Em que tempo estamos: como foi pensado o Curso Conflito e Sintoma[1]
por Ana Maria Sigal[2]
Não podemos negar que, apesar do intenso desejo de retomar “nossa vida como ela era…”, de propiciar que os encontros e os corpos, os risos e as tristezas, tenham um espaço mais próximo no qual possam se processar os afetos e os conflitos, sabemos que sair do isolamento, caminhar pelas ruas, frequentar amigos, família e lugares conhecidos ainda nos traz certo receio. Também temos que enfrentar a realidade de saber que a vida não mais será como ela era. A pandemia deixou uma marca indelével nas nossas histórias, ameaças constantes, perdas irreparáveis, rostos mascarados, inclusão permanente numa tela que passou a tomar parte de nosso cotidiano e com a qual tivemos que nos familiarizar. Neste isolamento escancarou-se ainda mais dramaticamente o registro assustador da miséria que assola nosso país, que ressalta as diferenças sociais e os grupos de excluídos e de pessoas em situação de rua, que sofreram, com mais violência e quase sem assistência, os efeitos mortais do abandono da saúde pública no qual este governo nos afundou. Para sair desta miséria social, deste retrocesso, para enfrentar a destruição que sofreram a saúde e a segurança pública, a ciência, a educação, a universidade, a cultura e as artes, é que os convocamos à luta necessária para reconstruir nosso país. Nada nos será dado de graça, devemos fazer nossa parte para reencontrar um Brasil com futuro.
Entendemos que o retorno não é fácil e que todos teremos que enfrentar um processo de desconstrução de um cotidiano consolidado nos modos de atravessamento da pandemia. O Instituto se preparou para este retorno e se dispõe a cuidar da salubridade de nossas salas.
A cada ano tentamos situar nossa apresentação fazendo referência aos tempos que transitam – pois somos sujeitos da história e produto de nossa cultura.
Nosso pensar, nossos sentidos e nossa vida pulsional estão imbricados nesta produção. Não sabemos como será o que virá. No primeiro capítulo de O futuro de uma ilusão, texto de 1927, Freud nos diz que “não podemos nos antecipar acerca de um futuro possível. A incerteza é inerente a qualquer predição geral” e, mais uma vez, nos encontramos atropelados pela história. A angústia de uma pandemia, que não cessou – havendo países e populações inteiras submersas nela –, parece ter sido superada pela angústia da guerra. Os movimentos, que muito nos preocupam, em nossos espaços nacionais, a política impiedosa que esse governo está aplicando à nossa sociedade e ao nosso país, as leis que desestruturam nosso futuro e o descuido com as necessárias políticas reparatórias se veem somados ao confronto da guerra.
Estamos sobrepassados por situações de crise não vividas anteriormente; impõe-se a necessidade de nos situar – inseridos num sistema, numa sociedade coletiva na qual não existe a salvação individual. As mudanças climáticas nos afetam e nos atravessam deixando-nos a mercê do desconhecimento do que será nosso futuro pois, se não se fazem mudanças engajadas e coletivas, todos seremos vítimas do que nos vai afetar como sujeitos e que nos afetará mundialmente. Não existe o “salve-se quem puder”.
Vemos, neste momento, em um retrato dramático, uma realidade dissociada: a história da luta pela democracia, pela fraternidade, pela justiça social e, em oposição, aqueles que são pela destruição, pela separação, pelo empoderamento do capitalismo que hoje se apresenta sob propostas neoliberais. As forças de Eros contra Tanatos, uma dualidade que nos oferece um bom rascunho para analisar a realidade. Frente a esta situação é necessário criar ilhas de resistência.
