sua capacidade de se reconstruírem sem que os impactos deixem rastros ou marcas.
Em analogia a essa terminologia da física, o termo é importado para os campos da Educação e da Saúde Mental, com a incursão de alguns psicanalistas que acreditam poder importá-lo sem consequências.
O ideal de resiliência parece ser funcionalidade e eficiência, dos sujeitos e principalmente do sistema.
Resiliência é efetivamente a capacidade que alguns sujeitos têm, mais do que outros, de acreditar no que o Poder dita, de cumprir e transmitir seus mandatos.
Resiliência relaciona-se à obediência.
Os “resilientes” seriam capazes de suportar melhor – sem deixar marcas neles – o ataque de condições adversas, em particular os traumas sofridos na infância ou contemporâneos à vida adulta.
Ingenuidade perversa – o sujeito se reconstrói, após um intervalo, de uma catástrofe ou violência destrutiva, tornando-se mais forte quem sofreu tal violência.
Que sujeito poderia se conceber imune a tudo o que lhe acontece? Que conceito de sujeito isso implicaria?
Eugenia – concepção do “mais forte”.
Corremos o risco de que a Saúde Mental, com a colaboração de psicanalistas desavisados, se torne cúmplice das novas formas de coerção (ameaça?) à subjetividade.
Não visa à transformação das condições de vida, de fato.
Como metodologia de intervenção no domínio da Saúde Mental, sustenta-se, embora negada, a consolidação de modos adaptativos ao excesso de sofrimento.
Declarar que se aprende depois do sofrimento é negar a dimensão destrutiva que o Poder impõe à subjetividade; a expropriação da experiência da dor e a negação do sofrimento desumanizador ameaçam a subjetividade.
É necessário analisar as condições objetivas e subjetivas, quando não oferecem ou permitem a elaboração do sofrimento e promovem sua negação – em um uso banalizado, acrítico e então abusivo do conceito e prática da resiliência.
Diante desse ideal de adaptação, que ignora o sujeito e a autorização para deprimir, o papel da psicanálise é o da resistência.
Pandemia: Desamparo, desalento e o trabalho do luto
por Roberta Kehdy[17]
Freud descortinou, em seus escritos, o conceito de desamparo ao qual a condição humana está sujeita. O bebê humano depende, ao nascimento, que um outro humano o apresente ao mundo e lhe apresente esse mundo, de preferência em pequenas doses, como bem salientou Winnicott[18]. Neste início, o bebê é um ser totalmente dependente e as dores psíquicas provêm dos encontros[19] – possíveis ou não – entre este e o adulto responsável pelo seu cuidado.
Em Sobre a transitoriedade, Freud apresenta o trabalho de luto diante das perdas, mas nos indica que muitas vezes este trabalho não é possível. Neste texto, considera que a impossibilidade de fruição da beleza seria uma revolta contra o luto e postula que a transitoriedade de uma experiência não implica em uma perda de valor da mesma. Escrito em plena vigência da 1ª Guerra, destaca que as muitas perdas que esta trouxe podem aumentar a ligação libidinal com o que restou.
Em Luto e melancolia, Freud reafirma a importância do trabalho do luto, apontando como a constituição do psiquismo humano implica em elaboração constante das perdas sofridas pelo Eu. Ele vai se deter em explorar este processo de luto e seus percalços, pois o desligamento da libido de seus objetos é penoso. Como fica a relação com o que se perdeu? Para alguns, implica uma renúncia permanente, como na melancolia; para outros, há a possibilidade de estabelecer novas ligações libidinais. Ele enfatiza a dimensão da passagem do tempo como fundamental neste processo. Fédida[20] retomará essa dimensão da temporalidade para pensar os quadros depressivos, salientando que o depressivo pede tempo. Alguns elementos presentes na contemporaneidade: aceleração do tempo proposta pela tecnologia, falta de lugar para a tristeza e para a morte fazem-nos situar a depressão como sintoma social de nossa época.
A partir destas considerações, gostaria de levantar algumas questões sobre a pandemia, seu impacto na relação dos sujeitos com a temporalidade e com o trabalho do luto e pensar a posição do psicanalista neste contexto.
