Carta à Myriam Uchitel
por Clarissa Motta[1], Érica Otsubo[2], Flávia Steuer[3], pelo grupo Faces do traumático
São Paulo, 29 de agosto de 2022
Cara Myriam,
“Quero começar, mas não sei por onde, onde será que o começo se esconde?
Será que o mundo começou em janeiro?
Será que o amor começou com um beijo?
Será que a noite começa no dia?
Será que a tristeza é o fim da alegria?
Será que o mar termina na areia,
Ou ali é o começo de uma vida inteira?
Taí o mistério que chegou até mim
Será que o mundo tem começo, meio e fim?”
Grupo Tiquequê
Frente à tela em branco, antes dos dedos romperem o silêncio com suas frenéticas batidas nas teclas do computador, os pensamentos vagueiam, brincam entre as memórias de tantos anos de história. Deixam-se levar e se afetar pelas intensidades vividas e agora rememoradas. Os lábios cantarolam a música Quero começar, do grupo Tiquequê, e, assim, iniciamos esta carta com um trecho da canção. É uma música infantil – nem por isso pouco profunda – que brinca com a curiosidade das crianças sobre a origem das coisas. Falar de nosso fim – será? – é voltar para o começo. Mas onde essa história começa?
Quando pensamos em escrever um texto sobre você, Myriam, pareceu a todos do grupo Faces do traumático uma ideia “fantástica”, “incrível”, “uma oportunidade que não poderíamos perder!” – se nos permite a brincadeira com suas expressões tão marcantes. Depois de meses nos separando, elaborando sua saída ainda em sua presença, aproveitando de sua energia e teimosia para concretizar o que já havia se comprometido a fazer antes de partir, foi hora de nos despedirmos. Apesar de termos iniciado 2022 sem você como coordenadora, ainda a tínhamos perto trabalhando arduamente para o evento Abuso sexual: um transtorno individual e social em nosso tempo, e também como supervisora da Clínica do trauma. Após o evento, pensamos rapidamente nos caminhos a serem seguidos e, na sequência, nos despedimos também de você como supervisora. E, então, o fim. Será?
Para a comunidade Sedes Sapientiae, o Faces do traumático começou oficialmente em 2014. Para nós, o grupo acabou e se refez em 2015 após a saída de participantes e entrada de novos. Com o início do projeto Clínica do trauma em 2018, passou de Grupo de estudos para Grupo de trabalho e pesquisa e, desde 2020, conta, ainda, com a frente Projeto social. Vale lembrar, Myriam, de sua insistência em pensar o grupo não como algo dado, que se iniciou e pronto, mas como um corpo vivo que morre e se refaz a cada encontro. Foram textos produzidos, discussões calorosas, eventos organizados, projetos. E como produzimos nesses quase 9 anos!
Em 2015, fomos a Altamira escutar os efeitos traumáticos e dessubjetivantes na população durante o processo de construção da usina de Belo Monte, o que resultou em relatórios-denúncias enviados para o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e CFP (Conselho Federal de Psicologia). No ano seguinte, participamos do entretantos – Psicanálise e política, com o texto: Trauma como interrupção e ética psicanalítica como enlace. Já em 2018, criamos a Clínica do trauma ligada à Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae com atendimentos individuais. Também desenvolvemos um trabalho com jovens do projeto Chef Aprendiz na periferia de São Paulo e buscamos a ferramenta Fotolinguagem e o dispositivo de grupo. Em 2020 veio a pandemia e não pudemos ficar inertes diante do cenário catastrófico e potencialmente traumático. Desenvolvemos vários projetos de atendimento grupal com públicos diferentes: estudantes e supervisores de uma faculdade de medicina, lideranças comunitárias de povoados ribeirinhos da Amazônia, equipe de uma ONG, profissionais da saúde de um hospital estadual. Compusemos um grupo de discussão clínica para psicólogos voluntários do projeto Rede de Apoio Psicológico, criado para o atendimento de profissionais da saúde na linha de frente no combate à COVID-19. Ainda na esteira da pandemia, em parceria com a Unifesp, atendemos familiares de enlutados nos modelos individual e grupal. Em 2021, iniciamos o Projeto Morada, em colaboração com a Defensoria Pública, encarando o desafio de escutar os familiares dos adolescentes mortos num baile funk em Paraisópolis após uma intervenção da Polícia Militar em 2019.
Nesse percurso, mergulhamos também em leituras de autores contemporâneos e sugerimos traduzir para o português dois livros que nos foram preciosos. Em 2019, fizemos o evento Testemunho e experiência traumática, em torno de nossos estudos relativos à publicação, no Brasil, do livro O trabalho da testemunha: testemunho e experiência traumática, de Mariana Wikinski (Annablume), no qual pudemos promover a reflexão sobre o trauma na intersecção com o campo sociopolítico, psicanalítico, jurídico e literário. Nosso segundo evento, derivado de nossos estudos de uma publicação, aconteceu em 2021, Abuso sexual: um transtorno individual e social em nosso tempo, com a participação de Susana Toporosi e seu valioso livro Em carne viva – abuso sexual de crianças e adolescentes (Blucher). Novamente tivemos convidados de diferentes áreas buscando fortalecer laços e pontes imprescindíveis para compreensão do trauma, dentre elas, a justiça restaurativa. Por último, mas não menos importante, nosso derradeiro projeto juntos com você, Myriam, é a publicação dos textos elaborados para o evento Testemunho e experiência traumática (2019), ainda em gestação.
