Pode uma interpretação “tremer”?
por Lucas Ribeiro Arruda[1]
Ele “não tinha controle” quando estava na rua, não respeitava os sinais ou a aproximação dos carros. Ele quase não falava nada e não interagia verbalmente como os outros, apenas repetia uma ou outra coisa que falávamos. Há três anos acompanho o caso de Pedro (nome fictício) como Acompanhante Terapêutico (AT). Este acompanhado tem por volta de 40 anos, é negro, diagnosticado com autismo, viveu em um hospital psiquiátrico por décadas, e em decorrência da luta antimanicomial foi inserido em uma residência terapêutica (SRT). Cada AT carrega consigo suas particularidades pessoais, e isso faz parte da abertura que vai sendo construída com o acompanhado, na “cena” em que o trabalho se dá. Para cada pessoa de que vamos nos aproximar fazemos um caminho nosso, mas sempre diferente, conforme a característica do dispositivo de AT, que conta com a flexibilidade. Fruto também de um longo percurso dentro da luta antimanicomial.
No caso do acompanhamento de Pedro, o corpo estava presente como balizador de todo o trabalho.
Se no consultório fazemos a “cura pela palavra”, como conceber um espaço com alguém que não fala? Como o corpo, ou melhor, o meu corpo, se colocou frente ao corpo do acompanhado? Considero que essa relação “sem palavras” participou de minha formação como AT, mas também indicou uma maior consistência no meu trabalho no consultório. Como isso pôde ser possível?
Vou colocar uma cena em que estava com Pedro na rua, no início de nosso trabalho.
***
Esse homem, chamado algumas vezes de “cachorrão” (!), não achou ainda um substituto das coleiras-paredes do antigo hospital psiquiátrico. Assim, era necessário criar um vínculo com presença corporal que não significasse mando, mas relacionamento. Ele já sabia ser cercado por paredes manicomiais e ser dito o que fazer a cada momento, isso já sabíamos dele. Mas se saíssemos com ele na rua, ele ficaria “desgovernado”. Portanto, precisavam de “alguém que o controlasse”. Mas utilizar a força não seria como uma “análise selvagem”?
Num dia particular saímos. Estava com ele na rua. De súbito, em um instante, me vi com meu corpo em frente ao dele.
Estávamos em uma esquina onde não se poderia atravessar, frente ao trânsito (anti)natural de São Paulo.
Senti meu corpo-cuidado sendo acotovelado por Pedro, gritos se esboçaram naquele homem: ele tentava atravessar a esquina a todo custo, me atropelando. Naquele instante meu corpo inteiro ficou tremendo.
Tremer foi a própria energia, no corpo, relacionada à minha interpretação (colocar-me à frente) do contorno-que-não-era-coleira. Sem a coleira ele ficou colérico, tive que me contentar com administrar seu grande corpo atravessando a rua frente aos carros que subitamente pararam para deixar-nos passar. Dois corpos loucos, na visão dos motoristas, corpos fora do lugar. Sentindo a tendência dos motociclistas e motoristas, me coloquei junto com o corpo do acompanhado, no meio fio do risco, a última das coleiras, a morte. Por fim pararam e nós atravessamos. O que da minha interpretação-cuidado do corpo na frente que protege do atropelo (interpretação-contorno) fez com que meu corpo tremesse? Uma interpretação pode tremer?
O consultório se dá aparentemente em um “quebra cabeça” verbal, onde se você sabe escutar, fará um trabalho excelente. Mas quando me deparei com esse “cuidado-empurrão”, esse “cuidado-briga”, percebi que o trabalho era muito diverso e ao mesmo tempo fundamental para meu desenvolvimento formativo como clínico também no consultório. Nessa cena descrita acima, Pedro andava pelos seus primeiros caminhos na cidade, e ele me atropelou. No consultório também às vezes sentimos um “atropelo verbal” vindo do paciente, mas caminhando pela cidade vamos traçando outro tipo de discurso. O corpo de Pedro poderia ser como uma “associação livre”, “corpo-discurso”, e meu corpo na frente do seu poderia ser uma interpretação, no sentido de dar uma continência àquele ato (toda interpretação não seria uma continência?). Ao longo do tempo pude ir criando essa continência-corpo para que fosse possível sairmos pela cidade. Às vezes, também é necessário sentir tal “atropelo” que seu paciente do consultório lhe deu, pois ele estava como que querendo passar por cima de você com as palavras para se colocar em uma “avenida cheia de carros”, em um “risco da linguagem”.
Tremer é o que fica entre relaxado (como o “louco” que atravessa a rua) e tenso (como a coleira, o tratar como um cachorro, o trancafiar). Tremer é a própria vulnerabilidade que senti como AT, vulnerabilidade necessária para achar a justa medida de estar com alguém. Não medi forças com o Pedro na esperança que ele me “respeitasse”, mas pude ir – ora à frente, ora ao lado –, com afeto e afetado, desenhando esses caminhos não mais arriscados de uma relação.
Pedro é um homem negro, que viveu muito às margens, inclusive dos laços sociais convencionais. Como garantir o seu caminhar, não mais “louco”, mas um andar com um sentido? Muitas vezes já andei à sua frente, algumas horas o deixava passar e ele ia guiando o caminho. Hoje praticamente só ando ao seu lado. Se andasse somente à sua frente talvez fosse excessivo para ele, se só deixasse ele ir à frente talvez fosse omisso.
Andar à frente e atrás, em um jogo relacional, é poder dar espaço a um corpo. A um corpo que recusa a ordem das “encruzilhadas” da cidade. Será o trânsito indiferente das esquinas, ou será o trânsito indiferente da esquina de nossos olhos que não nos deixa vermos o que está ao nosso redor? Pude aprender a estar atento ao outro não pelo mando, não medindo forças, mas ajudando a guiar, a tornar independente e visível por si próprio.
O processo dos corpos, o corpo negro e o corpo branco, estão longe de uma “neutralidade”, não podemos ser omissos nem excessivos um com o outro. É preciso que haja espaço para que os corpos se relacionem, no entanto, não um espaço “vazio” ou com um trânsito de indiferenças, mas sim um espaço cheio de tensões.
No processo de formação psicanalítica também há um “tremer”! Talvez haja esse “duplo” em cada tremer, algo de uma energia solta, uma que vai pelos caminhos consagrados que por vezes tornam-se rígidos, e outros que não encontraram espaço para se direcionar ainda, o que talvez aponte para os próprios pontos cegos do analista. Mas isso é a riqueza de toda clínica, esse poder suspender o saber, para que possamos ser atravessados pelo outro. É somente na nossa particularidade como pessoa que podemos descobrir os recursos para achar essa justa medida tão cara ao trabalho do AT, a medida da relação. O consultório não é só o lugar verbal, mas é também o lugar do corpo, um lugar impactante. Precisamos “entrar” nos nossos próprios corpos, no sentido psicanalítico, “corpo-potência-memória” e compor a clínica com todos os nossos recursos.
No trânsito da vida brasileira, quem treme, quem tem a interpretação trêmula (não acabada) é quem está “lucrando”.
O espaço que as palavras abrem é sempre com um viés. Não sei o quanto a pessoa que acompanhei fica visível nesse texto. Estou abrindo espaço para quê com essas minhas palavras?
Me diga, qual o espaço entre mim e você?
Agosto 2022
_______________
[1] Acompanhante terapêutico e psicanalista em formação no Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.