No coração desta crise multifacetária que vivemos, está também a crise do conhecimento e do pensamento. Nós nos aliamos como equipe, como instituição, assim como indivíduos, nesta luta pela vida. Revivemos e ativamos, desde os nossos espaços micropolíticos, o engajamento na luta pela vida contra os genocidas e negacionistas. A terra não é plana; a ciência e a cultura trabalham a favor da criação e da defesa por um futuro melhor. Ainda que pareça absurdo, temos que defender hoje em dia as históricas posições de Copérnico e Darwin, incluindo Freud, que são os três grandes autores que nos falam de descentramentos – da Terra, do homem e da consciência. São renúncias narcísicas que pudemos alcançar e que hoje se veem ameaçadas. A psicanálise, junto à cultura, ao conhecimento e à ciência, se transforma em um saber ameaçador. Não pensamos a crise de uma maneira unilateral, reducionista, de uma maneira truncada e enganosa. A psicanálise é um campo de desconstrução e desalienação que precisa ser atualizado constantemente, em função das questões de cada época. A teoria psicanalítica e a clínica são críticas e políticas e têm sua cena na transformação.
Em pleno século 21 nos confrontamos com uma guerra, o mundo está em perigo, sabemos que nem toda a informação que nos chega pode ser aceita sem um sentido crítico, temos que analisar cada informação para considerar os desdobramentos que estão velados atrás das aparências. Eduardo Galeano, escritor latino americano, que escreveu As veias abertas da América Latina, muito lúcido e engajado, nos diz: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar, eu mato para roubar, as guerras sempre invocam nobres motivos, matam em nome de paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da Democracia mas, se nenhuma dessas mentiras fossem suficiente, aí estão os meios de comunicação dispostos a inventar novos inimigos imaginários para justificar a conversão do mundo num grande manicômio, em um imenso matadouro…”. Estas são grandes desculpas que temos que analisar a cada momento. Esta guerra não é nova e milenar, mas este evento em particular vem se preparando desde 2014 e é produto de lutas e confrontos pelo poder e pelo domínio das armas e tem o intuito de reorganizar uma nova geopolítica, com um novo panorama mundial. Entre as duas potências atômicas mundiais entra agora a China para se inserir neste panorama.
Em 1933 Einstein interroga Freud numa famosa carta que foi publicada com o nome Por que a guerra? Einstein pergunta-lhe se há algum caminho para evitar à humanidade o estrago da guerra. Impressiona acompanhar como Freud, com grande lucidez, responde que “os conflitos de interesses entre os homens se resolvem, em princípio, mediante a violência”, e vai fazendo uma análise que começa com a concepção sociológica e histórica para chegar ao mundo pulsional. Ele explicita que já há anos a psicanálise se debruça sobre esta questão e, sem dúvida, está fazendo referência a seu trabalho de 1920, Mais além do princípio do prazer, no qual desenvolve a segunda teoria pulsional; ali, o mundo psíquico está comandado por duas classes de pulsões, aquelas que querem conservar e reunir, as pulsões eróticas, e as que querem destruir e matar, pulsões de agressão ou de destruição. Sem dúvida que hoje temos novos e muitos elementos para agregar às suas considerações, mas há mais de um século Freud vai mostrando a psicanálise sendo também determinada pelo laço social. É certo que não poderíamos atribuir só a esse mundo pulsional o conflito da guerra, pois sem dúvida o que também movimenta estas pulsões são as determinações geopolíticas, históricas e sociais.
Vocês terão oportunidade de ler Freud, respeitando e aproveitando o que a história do conhecimento e do saber da psicanálise nos oferece. É necessária a leitura daquele conhecimento produzido e contextualizado na sua época; mas também nos comprometemos com o árduo trabalho de fazer trabalhar a psicanálise, enriquecê-lo e modificá-lo segundo as mudanças históricas, à luz das novas contingências sociais. Assim entendemos este curso: queremos oferecer um saber engajado, acompanhar Freud em seu dizer de O mal-estar na civilização: “é preciso transladar as metas pulsionais de modo tal que possam ser alcançadas sem denegação do mundo exterior”[3]. Entendemos que estudar psicanálise e se psicanalisar é um modo de desalienação, assim pensamos este curso para vocês, assim é que, neste projeto, pensamos percorrer com vocês este ano que nos fala de lutos e tristezas – mas desejando atravessá-lo sem melancolia. Também o doloroso pode ser verdadeiro, como nos diz Freud no texto sobre a Transitoriedade, é necessário investir no que nos sobrou. Queremos oferecer-lhes aqui um bom espaço para novos investimentos.
Mas temos também boas novas. Também atravessada pelo nosso momento atual e nossa história, no final de 2020 foi fundada a política de reparação e ações afirmativas em nosso Departamento e começa neste 2022 a implantação de cotas raciais em todo o Instituto Sedes.
Como expressa um comunicado do Departamento de Psicanálise, “Para o conjunto do Departamento de Psicanálise, as cotas raciais são parte de uma política de ações afirmativas, que visa à desconstrução do racismo estrutural”.
A implantação das cotas definidas pela Diretoria do Instituto confere a cada curso de especialização e aperfeiçoamento possibilidades de receber de um a dois cotistas pretos e pardos isentos do pagamento de suas mensalidades ao longo da duração do curso. Na divulgação dos resultados de nosso processo seletivo, informamos o modo de aceder ao edital. Que este passo fundamental nos sirva para reiterar nosso compromisso com a luta antirracista e pela reparação das desigualdades que colonialmente tocam negros e indígenas em nosso país.
Vocês vêm estudar psicanálise num Instituto que tem história, que sempre se compromissou com a justiça social, que lutou contra a ditadura e que hoje em seu aggiornamento enfrenta a reparação histórica a que foram submetidos os povos escravizados. Este processo é complexo e está em desenvolvimento. O Departamento de Psicanálise, em sua assembleia do final de 2021, criou um fundo de reserva para poder apoiar outras ações afirmativas, tais como construir dispositivos que viabilizem análise pessoal e supervisão para a formação dos analistas cotistas. Foi criada uma Comissão de Reparação e Ações Afirmativas para elaborar e viabilizar estas ações.
No tocante ao sofrimento psíquico da população negra provocado pelo racismo, temos que implementar políticas efetivas de reparação também desde nosso saber. Temos que estar atentos, repensar nosso fazer, o que era tratado anteriormente como falta de autoestima em pacientes negros ou pardos, em uma compreensão leviana, hoje tem que ser entendido como o sofrimento psíquico que tem sido causado em negros e negras devido ao preconceito e às discriminações raciais: é necessário legitimar seu sofrimento. Se não houvéssemos deslegitimado as falas, nossa escuta poderia ter sido outra. Sabemos que este é um começo, que muito temos a aprender e que toda esta luta afeta também a psicanálise e a nós como psicanalistas.
Muito tem se estudado hoje em dia sobre estas questões e numerosos autores desenvolvem pesquisas nesta direção. Os psicanalistas negros têm impulsionado para que este caminho seja feito. Diz Neusa Santos Souza em seu excelente livro Tornar-se negro (p. 16): “O racismo ronda sua existência na condição de um fantasma desde o seu nascimento, ninguém o vê, mas ele existe, embora presente na memória social e atualizado através do preconceito e da discriminação racial ele é sistematicamente negado, se constituindo num problema social com efeitos drásticos sobre o indivíduo”. Desmascarar o racismo e lutar contra o preconceito em relação a todas as diferenças de gênero e de raça faz parte de nosso trabalho para ressignificar a teoria. Não se trata de desqualificar o que a teoria nos oferece, se trata de conhecê-la com profundidade e retrabalhá-la à luz de novos aprendizados. Esta é nossa tarefa.
Quando nos propusemos a pensar em um percurso para estudar a teoria psicanalítica, tínhamos bem estabelecida uma questão: o curso não pretendia ser uma introdução à psicanálise, e sim abordar os conceitos psicanalíticos a partir dos núcleos que compõem os alicerces para a construção da teoria. Não seria um voo panorâmico pinçando na superfície todos os temas possíveis. Tampouco o curso pretendia ser uma formação em psicanálise. Nosso curso não é um curso de formação. Não prometemos isto. Cada curso de formação de analistas estabelece seu percurso e trabalha baseado na travessia subjetiva da experiência analítica, a qual se torna um instrumento fundamental para a posição de escuta, junto da prática clínica supervisionada e do arcabouço teórico. Estes três pilares têm que se manter autônomos pois, quando regulamentados, podem vir a se transformar em leis vazias. Os trabalhos de acompanhamento de uma formação devem ser realizados em instituições psicanalíticas que se propõem, segundo seu referencial teórico, realizar este trabalho, tendo em conta ademais que as instituições de formação não outorgam uma titularidade. As normas da formação estão formuladas segundo a ética deste saber.
A universidade tampouco poderia empreender uma carreira de formação de analistas. A experiência de tornar-se analista está marcada pela singularidade, o caminho a percorrer será particular e original, num difícil e longo percurso guiado pelo nosso desejo de ser analistas. A partir do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, temos empreendido uma intensa luta para brecar a implantação de um Bacharelado em Psicanálise que, na contramão da história, propõe-se a formar analistas, outorgando aos estudantes um título que os habilitaria a serem psicanalistas. O elemento do tripé que exige análise pessoal seria preenchido no último quadrimestre do curso universitário, através de uma breve análise grupal! Estão batalhando seu reconhecimento pelo MEC – o qual não será difícil, já que este órgão oficial está desestruturado neste momento e tem uma política de beneficiar as instituições privadas que lucram com o ensino. Mais de 100 instituições de formação psicanalítica do Brasil e do mundo inteiro assinam o apoio ao Movimento Articulação na luta contra esse contrassenso.
A psicanálise é a experiência do sujeito com seu inconsciente. Nosso curso oferece o início de uma apropriação dos conceitos que pode vir a consolidar uma das 3 condições necessárias para a formação: o estudo dos conceitos fundamentais da psicanálise. Pensamos que estudar psicanálise não é uma tarefa neutra, pois também nos exige entrar em contato com nosso inconsciente, ainda que de maneira diferente da que se passa em uma terapia. Para quem desejar fazer um curso de formação deverá ter análise pessoal, assim como ter percorrido um bom tempo de contato com a clínica psicanalítica.
Para introduzir a ideia fundante de Inconsciente: Partimos da ideia de que cada momento histórico determina a produção de conhecimento e cada autor também determina a forma em que mergulhará na sua produção; por esta razão, começamos o curso lendo um texto de 1925, Um estudo autobiográfico, no qual Freud nos diz que se vê “obrigado a procurar abordar a combinação diversa entre a posição subjetiva e objetiva, entre o interesse biográfico e o histórico”[4].
Com o passar do tempo, o conhecimento foi se transformando, a moral foi tomando novos rumos, a medicina e outras ciências ganharam abordagens diferentes. Mudou a tecnologia e a forma de produção de conhecimento, que ofereceu novos parâmetros para reler a psicanálise. Desenvolver a ideia de uma psicanálise engajada na sua época nos leva a começar o curso estudando a Viena na qual Freud estava inserido, assim como também avançamos no tempo e incorporamos as novas condições para a formação da subjetividade que nos oferecem os diversos momentos históricos, culturais, sociais, econômicos e políticos e nos permitem estudar os fenômenos contextualizados.
Em sua vitalidade, a psicanálise nos permite identificar novos elementos que possibilitam pensar os novos problemas. Discutimos questões que se referem ao tempo no qual vivemos, questões relativas aos problemas com que nos enfrentamos no dia de hoje, mergulhamos nas novas formas de entender o sexual e os preconceitos, produtos do momento histórico que marcaram a psicanálise, ao negar a legitimidade dos grupos excluídos socialmente como os grupos LGBTQI+, ou os conflitos relacionados à diferença de gênero reivindicados pelo feminismo. Pensamos as condições da família atual e uma nova moral, que difere das ideias propostas pela época vitoriana. Também abordamos questões de raça que impõem a necessidade de incluir e repensar a formação da subjetividade, rompendo com uma tradição escravista que mantém ainda hoje uma sociedade desigual; entendemos o racismo como uma marca estrutural de desigualdade de nossa sociedade, contra a qual lutaremos para que a psicanálise mantenha o lugar de um saber que liberta e marca a formação do sujeito em condições de igualdade. Abordar os problemas que as diferenças entre raças propõem não será entendido como manifestação de sintomas individuais e sim como uma patologia da sociedade. Nós nos aproximamos também da possibilidade de repensar as patologias que se originam da exclusão das classes sociais instituída pelo neoliberalismo – problemas estes que, na época em que Freud elabora a teoria, não são para ele significativos ou não são apreendidos do momento histórico de Viena final do século 19. O mal-estar na cultura de hoje é radicalmente diferente daquele diagnosticado por Freud. O que fornece fundamentos para o caráter patológico de certas condutas está em relação com os fundamentos éticos e morais nas quais elas se evidenciam.
Pensamos que a única maneira de manter a psicanálise viva é nos apropriarmos das novas formas de produção do conhecimento que possam incorporar o novo e reorganizar o já conhecido dentro dos paradigmas que nos caracterizam como especificidade científica. Para dar conta da ideologização que se infiltra no campo psicanalítico e das novas questões que se nos apresentam é necessário não tomar a teoria como um corpo morto, coagulado ou estagnado. É trabalhando-a e aprofundando-a que conseguiremos avançar. Faz-se necessário retrabalhar a obra freudiana à luz dos progressos da ciência, da filosofia, da antropologia, da sociologia, da economia, das artes e da cultura em geral.
Na época em que Freud elaborou o arcabouço científico sobre o qual desenvolveria seu modelo metapsicológico, as ciências estavam impregnadas pelos modelos da termodinâmica e pelos modelos deterministas de causa-efeito. Hoje os novos paradigmas científicos nos permitem pensar de um modo diferente, oferecem-nos postulados que abrem novos modos de entender os fenômenos dos quais teremos que dar conta. A partir do século XVI foram surgindo grandes transformações nos processos de legitimação do conhecimento. As cisões da igreja e o advento do protestantismo ocorreram pela negativa de alguns grupos em aceitar que existisse uma única leitura possível das escrituras. De uma subversão religiosa decorreu, naturalmente, uma subversão no campo social e da ciência, a partir da qual não mais se pode falar de verdades únicas. A epistemologia clássica adaptou seu ideal de teoria científica à concepção da geometria euclidiana, na qual a teoria ideal é um sistema dedutivo com uma definição de verdade incontestável baseada em uma conjunção de axiomas, de modo que a verdade se desloque por caminhos definidos de inferência válida, que se propagam por todo o sistema. Se o critério de univocidade das ciências empíricas foi, para filósofos como Comte, requisito de toda ciência, um grande avanço se promoveu na história do pensamento a partir das colocações de Dilthey, que diferencia ciências do espírito e da natureza, com diversas metodologias e formas de pesquisa. Estas questões nos levam permanentemente a avaliar se interessa à psicanálise se denominar como uma ciência, ou se preferimos nos referir a ela como um saber que se formula através dos próprios enunciados que correspondem a uma ética. O próprio Freud se questionou permanentemente sobre como se formula e se transmite a psicanálise. Hoje não interessa promover o conceito de univocidade como se procurava nos sistemas galileanos e newtonianos. Até mesmo no campo das ciências exatas, a pluralidade de hipóteses é admitida. Dizia Poincaré (1902) que a crença de que as verdades das ciências duras são certezas só pode ser admitida numa mente ingênua. O método clínico, que é o método científico por excelência no campo da psicanálise, guarda pouca conexão com a ciência “fisicista” do século XIX. A verdade do paciente é sempre conjectural. Inclusive no campo da medicina, podemos dizer que não há enfermidades, mas, sim, enfermos, partindo-se da impossibilidade de assumir qualquer tipo de certeza. Conservar a singularidade se faz fundamental na pesquisa psicanalítica. Como já tínhamos dito, a revolução copernicana, que desloca a Terra do lugar de privilégio, une-se à ferida narcísica que promove a psicanálise, ao reconhecer que a consciência não é o elemento central que se deve analisar para entender as determinações que impulsionam os caminhos psíquicos do homem. Hoje em dia se faz necessário repensar o modo como operavam na psicanálise os postulados científicos da época, na forma como aparecem, por exemplo, na construção do Projeto para uma psicologia científica[5] (1895) que acompanha um modelo mais hipotético-dedutivo. Hoje se faz necessário incorporar novos modelos científicos para pensar a psicanálise. A teoria do Caos, as teorias da complexidade, a teoria das estruturas dissipativas que têm como ponto de partida o não equilíbrio.
Há certos conceitos que prevalecem, são aqueles que tem a ver com os fundamentos da teoria, os que consideramos pilares e que serão transmitidos no decorrer do curso; são conceitos que, independentemente da escola teórica desde a qual se fala, tomam parte da estrutura que marca a construção deste saber. Sejam quais forem a teoria e as diferenças na enunciação dos conceitos, estes figuram em todas as construções teóricas que pretendem se manter no campo da psicanálise.
Consideramos importante por o acento em alguns inegociáveis que caracterizam o campo da psicanálise. Esta conceitualização foi por mim elaborada e inclui dois aspectos, os metapsicológicos e os clínicos. Na metapsicologia considera-se que estamos no campo da psicanálise quando trabalhamos com: 1. Conceito de Inconsciente 2. Conceito de Sexualidade infantil 3. Conceito de Pulsão. Na clínica, a psicanálise está presente ao trabalharmos com: 1. Conceito de Transferência 2. Abstinência 3. Método Psicanalítico: Atenção flutuante e Associação livre (esses têm que ser revisados nas situações em que muda o enquadre).
Um primeiro inegociável que nos permite manter nossa especificidade teórica é, portanto, considerar a construção do conceito de Inconsciente como espaço estrangeiro, que deixa o sujeito à mercê de um desconhecido de si. É necessário considerar o deslocamento que faz a psicanálise, de uma concepção ptolomaica de um Eu possuidor da verdade ao recentramento do lugar do Inconsciente. Freud nos diz que é a partir deste conceito que ele estrutura uma nova forma de conhecer e entender os fenômenos da alma. Para permitir que se apropriem deste conceito, fazemos um percurso que vai desde os trabalhos chamados pré-psicanalíticos, oferecendo a leitura de dois casos clínicos para acompanhar o processo através do qual Freud se aproxima do conceito de inconsciente. Vamos assim, a partir de seu trabalho com as histéricas, abordando os primeiros estudos de sintomas que não tinham compreensão exitosa no campo da medicina. Incluindo seus conhecimentos como neurologista, Freud descobre que alguns sintomas não correspondiam às vias neurológicas que lhes dariam sentido na medicina. Assim, a partir dos casos clínicos, ele estuda como é possível ter um comprometimento motor ou neurológico que inexplicavelmente produzia dormência ou dor nas mãos, sem que se registrassem os mesmos sintomas na parte anterior do braço. Assim começa a pensar que estes sintomas teriam outra origem que não relativa a uma doença orgânica.
Ao acompanhar o caso de Elizabeth von R., que se encontra na passagem ao método psicanalítico, fazemos uma aproximação à forma pela qual Freud vai fazendo suas descobertas. As noções de recalque, deslocamento, trauma, conflito e resistência fazem suas primeiras aparições. Esboça-se a ideia de que existe uma temporalidade diferente na expressão de sintomas, enuncia-se os dois tempos do trauma e a ideia de ressignificação ou posterioridade, que desenvolvera no caso Emma, no qual relata a instauração dos dois tempos do trauma. Introduzir o conceito de ressignificação nos permite entender como alguns fatos ganham sentido a partir de uma concepção de temporalidade que é própria à psicanálise. O conceito de après-coup, retomado e desenvolvido a partir do caso Emma, publicado no Projeto de uma psicologia para neurólogos, nos interessa fundamentalmente para mostrar como na psicanálise há um descentramento do sujeito e um tempo que não é linear. A partir daqui retornamos à leitura das Cinco lições de psicanálise que nos abrem o caminho para trabalhar o sentido simbólico das produções psíquicas, parte das quais estão ocultas ao próprio sujeito. Abordamos assim a construção do conceito de inconsciente, para depois mostrar, a partir da Carta 69, o fundante de realidade psíquica, na qual fantasia e realidade adquirem um relevo particular e produzem um giro importante na teoria. Mergulhamos na ideia de “porque Freud não acredita mais na sua neurótica”.
Outro elemento central e inegociável para pensar a psicanálise é o deslocamento que Freud produz nos Três Ensaios [6] (1905) ao demolir o preconceito de uma sexualidade pré-orientada instintualmente no homem, em benefício de uma pulsão que só encontraria seu objeto de maneira totalmente aleatória na sua história individual, objeto esse essencialmente vicariante e contingente[7]. Essa substituição tira o sujeito do campo da pura biologia e o constitui na sua própria diferença, fora do determinismo biológico, a partir da valorização da fantasia e da linguagem. Abordamos aqui a diferença entre instinto e pulsão.
O terceiro inegociável é o que ressitua a sexualidade infantil como trilha pela qual transita a formação da subjetividade. Estes dois últimos enfoques já começam a ser vislumbrados nos casos clínicos que Freud nos apresenta, mas são temas aprofundados no segundo ano de nosso curso, ao estudarmos a pulsão e a sexualidade infantil de forma central na formação de sintomas.
Neste primeiro ano trabalhamos ainda com o esquema da primeira tópica, uma primeira formulação de Freud para abordar o sistema psíquico. O conceito de inconsciente que transmitimos se refere a esta conceitualização, com a qual apreendemos uma nova perspectiva de existência de um inconsciente que difere da forma pela qual o inconsciente era percebido pela filosofia e a psicologia da época. Este conceito sofre grandes modificações na obra freudiana. A primeira tópica é formulada de uma forma mais completa no cap. VII da Interpretação dos sonhos e vai se modificando visivelmente na obra até que Freud formula a segunda tópica.
Estes esquemas pertencem ao que chamamos de metapsicologia. A metapsicologia elabora um conjunto de elementos conceituais, mais ou menos distantes da experiência, e descreve processos psíquicos nas suas relações dinâmicas, tópicas e econômicas. Trabalhando as cartas 69 e 71 de Freud a Fliess, nos detemos nos conceitos de trauma e fantasia. O texto do Bloco mágico nos serve como uma preciosa descrição das inscrições inconscientes. Através das Cinco lições de psicanálise abordamos também as questões que diferenciam a forma pela qual um sintoma é lido pela medicina e pela psicanálise. Elas são complementadas com trechos escolhidos de Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e de Interpretação dos sonhos[8] (1900). Neste curso trabalharemos fundamentalmente o conceito de sintoma a partir da primeira tópica. Considerando a colocação freudiana de que “nossos enfermos sofrem de reminiscências” e que os sintomas são restos e símbolos mnêmicos de certas vivências traumáticas, vivências dolorosas às quais os neuróticos permanecem fixados; desenharemos o conceito de neurose, que nos mostra que às vezes os sujeitos se descuidam da realidade por conta destas vivências recalcadas.
O percurso teórico vai sendo acompanhado por relatos de situações que vêm de outros campos de atuação profissional, assim como casos clínicos tanto de Freud como dos próprios alunos ou introduzidos pelos professores para encarnar a teoria. Recorrendo às diversas elaborações em relação ao sintoma, destaca-se que em todas estas vivências estava em jogo o surgimento de uma moção de desejo que se encontrava em aguda oposição com os demais interesses do indivíduo, e que parecia ser inconciliável com as exigências éticas e estéticas da personalidade deste sujeito. A partir do conflito sobrevive uma representação que devia ser recalcada e esquecida. Ao adentrarmos toda a complexidade dos conceitos de conflito e de sintoma, desenvolvemos a teoria do recalque, destacando componentes como dissociação, fixação, formação substitutiva, sobredeterminação e sexualidade infantil – conceito que, junto a pulsão, sexuação e sexualidade, será a base do programa do segundo ano.
Terminaremos o programa de primeiro ano com as Conferências introdutórias à psicanálise, de 1916-17, da conferência 17 a 23, nas quais Freud nos introduz no sentido dos sintomas, desenvolvimento libidinal e organizações sexuais e aprofunda os conceitos esboçados nas Cinco lições. No decorrer dos anos temos substituído ou adicionado alguns escritos, porque as diferentes turmas nos vão conduzindo a aprofundar ou discutir certos temas. O programa tem uma espinha dorsal, mas cada professor vai complementando com elementos que decorrem da sua própria relação com a teoria e do grupo com o qual trabalha.
Nossa escolha programática tem se mostrado muito afortunada, incita aos alunos que já vinham com algum conhecimento a descobrir e fundamentalmente aprofundar conceitos cruciais para entender o complexo edifício da teoria psicanalítica e suas ligações com a clínica e, para os que não tinham um trajeto anterior, se apresenta como uma descoberta e um desafio que os incita à leitura e lhes permite fazer vínculos com as temáticas que são de interesse na área específica de exercício profissional a que pertencem.
Queridos alunos, desejamos a todos um trabalho produtivo, festejamos que a vacinação ganhou o caminho do povo, o que nos permitirá os encontros presenciais.
Bibliografia básica para o 1º ano do curso:
- Um estudo autobiográfico (1925), v. XX. Capítulos I e II.
- Cinco lições de psicanálise (1910), v. XI. Lições I a IV.
- Estudos sobre a histeria (1893-1895), v. II: Caso clínico 5: Srta. Elisabeth von R.
- Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]), v. I: A próton pseudos (primeira mentira) histérica – apenas o “Caso Emma”.
- Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]), v. I: Cartas 69 (21 de setembro de 1897) e 71 (15 de outubro de 1897).
- Uma nota sobre o “bloco mágico” (1925), v. XIX.
- Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901), v. VI: O esquecimento de nomes próprios (capítulo 1) e O esquecimento de palavras estrangeiras (capítulo 2).
- A interpretação dos sonhos (1900), v. IV: A distorção nos sonhos (capítulo IV), preâmbulo – apenas o sonho ‘Tio Joseph, tio da barba amarela’.
- Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917), v. XVI: conferência 17 a 23.
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[1] Este texto corresponde à Apresentação da Aula inaugural 2022 do curso Clínica psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[2] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[3] cap. 2 de O mal-estar na civilização.
[4] Freud S. Presentação autobiográfica (1925). Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1975, vol. 20. Caps. 1 e 2.
[5] Freud, S. (1985) Projeto de psicologia. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988, v. 1.
[6] Freud, S. (1905) Tres ensayos de teoría sexual, Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1988, v. 7.
[7] Laplanche, J. (1987). O inconsciente e o ello. Problematicas 1. Buenos Aires, Amorrortu, p. 117.
[8] Freud, S. (1900) Obras completas, v. 4 – A interpretação dos sonhos (Primeira parte).