Para toda essa produção foi necessário sustentar a organicidade do grupo, o que você regeu com maestria. Foi com você também que aprendemos a necessidade de cuidar dos fios que tecem a trama do Faces, enfrentando olhar para o que poderia, inclusive, romper nosso tear, mesmo que isso nos causasse incômodo ou dor, mas que, no fim, fortaleceria a todos. O grupo, assim, não teve um único começo e, apesar de ter flertado com isto algumas vezes, graças a tanto afeto e cuidado, está longe do fim.
Apesar de não ser possível falar de um início para o grupo, podemos pensar que a história do Faces se iniciou muito antes de 2014, quando você, Myriam, uma psicanalista uruguaia, brasileira de coração, desassossegada frente aos fenômenos da clínica, inconformada com uma formação psicanalítica centrada no recalque e na interpretação, resolveu fazer mestrado. Foi aí que você corajosamente iniciou seu trabalho na área da não representação, da compulsão à repetição, do inconsciente constituído por material não-recalcado, da técnica psicanalítica que exige olhar para Além dos limites da interpretação (Artesã). Ou seja, você mergulhou no campo do trauma.
Se é difícil definir onde essa história começa, mais difícil ainda é pensar em como ela termina. Se fazemos esse retorno ao começo e ao meio, é também para escapar da angústia do fim. Como lidar com a perda, com a finitude das coisas, com as incertezas do futuro?
No meio de 2021, receber a notícia de que você sairia do grupo foi impactante. A inesperada novidade provocou um choque (potencialmente traumático, pois sem a antecipação da angústia sinal!), tristeza e incertezas – o pesar da perda. Para muitos, ocorreram pensamentos como: “acabou o Faces? Justamente esse grupo tão rico, vivaz, exigente e também acolhedor, de pessoas queridas, de sentimento de pertença? Conseguiremos seguir sem você?”. E, mais uma vez, você estava lá, encorajando-nos a seguir, nos lembrando de nossa potência e força, que muitas vezes não fomos capazes de identificar. E, aos poucos, fomos nos rearranjando, acreditando no seguimento do grupo, reconhecendo a responsabilidade desse legado.
E o que dizer sobre esse legado? Podemos contar que a sua transmissão vai muito além de seu conhecimento em psicanálise e se encarna na convivência cotidiana, nos detalhes, nos impasses, nos confrontos, nas construções de coisas novas e desconhecidas. Você nos incentivou a ler criticamente os autores e a não nos deixarmos contentar com a falta de respostas para nossas perguntas. Pelo contrário, sempre nos incitou a construir nossas próprias. Defendeu que falsas dicotomias apenas enrijecem o pensar e a clínica. E que é preciso escutar tanto as vítimas quanto os algozes, complexificando nosso trabalho para não cairmos na individualização de problemas com diversas etiologias. Aprendemos a ouvir o trauma em nós, em nossa realidade social, em nossos pacientes. E que precisamos nos posicionar frente à barbárie, ocupar um lugar de psicanalista-cidadão pautado por uma ética-política frente ao sofrimento, que é tanto individual quanto coletivo. Constantemente nos lembrou que, se acreditamos termos algo a dizer, precisamos colocar nossa voz no mundo para sermos ouvidos e nos implicar como parte dos processos de transformação que desejamos. Ao escolhermos trabalhar com as diversas faces do trauma, aprendemos, ainda, que pouco conseguimos conquistar sozinhos, e que articulações e parcerias dentro de um campo interdisciplinar são necessárias.
Lembramos Freud que, apoiado na literatura, cita a fantástica frase de Goethe: “Aquilo que herdaste dos teus pais, conquista-o para fazer-te teu”. É esse nosso desafio. Nós do grupo Faces do traumático, conhecidos como “o pessoal do trauma”, sob sua firme e generosa coordenação, pudemos, ao longo de 9 anos, selecionar as sementes que seriam plantadas e cuidadas. Já colhemos muitos frutos em nosso percurso, inicialmente idealizado por você. Nossos caminhos, a partir de agora, seguem distintos, mas com a promessa e o desejo de se cruzarem, mesmo que pontualmente. E, assim, ao elaborarmos esse fim – que nos exigiu sair do susto e do traumático da perda, transformando a ameaça de abandono em separação –, recolhemos essa derradeira lição como mais um pedaço corajoso seu, e o integramos como parte de nós e da nossa história. Seguimos confiantes por saber que não há fim para o que vivemos juntos, pois não há fim para o que de você segue em nós e de nós em você. Seguiremos juntos, sempre!
Certos de que haveria mais a dizer, deixamos aqui um breve testemunho de nossa história, Myriam, e finalizamos com um muito obrigado!
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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo Faces do traumático.
[2] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo Faces do traumático.
[3] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, co-coordenadora com Camila Munhoz do grupo Faces do traumático.