A pandemia parece ter trazido à tona como a cultura contemporânea estava imersa numa ilusão, ao acreditar que a ciência pode dominar a natureza e dissipar a morte. O vírus é um inimigo invisível, sem vacina e como não conhecemos bem a doença e ainda não há protocolos seguros, somos remetidos à condição de desamparo do início da vida. A falta de horizonte temporal para o fim do isolamento parece trazer novas possibilidades de lidar com a passagem do tempo: para alguns, isto se transforma em enorme fonte de angústia e impossibilidade de ação. Para outros, redimensiona a perspectiva de construção de futuro, situando-a num intervalo pequeno, “viver um dia de cada vez”.
Joel Birman[21] faz uma distinção interessante entre desamparo e desalento, que considero importante para pensarmos a possibilidade do trabalho de luto diante do que estamos vivendo. No registro do desamparo, o sujeito acredita numa instância de apelo: o choro do bebê encontra um outro que o acolhe, cuida e significa. A partir deste encontro, é possível desenvolver o trabalho de luto. Na experiência de desalento, forma de subjetivação por excelência do melancólico, houve uma condição real de não cuidado e de ausência de reconhecimento que impede que o psiquismo realize o trabalho de luto e que podemos considerar da ordem do traumático. Este autor traz uma contribuição importante ao estender esta experiência para os indivíduos sem possibilidade de um reconhecimento social: judeus no holocausto, refugiados na atualidade, moradores de favelas no Brasil. Ele aponta que nestas situações há uma impossibilidade de valorização das marcas de origem, o que compromete a criação de uma perspectiva de futuro: o sujeito vive aprisionado num tempo presente que paralisa[22]. Aqui, no Brasil, a pandemia mostrou ao nível da caricatura nossa condição social de segregação e privilégios. O vírus não escolhe classe social, mas a proteção é totalmente desigual. Constatamos que o número de doentes e mortos é predominantemente das camadas mais pobres e negros, que não têm como fazer o isolamento necessário, seja pelas condições de moradia ou devido à impossibilidade de sobreviver sem trabalhar e não ter acesso ao trabalho remoto.
A partir das considerações de alguns autores da psicanálise contemporânea como Bleichmar[23] e Gondar[24], penso que quando nos deparamos com uma situação de desalento, que pode se intensificar num período de instabilidade como o que estamos vivendo com a pandemia e o pandemônio, a posição do psicanalista se aproxima da testemunha. Isto é, aquele que reconhece a dor do sujeito, mas também sua potencialidade e singularidade, apostando nos seus recursos. Assim, a função de testemunha do analista vai de par, em Ferenczi,[25] com sua concepção de repetição que, como vimos, não implica a reprodução do mesmo, mas faz advir o que nunca houve, o que jamais teve lugar. Como a mãe que antecipa o sujeito onde ainda não há. O psicanalista busca com o analisante, então, cocriar um espaço potencial, onde pode funcionar como suporte de uma figurabilidade que conferirá mobilidade às identificações, possibilitando a capacidade de antecipação – abertura de horizontes temporais e espaciais para as iniciativas de ação, linguagem e pensamento – que favorece a instalação ou resgate da dimensão da esperança.
Gostaria de encerrar salientando como a ética da psicanálise nos remete a um compromisso político de pensar as condições de subjetivação em meio a nossa desigualdade social e lembrando que:
“Sonho que se sonha só, é só um sonho
Sonho que se sonha junto é realidade”.[26]
Conatus e Covid-19: lições de um curso no Sedes Sapientiae[27]
por Helena Fontes [28]
A primeira aula aconteceu em 10/03/2020, como esperado, no auditório do Sedes Sapientiae e reuniu duas turmas do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, uma estava começando o 2º ano, outra, começava o 1º ano. Até aqui, as coisas seguiam o rumo projetado.
Uma semana depois, algo também esperado, porém muito indesejado, aconteceu: a contagem crescente de pacientes e mortos pela COVID-19 paralisou o andamento do curso. As inquietações rapidamente ocuparam o lugar das expectativas e o cronograma de aulas foi substituído por um grande ponto de interrogação.
Claro, não apenas o curso, mas os planos e a rotina de cada uma das pessoas que se reencontraram ou se conheceram no auditório do Sedes dias antes, foram bem afetados.
Dias depois, chegou a notícia de que seguiríamos o curso por meio de uma plataforma digital e a interrogação: será que continuamos? foi trocada por outra: será que isto vai dar certo?
