Instituto Sedes Sapientiae

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Isildinha, Deivinho e a nossa extraordinária capacidade de sonhar e desejar

por Fernanda Almeida[1]

 

Estamos a três semanas das eleições mais sangrentas do país; tem sido uma luta diária controlar a ansiedade, a preocupação e o medo. Um exercício diário que exige do corpo e do psiquismo. Associo à corrida de uma maratona, uma experiência que deve exigir persistência, perseverança e autocontrole. Diferente de uma prova de esforço físico, o preparo para o “sprint” final das eleições, no meu caso, é feito através da busca de doses suplementares de delicadeza, carinho e bons afetos. São as defesas necessárias para suportar a truculência e a crueza do tempo que nos foi reservado viver. Assim, não tenho recusado convites para cinemas, espetáculos, teatros e encontros que assegurem a prescrição do mestre Guimarães Rosa: “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.  Malemá, tem funcionado.

Foi abastecida deste propósito que assisti a dois filmes no mesmo dia. Um documentário e um longa-metragem que me lembraram que a capacidade de sonhar e desejar expressam o que há de mais significativo em cada um de nós.

Isildinha Baptista Nogueira é a entrevistada do projeto Psicanalistas que falam, dirigido por Heidi Tabacof, assistida pelo meu querido amigo Jonas Waks. O documentário traz o incrível percurso da formação desta mulher negra que ousou sonhar e conquistou (não sem esforço pessoal e resistências por parte da branquitude) espaço e respeito no meio psicanalítico brasileiro e também internacional, sobretudo na França. Isildinha nos mostra as contradições existentes entre seu lugar como uma intelectual erudita, psicanalista respeitada e admirada e a destrutividade do racismo que lhe impõe a condição de “nada”, fora dos certames acadêmicos e intelectuais. A contundência de suas posições, a ternura de suas memórias e a doçura da voz encantam e encorajam aquelas e aqueles que teriam tudo para desistir, mas seguem, como ela, sonhando e resistindo. O sonho e a ousadia mudaram a trajetória desta mulher. O seu percurso transformou mais que a sua vida, hoje ele expressa mudanças significativas na própria psicanálise brasileira, ao atribuir cor ao inconsciente.

No filme Marte Um, Deivinho é o filho mais novo da família Martins, trabalhadores negros que vivem na periferia da grande BH. Deivinho deseja estudar astrofísica e sonha em participar da missão que projeta a colonização de Marte. O filme é de uma beleza e sutileza indescritíveis. Cada personagem é um universo particular e pulsional de desejos. O filme foi indicado para representar o Brasil na disputa de melhor filme estrangeiro no Oscar 2023, uma verdadeira fissura na estratégia bolsonarista de apropriação e apagamento da representação cultural da família brasileira. Representa um Brasil que insiste, que persiste e que resiste, pois a esperança e a delicadeza são antídotos necessários frente à monstruosidade cotidiana imposta pelo fascismo do falastrão que preside o país.

A noite estava gelada e úmida quando saí do cinema, voltei para casa pedalando e construindo na minha cabeça como seria um possível encontro entre Deivinho e Isildinha. Os dois conversariam baixinho, imagino a doçura desta cena. Fico tecendo os fios que ligam as duas histórias. Penso no diminutivo de seus nomes e no sentido afetivo que isso carrega. Penso no Brasil da jovem Isildinha que partiu para a França levando uma carta na mala, e no país mal-acabado e já destruído que tenta roubar o futuro do Deivinho. Reflito sobre a paixão que ambos nutrem pelo conhecimento, pela ciência e pela pesquisa. Penso no fascínio que o desconhecido mobiliza nestas duas personagens – ela quer escutar a cor do inconsciente, ele quer colonizar Marte. As coincidências não param por aí. Fico por um tempo fantasiando (a boa brincadeira dos adultos) e imaginando os fios associativos que ligam uma história à outra. No entanto, é a cor de suas peles e as marcas do racismo que me mobilizam a refletir sobre a importância e a ligação entre os sonhos e desejos deles. São corpos negros; penso no encontro diaspórico destes dois sujeitos. Viajo com eles – primeiro para França – e, distraidamente, percebo que estou a um pulinho de Marte.

Já é madrugada, estou alegre ao me perceber otimista. Ainda que o inescrupuloso projeto fascista vencesse as eleições, as fissuras estão postas. Já não é mais possível ignorar os recalques históricos que escamotearam a estrutura profundamente racista, classista e sexista deste país. O mal-estar deve nos impulsionar a enfrentar o conflito, da forma como sabemos fazer, no campo da arena democrática. Enquanto escrevo tenho certeza que existem outras Isildinhas e Deivinhos sonhando, desejando e olhando para as estrelas.

 

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[1] Assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da FAPSS-SP. Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Psicanalista em formação no Curso Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Integra o Projeto Territórios Clínicos da Fundação Tide Setubal.

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