Instituto Sedes Sapientiae

boletim online

jornal de membros, alunos, ex-alunos e amigos de psicanálise

Marte Um: Afeto imenso

por Dedé Oliveira Ribeiro[1]

 

Marte Um: Sensível e forte, inteligente e despretensioso, entretenimento-que-não-é-raso… Mas, também – não se preocupe –, nenhum exagero na profundidade.

Sim, sei que tem Wong Kar-wai e Chris Marker no Mubi, sei que tá “todo mundo” viciado em bobagens da Netflix e que talvez você tenha perdido o costume de ir ao cinema por causa da maledetta da pandemia, mas… nada como um bom filme no cinema!

Marte Um faz muita gente sorrir e, a algumas almas vulneráveis, provoca lágrimas irrefreáveis – não, não fui a única… vi uns-par de olhos vermelhos na saída.

O filme é de uma galera de Contagem que parece que tem feito ótimos filmes nos últimos anos. Confesso que não conhecia: nem a Filmes de plástico, nem os atores e atrizes excelentes. Um tanto por ignorância minha, sem dúvida intrasferível, mas não posso perder a chance de criticar a distribuição e a divulgação de filmes bons, especialmente brasileiros…[2]

Onde estão sites, blogues, jornais, revistas que nos ajudem a decidir a que assistir? A distribuição, a programação e a divulgação dos filmes precisam ser revistas. Urgentemente. As pessoas se esfalfam para fazer os filmes, gastam grana, tempo, sangue, suor e lágrimas, conseguem fazer pérolas como essa e aí… Poucas salas, poucos horários, pouca divulgação. E lá vai o filme sair de cartaz antes de ter a chance de, efetivamente, ser visto.

Na conversinha pós-filme, um moço simpático comentou que Contagem era “tipo Osasco”… Sim! Não só Contagem é uma grande cidade industrial conurbada a Belo Horizonte (como Osasco em relação a São Paulo), como a dupla Contagem-Osasco foi responsável pelas corajosas greves de 1968 – as primeiras greves importantes após o Golpe de 1964, que havia calado com violência o movimento sindical.

Noves-fora o delicioso sotaque minê, o filme podia se passar em Osasco, mas também em muitas outras regiões do país. Como fazem falta mais filmes com pessoas que não moram no Leblon, nos Jardins ou na Vila Madalena! Com gente que trabalha, estuda, dança, faz churrasco no fim de semana, paquera, e, claro, sofre com os boletos, mas que, apesar de tudo, ainda sonha e faz sexo – apesar de tudo.

A imagem que lembra de leve, em todos os sentidos, o Azul é a cor mais quente provavelmente ficará gravada nas suas retinas, como ficou nas minhas. Na saída do cinema, talvez te dê vontade de ligar para alguém… um convite para um churrasco, um samba, talvez procurar um apartamento?

Precisamos de mais filmes assim, “de verdade”. E se você achar que “a parada” é inverossímil… Lembre-se da primeira cena. Você não esteve em Marte desde janeiro de 2019, né?

Este texto terminava aqui. Foi escrito numa sexta-feira, cinco dias depois de eu ter assistido ao filme por ter visto, num golpe de sorte, a foto do lindo Cícero Lucas no cartaz do filme. No domingo, veio o convite gentil para publicá-lo aqui. Hoje, segunda-feira, chega a notícia de que ele foi escolhido para representar o Brasil na “corrida” ao Oscar. Estará entre os selecionados? Entre os finalistas? Levará para Contagem a famosa estatueta? Não sabemos. Algo a acrescentar ao texto? Sim.

As pessoas já puderam assistir a Marte Um (e chorar) no Festival de Sundance – considerado o mais importante festival de cinema independente do planeta – e no Festival de Gramado, no qual ganhou quatro Kikitos (melhor longa pelo júri popular, prêmio especial do júri, melhor roteiro e melhor trilha musical).

O filme foi feito com dinheiro do primeiro e último “edital afirmativo” para incentivo a produções dirigidas por pessoas negras, lá no longínquo ano de 2016. Não é difícil imaginar por que foi o último. Mais uma das peças que o destino nos prega, o fato de, em 2022, o filme “representar o Brasil”?

Se, por um lado, a excelente notícia de que ele será visto por mais gente, no Brasil e no mundo, infelizmente não muda os problemas sérios que temos a enfrentar, no cinema, no país e na Terra, por outro, não é possível terminar um texto a respeito de um filme como esse sem afeto, sonho e resistência. Encerro-o, então, com as palavras do maravilhoso diretor Gabriel Martins em uma recente entrevista[3]:

“Lançar Marte Um em 2022 é reivindicar a vida. Reivindicar a vida e a poesia em tempos de escuridão e morte. A gente passou por um trauma na nossa sociedade brasileira — pela pandemia, pela maneira que ela foi tratada, pela maneira que a política do Bolsonaro tratou a nossa população, principalmente a mais vulnerável — e diante de um trauma, para mim, o único gesto possível é o de um afeto imenso a ponto de recuperar uma crença possível na nossa vida, na nossa sociedade, na nossa resistência, a partir do olhar de ternura às coisas. A gente não pode ceder ao cinismo. A gente não pode ceder à individualidade. Me recuso a ver o mundo como um lugar que não pode ser de pessoas vencendo na vida, sabe? Isso não significa que a gente precisa ser alienado das tristezas que nos acometem enquanto humanidade. Mas o cinema, a arte, estão aí pra lembrar a gente do que é importante, que ainda existe possibilidade de amar, e isso pra mim é um gesto engrandecedor em um ano de tanta dúvida, tanto medo.”

 

_______________

[1] Psicanalista, ex-aluna dos cursos Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e Psicanálise, integrante do coletivo Escuta Sedes, do Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar e da Comissão de Reparação e Ações Afirmativas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Nota dos Editores: Nós divulgamos, Dedé! Para saber mais, ver Filmes de plástico feitos à mão, artigo de nossa saudosa Elaine Armênio para a edição 54 do boletim online, de junho de 2020: https://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=54&ordem=18

[3] https://mais.opovo.com.br/colunistas/cinema-e-series/2022/09/03/cineasta-gabriel-martins-lancar-marte-um-em-2022-e-reivindicar-a-vida.html

 

uma palavra, um nome, uma frase e pressione ENTER para realizar sua busca.