Depois destes dois acontecimentos externos, veio a vez de um acontecimento interno: aula a aula fui sendo contagiada – não pelo coronavírus – mas pela receptividade do grupo à nova situação. Era um grupo formado por pessoas que eu desconhecia, mas que apoiaram a iniciativa do Sedes com entusiasmo e demostraram fortemente o desejo de seguirem juntas.
Além do mais, várias outras formas de convívio social estavam substituindo espaços reais e tridimensionais ocupados por corpos pelos espaços virtuais e planos ocupados por imagens. Por que não aproveitar o momento para experimentar esta outra maneira de estudar em grupo? De aprender novos conhecimentos e, simultaneamente, aprender novas dinâmicas de aprendizagem?
Aula a aula, a dúvida e a inquietação foram cedendo território para a confiança. Semana a semana, os rostos e/ou os nomes escritos em um quadrado preto, entravam em minha casa e, na tela do computador, formavam uma espécie de gibi eletrônico.
Mas as personagens foram saindo do gibi e – não sei precisar quando – elas ganharam veracidade; seus nomes e rostos deixaram de ser ficções. Elas se materializaram como pessoas e, vejam só: cada uma delas tinha muitas histórias para trocar com as outras! Tudo se passou como se um sonho de criança virasse realidade.
Bem, algumas coisas fazem falta, por exemplo, os cochichos ou bilhetinhos trocados com colegas, para mim, perdem sabor quando trocados no chat privado ou público. As conversas na chegada e no intervalo…
Muitas vezes, nos sentimos próximos da exaustão por estarmos obrigados a horas seguidas numa cadeira diante de uma tela, dia após dia. É a nova rotina com suas exigências e dificuldades.
Outras coisas irritam: as recorrentes quedas ou falhas de conexão roubam a força de minha paciência.
Nas horas de desânimo – que certamente também existem nas atividades presenciais – busco no deus tempo ajuda para resolver a situação. É preciso tempo para dominar os recursos tecnológicos, para acostumar-se a ver o próprio rosto na tela (às vezes não dá para ocultá-lo), para aquietar ansiedades, para descobrir como criar e manter novas amizades etc.
É aconselhável dar ao tempo, tempo para que as frustrações e as incompreensões que mudanças abruptas sempre trazem à tona sejam metamorfoseadas em esperanças e obras dignas da existência e dos esforços humanos.
Ao longo destes meses, as pessoas do grupo – agora uma verdadeira turma – foram se apresentando, revelando seus gostos musicais, cinema, artigos de opiniões, indicações de literatura…
E as lives! Sim as lives! Elas viraram um ponto de encontro e de socialização. Ah encontrei […] na live do Daniel Kupermann, […] na de Fernando Urribarri, […] na do Arnaldo Chuster e…
E houve, entre outras, uma noite especial trazida por professoras/es; nela refletimos sobre os efeitos da COVID-19, o momento sociopolítico e coisas assim. Aos poucos, os sentimentos de cada uma/um, ocuparam o espaço – não da tela – mas aquele que efetivamente reunia as duas turmas (1º e 2º anos) novamente.
Assim ajuntados, pudemos nos conhecer um pouco melhor. As turmas, os professores e o coordenador que se encontraram no auditório do Sedes em 10/03/2020 estavam novamente reunidos. O Zoom nos possibilitou um zum-zum-zum memorável, bem agradável e acolhedor.
Estou na turma do 1º ano e aproveitei para conhecer um pouco mais a turma do 2º ano. Me lembrei dos tempos em que, menina, sentia curiosidade de conhecer as/os alunas/os dos cursos mais adiantados – o que será que eles estão estudando etc. Senti que, de fato, formávamos turmas universitárias, preocupadas com o que está acontecendo, desenhando soluções possíveis e algumas utópicas.
Juntas/os lembramos que humanos, demasiadamente humanos, somos vulneráveis às vicissitudes e que, não raro, o controle de si e das circunstâncias escapa de nossas mãos.
Durante as reflexões desta noite sobre a COVID-19 e cia., recordamos que o medo da morte está sempre conosco e nos perguntamos: o que fazemos para enfrentá-lo? O que podemos fazer para atenuar a dor que vemos neste cenário caótico de pandemia e de quase horror na política?
O que podemos fazer para seguir em frente, apesar das nossas próprias insuficiências e limitações? Para não chorar antes de apagar as luzes para dormir?
Um dos artifícios mais usados por toda gente é viver um dia de cada vez: anestesiando a percepção da dor ou do fracasso; encobrindo a angústia com uma ingenuidade forçada ou em um processo de vitimização; criando sensações de vitória diante do simbólico “pequeno medo de morrer” que mascara o medo real da morte concreta.
De repente, Lenine “aparece” cantando Paciência e o sentimento de comunhão veio com a música; alguns “dançaram” em suas cadeiras. Foi bonito de ver e gostoso de participar.
Sai com a sensação de que estamos aproveitando bem a oportunidade criada pelo curso de nos conhecermos e estudarmos junta/os certas coisas que são importantes para aplicarmos na clínica e onde mais pudermos.
Como em outras vezes em minha vida, sinto-me aconchegada na visão que Spinoza tem da realidade: todas as coisas lutam para persistir em sua própria existência.
Este modo de compreender a existência sugerida pelo filósofo nos ajuda a enfrentar com criatividade, coragem e humanidade as consequências da pandemia que, ao que tudo indica – ainda estão longe de acabar.
O conceito espinosano de conatus – expresso acima – nos faz enxergar uma potência que atua no âmago de cada pessoa e que a capacita a lidar com infortúnios, entre eles, a inevitabilidade da morte – que a COVID-19 trouxe à tona.
Até agora, oito meses foram dados ao tempo; diversas transformações ocorreram dentro e fora de mim e, creio, de toda gente.
Afortunadamente, outros meses ainda virão e – sem abandonarmos o gibi acima –quero também reencontrar a todas/os nas salas de aula, na cantina, nos corredores e na biblioteca do Sedes.
Por obra do conatus, novas turmas sempre existirão e, nelas, as pessoas se abraçarão e abraçarão causas benfazejas – afinal, é para isso que as escolas servem.
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[1] Originalmente publicado no boletim online 56, outubro de 2020.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[4] Fuks, M. P. “Reich e a relação entre psicanálise e política”. Percurso 63, 2019.
[5] Freud, S. “El porvenir de uma ilusión” in: Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
[6] Fuks, M.P. “A sociedade do desempenho e as patologias do neoliberalismo”, Boletim Online 49, abril de 2019: https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=49&ordem=6.
[7] Fuks, M. P. Abertura do 2º Encontro Internacional dos Estados Gerais da Psicanálise, 2003.
[8] Fuks, M. P. “Psicopatologia, construção de subjetividade e neoliberalismo” Boletim Online 41, abril de 2017: https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=41&ordem=3&origem=ppag.
[9] Ver também Losicer, E. “Confinamentos, confinamentos, confinamentos” no número 56 do boletim online:
https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=56&ordem=4
[10] Ramonet, I. “La pandemia y el sistema-mundo”. Le monde diplomatique, abril 2020.
[11] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[12] Panachão, A.; Francisquetti, P. e Inglez-Mazzarella, T. “A Onda de Ódio nas Eleições de 2018 no Brasil”. Texto apresentado na FLAPPSIP.
[13] Idem
[14] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[15] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[16] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[17] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[18] Winnicott. D.W. O mundo em pequenas doses. In: A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
[19] Roussillon, R. O materno. In: Boletim Online do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae. Edição 53, abril de 2020.
[20] Fédida, P. Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia. São Paulo: Escuta, 2002.
[21] Birman, J. Mesa redonda do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro: “Exclusão, solidão, desesperança: excessos e vazios” transmitida on line em 22/8/2020.
[22] Knobloch,F. O tempo do traumático. Rio de Janeiro: Educ, 1988.
[23] Bleichmar, S. Psicoanálisis extramuros. Buenos Aires: Entreideas, 2010.
[24] Gondar, J.; Frichs Antonello, D. O analista como testemunha. Revista Psicologia USP, vol. 27, n. 1. São Paulo, jan/abr 2016:http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564D20150010
[25] Ferenczi, S. (1934). Reflexões sobre o trauma. Obras completas de Sándor Ferenczi, Psicanálise 4. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[26] Seixas, Raul. “Prelúdio”, 1974.
[27] Originalmente publicado no boletim online 57, novembro de 2020.
[28] Psicóloga e psicanalista, aluna do 1º ano do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea.