Sobre a procura de um/a psicanalista negro/a: psicanálise e relações étnico-raciais[1]
por Daniel Péricles Arruda[2]
Palavras iniciais – Acolhimento
Atualmente, venho refletindo sobre casos de sujeitos negros que buscam ser atendidos por psicanalistas também negros. Constantemente, recebo essa demanda, inclusive, em forma de perguntas: “Estou com um caso aqui de uma pessoa que quer ser atendida por um psicanalista negro. Você pode atender?”; “Você conhece algum psicanalista negro para indicar?”; ou, então: “Eu só vou em psicanalista negro!”.
Essas são questões recorrentes, nas interlocuções de ideias e construções reflexivas feitas com alguns pares, e, agora, sinto-me convocado a escrever este artigo com o propósito de apresentar alguns elementos para o debate, inclusive, considerando os abismos e as aproximações entre psicanálise e relações étnico-raciais. Pensemos: Por que alguns negros querem ser atendidos por analistas negros? Será que o sujeito negro considera que, assim, será compreendido? O que o sujeito deseja quando procura esse profissional específico? E o que almeja, quando manifesta essa vontade? Quais são as diferenciações entre procura, demanda e desejo, na perspectiva étnico-racial na clínica?
A intenção, portanto, não é responder diretamente essas questões, mas tomá-las como algo a ser decifrado, expressões que partem do sujeito cultural, que acaba por anunciar e denunciar o modo como imagina ser tratado; de que ponto gostaria de ser escutado e que, provavelmente, se sentiria bem. Trata-se de uma abordagem sem pretensões de ser conclusiva, tampouco de dividir a psicanálise para negros e brancos. O compromisso aqui é dar importância a essa questão que, na minha visão, não deve ser reduzida, em termos teóricos, e nem banalizada, pois, na atualidade, há várias visões a respeito do tema, assim, compartilho as minhas impressões.
É importante considerar também que este artigo se insere na perspectiva do evento Racismo Estrutural: Enfrentamento Transdisciplinar Antirracista, realizado pelo Instituto Langage, em novembro de 2020. Pois entendemos que o racismo e suas tramas devem ser considerados, sim, no processo de formação dos sujeitos, em seus sofrimentos psíquicos, nos modos como constroem suas redes de significações e como lida com seus significantes.
Você conhece algum/a psicanalista negro/a?
É comum o sujeito partir de uma preferência clínica, ou seja, querer ser atendido por mulher, homem, pessoa trans, pessoa de determinada abordagem psicanalítica; que o consultório seja perto ou longe de casa ou do trabalho; que o profissional aceite determinado valor de pagamento; ou situações mais específicas, por exemplo: “Prefiro ser atendido por mulher, branca, mais velha e com cabelos brancos!”. Nesse caso, indaga-se o que há nessa construção subjetiva que é projetada na posição da analista.
Essas escolhas falam muito do escolhedor. Falam de suas fantasias, seus desejos, sintomas, sofrimentos, suas transferências e identificações. Expressam parte de como o sujeito constitui os seus laços. Quando expressa uma preferência, o sujeito assenta-se em uma justificativa, que, possivelmente, é, ou seria, mais confortável para ele. Trata-se, portanto, de uma questão que diz respeito ao sujeito, às suas questões.
O que me chama atenção é como se dará a relação transferencial, no encontro com o analista; o manejo do analista. O sujeito negro pode chegar à clínica e dizer: “Você é negro, sabe como é o racismo, né?”. Assim, nesta situação, o psicanalista permaneceria em silêncio ou poderia responder com uma indagação: “Fale como é o racismo para você”. Lacan (1967-68) irá sustentar que o psicanalista é aquele que não sabe, e mais ainda, que ele não pode saber, justamente para que o sujeito analisante possa, ele sim, vir a saber. Ao psicanalista resta o lugar do suposto saber. Saber atribuído a ele pela transferência, que ele deve restituir a este outro. Isto é, “A transferência, eu a restaurei em sua forma completa ao reportá-la ao sujeito suposto saber. O final de análise consiste na queda do sujeito suposto saber” (LACAN, 1967-68, n.p. / Seminário, livro 15: o ato psicanalítico). O psicanalista é aquele que produz o furo no imaginário do analisante que o tem como a possibilidade de o saber ser algo que se encontra fora dele: “O essencial da análise dessa situação em que nos encontramos, ser aquele (o analista) que se oferece como suporte para todas as demandas e que não responde a nenhuma” (LACAN, 1958-59, n.p. / Seminário, livro 06: o desejo e sua interpretação).
Porém, há outras situações, como não ter exigência de perfil (ou talvez nem ao sujeito lhe dão condições ou acesso de escolha). Aqueles que buscam atendimentos, ou que são atendidos por profissionais contrários às suas concepções (lembrando que, da parte do analista, não cabe a ideia de ser contrário ao analisando, ou seja, atribuir juízo de valor), como se vê no filme Um skinhead no divã, de 1993, dirigido por Suzanne Osten, que narra o encontro e a vivência clínica de Sören, jovem skinhead, que é atendido por Jacob, analista judeu. Aqueles que procuram analistas com a imagem semelhante à de suas afetações. Aqueles que preferem pessoas com suas mesmas características culturais, políticas, de gênero e étnico-raciais, como se afirmassem: “Ele é igual a mim, então, vai me entender!”. Claro que não é somente isso, pois esse movimento pode se referir ao modo de identificação do sujeito (FREUD, 1921/2011), dentre outras questões particulares. Portanto, destaco o aspecto étnico-racial sobre o qual pretendo refletir um pouco mais a seguir.
O que há por trás daquilo que não escutamos?
Tenho dialogado constantemente com discentes, colegas de trabalho e de formação sobre o fato de pessoas negras procurarem atendimento com analistas negros/as e coloco-me a pensar nos significantes que constituem essa procura. E essa busca caracteriza também outras modalidades de profissionais negros/as, como advogados/as, assistentes sociais, dentistas, médicos/as, psicólogos/as, professores/as, terapeutas ocupacionais, dermatologistas e profissionais de estética. Porém, manterei o foco na psicanálise, o que não impede de o/a leitor/a associar com outros horizontes.
Sobre essa procura, entendo que não se trata de concordar, ou discordar, com o outro. A minha posição é que esse não é o lugar e nem o papel da psicanálise. Acredito que o processo analítico deve, ou deveria, tomar essa busca como algo a ser analisado e não rejeitado. Lacan ([1973] 2003, p. 553-554), em seu texto Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, afirma:
Freud o disse antes de mim: numa análise, tudo deve ser recolhido – onde se vê que o analista não pode lavar as mãos – recolhido como se nada se houvesse estabelecido fora dela. Isso não quer dizer outra coisa senão que o escape do tonel deve ser sempre reaberto. […] Com o que indico que o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de um sentido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura, sobretudo não quando ela atinge o discurso.
Interessante pensar as simbologias da expressão “lavar as mãos”. Resgatando um fato religioso, Pôncio Pilatos o fez no sentido de dizer que não seria o responsável pela punição a Jesus Cristo. Profissionais da área da saúde lavam as mãos antes e depois de realizarem seus procedimentos. Lavamos as mãos antes das refeições. Quer dizer, lavar as mãos é limpar-se de algo ou de alguém. Então, para o analista, não lavar as mãos tem outro sentido, ou seja, deve atentar-se às particularidades, ser responsável por sua posição e o manejo daquilo que foi recolhido; não deve ignorar o que escutou. Nessa alusão, a mão que recolhe os cacos de vidro não é a do analista, mas a do paciente em forma de narrativa. Porém, de outro ângulo, para o analista, “lavar as mãos” envolve a formação permanente, a supervisão de seus casos clínicos, o cuidado de si por meio de sua análise pessoal e o seu envolvimento e posicionamento nas relações institucionais.
A partir de relatos de casos conhecidos, verifica-se que a procura por um/a psicanalista negro/a parte de variadas leituras e de múltiplas situações. Trata-se de uma particularidade que acredito ser mais prudente não tomá-la como definição e, sim, pela via da interpretação. Ou seja: De qual ordem fala essa questão para o sujeito? O que há por trás daquilo que não escutamos?
Nessa perspectiva, as palavras não são as mesmas para todos, nem para o próprio sujeito. No campo étnico-racial, apresenta ampla associação de signos da linguagem, os quais devem ser decifrados. Achille Mbembe, em Crítica da razão negra (Critique de la raison nègre), ao analisar o nome “negro”, considera que:
Tal como a palavra, o nome só existe se for ouvido e assumido por quem o carrega. Ou melhor, só existe nome quando quem o carrega sente os efeitos do seu peso em sua consciência. Há nomes que carregamos como um insulto permanente e outros que carregamos por hábito. O nome “negro” deriva de ambos. (MBEMBE, 2018, p. 264, grifos do original).
A palavra e o nome, portanto, não vêm sozinhos, são envolvidos de energias, sentimentos, intencionalidades, contextos, histórias. Os conteúdos das palavras mudam com o tempo, pois fazem parte de uma rede de relações culturais e semiológicas. A palavra, ou a intenção de palavra, pode estar por trás daquilo que não escutamos. E o que está por trás pode ser um enigma, um tabu, ou, ainda, o reflexo de quem se põe a escutar, ou a imagem reproduzida de quem não quer ouvir. A palavra é convocação da língua, por isso, de acordo com Gabriel Nascimento em seu livro Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo: “A língua é um lugar de muitas dores para muitos de nós” (NASCIMENTO, 2019, p. 21).
Alguns traços e fraturas históricas
Antes de falar da questão do negro na clínica, é importante fazer algumas considerações históricas. Vivemos numa sociedade racista. Esse fato não é novidade, mas temos que ficar atentos em como o racismo se transfigura, em como desenvolve suas metamorfoses no tecido social e nos processos de subjetivação e como inverte posições, a ponto de definir como culpado o sujeito que sofre os atos de racismo. Não se trata de uma generalização, porém, por ser estrutural, na sociedade brasileira, o racismo atua direta e indiretamente; no Brasil, é cruel e criativo, dentre outras expressões.
Em 1851, o médico Samuel Adolphus Cartwright (1793-1863) criou o diagnóstico Drapetomania, para classificar os escravizados que fugiam das condições impostas pela escravização no sul dos Estados Unidos da América (EUA). Esse é um dos vários casos em que a ciência contribuiu para a objetificação de sujeitos negros. Nessa concepção, a recusa dos processos de escravização era vista a partir de uma ordem patológica e que, certamente, atendiam outros interesses, como políticos, econômicos e científicos.
Há uma ferida narcísica na constituição psíquica do negro brasileiro. São traumas oriundos dos processos de escravização, que produziram e ainda produzem outros traumas na contemporaneidade, os quais afetam os campos simbólico, real e imaginário do sujeito, formando um nó, que cria representações naturalizadas do mundo e de si mesmo, produzindo um enrosco, um conflito subjetivo, expresso de várias maneiras, nos sujeitos negros. Este nó, no entanto, não é a garantia de uma sobredeterminação, ele é o que o sujeito pôde fazer com o que herdou, com as marcas estruturantes de uma história que não pode ser nunca entendida como passado, pois está presente nas relações e estruturas que subsistem ao tempo, que se recusam a ficar no passado. As amarrações deste nó, impostas por um discurso violento e destrutivo da escravização, não foi, no entanto, suficiente para impedir que, nas suas brechas e franjas, o sujeito negro pudesse construir uma crítica que o revelava como a forma mais cruel de dominação e imposição de um humano sobre o outro, aquele que buscava transformar o sujeito negro em um objeto de seus gozos mais espúrios.
Comumente, pessoas falam que são descendentes de italianos, franceses, espanhóis. Muitos sabem a origem de seus nomes e sobrenomes. Já a maioria dos sujeitos negros não tem essa marca exata de origem. Além de saber apenas que descende de africanos escravizados, não tem ideia de qual grupo étnico-racial pertence, quais são seus ritos, costumes, valores e tradições. A ausência dessa história, ou a disseminação da história equivocada/adulterada, pode ampliar as lacunas da constituição do sujeito negro. Como diz Neusa Santos Souza, em seu livro Tornar-se Negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social[3]:
Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. (SOUZA, 1983, p. 17-18).
O negro brasileiro tem as marcas dos processos de colonização em sua estrutura geracional e, na atualidade, ainda vivencia essas sequelas[4]. Sim, há negros que ainda dizem que racismo não existe; que Zumbi dos Palmares foi um fujão; que tudo isso é mimimi. São contrários às cotas, pois pensam que não há diferença entre negros e brancos, que a questão é somente socioeconômica. Talvez, esses sejam os mais afetados, pois hoje declaram amor aos seus algozes e negam na palavra, o que, a história e a cotidianidade provam o contrário. Negam, ao mesmo tempo em que sofrem, mas não assumem, ou não percebem.
Entre o universal e o particular, é importante considerar que há vários modos e vivências de sujeitos negros a respeito desse assunto. Ou seja, não é somente uma questão de raça/cor em si, mas a sua relação com processos conscientes e com a manifestação do inconsciente (KON et al., 2017). É necessário analisar as diferenças raciais e seus impactos na sociedade, historicamente. Para isso, a importante contribuição de Virgínia Leone Bicudo, em sua dissertação defendida em 1945 e publicada com o nome de Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (edição de MAIO, 2010), que apresenta uma pesquisa realizada na capital paulista sobre o modo como os sujeitos se concebem na perspectiva étnico-racial, numa leitura social e subjetiva das atitudes desses sujeitos.
São alguns aspectos para pensar que as marcas dos processos de escravização e pós-escravização são atemporais. Há discursos que tentam negar essa história, dizendo: “Isso é passado!”. Não existe passado para o inconsciente. Por ser atemporal, há recalque, conflitos, sintomas e o retorno daquilo que foi recalcado. Bicudo (1945, in: MAIO, 2010) e Souza (1983) apresentam contribuições significativas para esse debate.
Um episódio é ilustrativo. Após fazer uma explanação, em uma aula específica, sobre as riquezas da África – não citadas por muitos, ao tratarem do tema –, apresentei para a turma um trecho de Amistad, filme de 1997, dirigido por Steven Spielberg, que retrata os processos truculentos do sequestro e da comercialização de africanos; a travessia do Atlântico por navio – bem como as práticas desumanas que ali ocorriam – e a chegada em outros países, para serem impostos à escravização.
A finalidade era discutir com a turma determinada cena que ilustrava exatamente esse contexto. Após a apresentação do trecho, levantei-me para desligar o computador, e, ao virar-me para a turma, percebi que as alunas estavam extremamente emocionadas, com os olhos arregalados. Vê-las assim, me chamou a atenção. Identifiquei que o filme foi um golpe forte. Ficou aquele silêncio… Sabe?! Aquele silêncio assim… E todas sustentando o olhar para mim e entre elas. Até que uma me perguntou: “Professor, isso aconteceu de verdade?”. Então, disse-lhe: “Sim, aconteceu! Vamos conversar a respeito?”. O encontro com o real, histórico.
Percebe-se como a história é importante para a formação do sujeito. Mas não qualquer história, se considerada a existência de várias. A história apresentada em sala de aula foi posta como uma contra-história. É importante olhar para o modo como as histórias são construídas e transmitidas, pois se ensinarmos o valor da África a partir da colonização e escravização, anulamos toda a história de prestígio, tão citado quando diz respeito a outros continentes, como a Europa. Isto é, ensinando sobre a África pelo negativo, o que o/a discente aprenderá sobre aquele continente? Qual será a sua compreensão e seu aprendizado histórico? Como ele/ela poderá se ver como negro/a? Conhecer a África real é uma condição importante e necessária para sabermos de nós. (MUNANGA, 2013).
Vejam, há casos de negros que assumem a sua negritude desde a infância, devido ao reconhecimento e valor demonstrados pelos familiares, pela comunidade e pela escola. Ainda há muitos que assumem a sua negritude na adolescência, na juventude ou na fase adulta. E aqueles que passam a vida inteira sem se encontrar racialmente. Cada um tem o seu processo. Muitos não conseguem se ver como são ou não conseguem se reconhecer como pertencentes a determinado grupo étnico-racial. Ser negro é uma construção dialética com a construção do sujeito branco, em muitos contextos.
Ser negro não é uma tarefa simples, numa sociedade em que ser branco parece ser normal. Tornar-se negro é uma luta histórica e cotidiana. São poucas as situações em que o sujeito negro está imune aos efeitos do racismo. É o que expresso na poesia Porque o racismo é estruturalmente estrutural:
Temos que ocupar todos os lugares…
Vamos unir forças…
Vamos estudar e transformar a história…
Vamos nos manifestar, exigir e argumentar…
Mesmo sabendo que nenhum/a negro/a está imune aos efeitos do racismo,
que é estruturalmente estrutural…
Mesmo que tenha diploma, mesmo que more em área nobre,
mesmo que fale inglês, árabe, francês…
O racismo sempre dá um jeitinho para nos alcançar… É só olhar direitinho…
E essa talvez seja uma de suas estratégias de atuação:
“Mesmo que te escondas, eu te encontro”.
O/A negro/a e a clínica
A partir dessas notas, podemos caminhar para outro aspecto. São várias as situações em que o sujeito negro procura um/a psicanalista negro/a, pois teve uma experiência com psicanalista que não era negro/a e entende que não foi ouvido como queria. Ou se sentiu ignorado ou desconsiderado em sua subjetividade, ou expressões linguísticas e culturais, lembrando que são aspectos do sujeito, também colocadas como uma questão para a psicanálise.
Em entrevista da psicanalista Maria Lúcia da Silva, intitulada Impactos do racismo não são reconhecidos pela psicanálise, ao ser indagada sobre a abordagem do racismo na psicanálise, na atualidade, e como deveria ser tratada, afirmou:
Na instituição Psicanálise não há um reconhecimento de que o racismo produz sofrimento psíquico, portanto, quando alguma pessoa negra num consultório de um psicanalista branco traz o tema do racismo, do seu sofrimento, esse tema não é reconhecido, ele não é tratado como ele merece ser tratado. E, aí, muitas vezes o psicanalista vai tratar esse tema de uma forma superficial, vai dizer pro sujeito: “Olha, isso não existe mais, isso é da sua cabeça, isso é sentimento de perseguição”. Então é isso que nós vamos vivendo no cotidiano. Eu tenho que levar em conta todos os fatores identitários daquela pessoa que tá na minha clínica. Portanto, se tem um negro em seu consultório, tem que levar em conta a história dele, a história cultural, o grupo que ele faz parte, então é quase que retomar os estudos que dão origem à própria formação, que é a história do sujeito, a singularidade daquele sujeito. (SILVA, 2017, p. 1, grifos do original).
Esta citação traz à tona não somente a impossibilidade do processo analítico do sujeito frente a um discurso que desconsidera a sua realidade, ele mostra a apropriação indevida do sujeito que se diz analista. Uma fala como esta: “Olha, isso não existe mais, isso é da sua cabeça, isso é sentimento de perseguição”, fala mais do suposto analista, que supõe saber sobre não somente o outro, mas, principalmente, sobre todas as formas de relação existentes. Sua fala revela, para além da sua prepotência, sua inaptidão para o trabalho analítico, e revela ainda, na tentativa de desqualificar e anular o discurso do analisante, a manutenção de uma ordem e estrutura racista, que para se perpetuar precisa permanecer como não existente, para que possa operar sem ser denunciada e combatida. O silenciamento do sujeito é uma tentativa violenta de incutir naquele que é vitimizado uma dúvida sobre o que ele vive como sendo ela não existente, ou somente algo que ele cria para poder justificar a sua condição. Uma mudança de posição subjetiva faria com que o sujeito passasse a ser, ele mesmo, o agente daquilo que ele denúncia. A este tipo de trabalho podemos atribuir vários nomes, menos o de análise, e um psicanalista racista não pode ser considerado analista. E um psicanalista atravessado pela lógica racista, deve se rever.
Somos todos seres humanos, mas como sujeitos somos sempre seres singulares. É comum ouvir: “Somos todos iguais!”, como se fosse um protesto contra o reconhecimento da singularidade. Por exemplo, todos sentem fome, mas nem todos comem as mesmas coisas. Alguns fazem de quatro a cinco refeições durante o dia; muitos passam o dia sem comer. A fome é de todos, mas o que mata a fome, o alimento, não chega para todos. Interessante, “matar” a fome. A tentativa de quem não tem o que comer é ser assassino de sua própria fisiologia, é ser o assassino de suas outras fomes.
Penso também no ar que todos precisamos respirar; encher os pulmões e esvaziá-los. A respiração é intrigante: muitos respiram o ar puro das manhãs frescas e aromatizadas pelas hortaliças e pelos lírios do campo. Alguns respiram o ar contaminado dos aterros sanitários; o ar poluído dos córregos; o ar fétido do caminhão de coleta de resíduos. Já outros, na atualidade, devido à pandemia de Covid-19, lutam para respirar com a ajuda de aparelhos. Isto é, a respiração não envolve somente o oxigênio e gás carbônico. O que respiro me afeta e constrói, corrói. Respiramos sentimentos, memórias e violências. Sabemos se o clima está bom, ou não, pelo cheiro. “Isso não tá cheirando coisa boa!”, há quem diga…
Assim como a fome e a respiração, a ideia de raça/cor também tem as suas especificidades e necessidades cotidianas. Ao falar de fome e respiração, trato de aspectos comuns: amparo, desamparo e autopreservação; os quais nos fazem pensar nas perspectivas cultural e política da formação dos sujeitos negros.
Considerações
Vivemos em uma sociedade plural, com marcantes diversidades sociais, culturais e étnico-raciais. Entretanto, esses aspectos, por um lado, expressam convergências e, por outro, demostram imensos contrastes e conflitos que envolvem o sujeito, principalmente no que se refere à raça/cor. Daí, pensar o racismo estrutural a partir de sua origem, trajetória e manifestação na atualidade, convoca-nos a refletir sobre como afeta diretamente a constituição e o modo de vida do sujeito. Por ser estrutural, o racismo também é estruturante, pois se ramifica, atua cotidianamente, produzindo mais de si e recriando outras formas de atuação, o que não significa que não podemos subvertê-lo; mas, para isso, é necessária a produção de práticas antirracistas estruturais e estruturantes para combatê-lo.
Nas manifestações de racismo, não é somente o sujeito negro que é afetado, mas o sujeito branco também, entorpecido por seu narcisismo, visto e posicionado como Ideal do Eu. Porém, há diferenças, pois o sujeito racista tem habilidades para identificar o outro que o incomoda, e reage. Como explicita Mbembe (2018, p. 76): “O sujeito racista reconhece em si mesmo a humanidade não naquilo que o torna igual aos outros, mas naquilo que o distingue deles”. O branco sabe quem é negro. Enquanto o sujeito negro pergunta por si, tem que se construir contra as violências; defender-se; lutar para provar que sofreu racismo, como se estivesse contando uma mentira… E mesmo que não seja o que ele diz ter acontecido, eis aí um canal para analisar o seu discurso, as outras entranhas de sua subjetividade.
Quando o sujeito negro procura um psicanalista negro, pode estar expressando uma posição de querer se cuidar; um modo peculiar de pedir ajuda; um modo de se ver no outro, como um espelho, para conseguir se sustentar na posição de analisando. A procura de um psicanalista negro pode ser também uma expectativa de ser tratado melhor. Essa procura pode evidenciar vivências anteriores, em que o sujeito não quis ou não conseguiu permanecer, além de ser ainda, uma maneira de expressar o lugar esperado. E avalio ser legítima não somente essa busca, mas o que o sujeito encontrará no psicanalista não pode ser as respostas que ele procura, mas sim um lugar onde suas respostas possam ser construídas.
Esses são alguns traços de vários outros que podem ser identificados no trabalho de escuta. Sendo, portanto, relevante deixar claro que nem toda procura de um sujeito negro (que não são todos) por um psicanalista negro (ou não), tem por demanda afetações sobre aspectos étnico-raciais. São linhas tênues, muitos detalhes subjetivos que se apresentam falseados de outros valores e conteúdos.
Recentemente, em determinado espaço, ouvi alguém indagar, em tom áspero e de estarrecimento: “E o que você acha dessa psicanálise negra que tá acontecendo aí?”. Penso que não há uma psicanálise negra. Mas um movimento para a psicanálise reconhecer essa questão. Não é porque se conhece a África, ou algum país daquele continente, que se conhece os africanos, porém, o conhecimento das vertentes social, cultural, econômica e política daquele continente pode contribuir para a escuta do sujeito perante o seu mundo. O campo da linguagem é múltiplo, inclusive, dentre sujeitos da mesma cultura. Logo, o que se pode traduzir ao ouvir um angolano: “Saí com uma rapariga. A bicha estava grande!”.
É importante considerar Fanon que, em Pele negra, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs), ao caminhar pelo caminho da sociogenia, afirma:
Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. […] Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. […] A sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa à influência humana. É pelo homem que a Sociedade chega ao ser. (FANON, [1952] 2008, p. 28).
A psicanálise foi construída na Europa, por homens brancos, inicialmente no atendimento a sujeitos brancos, vivenciando valores daquela época, por isso, é relevante a sua continuidade considerando as demandas atuais e, até mesmo, aspectos históricos negligenciados durante a sua implementação. Segundo Fanon ([1952] 2008, p. 127):
As escolas psicanalíticas estudaram as reações neuróticas que nascem em certos meios, em certos setores da civilização. Obedecendo a uma exigência dialética, deveríamos nos perguntar até que ponto as conclusões de Freud ou de Adler podem ser utilizadas em uma tentativa de explicação da visão de mundo do homem de cor.
Hoje podemos dizer, de forma segura, que a psicanálise não construiu um saber universal, ela inaugurou uma forma de produzir conhecimento sobre o humano, mas muito ainda precisa ser feito, e muito precisa ser desconstruído. O discurso psicanalítico deve rever sua posição frente a diversas questões que ainda se encontram presentes na atualidade, como o racismo, o sexismo, o patriarcado e o colonialismo. Tal como ela foi concebida, e ainda mantida por diversos grupos, ela não pode ser tomada como um referencial para explicar a realidade histórica complexa em que se encontra o sujeito negro.
Esse debate inacabado convoca as profissões para se posicionarem. E com a psicanálise – por não ser um mundo à parte – não é diferente. Reconheço a importância da psicanálise na luta antirracista, inclusive, com o estudo aprofundado das relações étnico-raciais na formação do analista; na posição do psicanalista entre os pares e as instituições; no manejo clínico que considere a cultura do paciente; e na produção de conhecimento interseccional.
Referências
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs). Salvador: EDUFBA, [1952] 2008.
FREUD, Sigmund. A identificação [1921/2011]. In: FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, [1920-1923] 2011.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93, jan./jun., p. 68-82, 1988b.
KON, Noemi Moritz; ABUD, Cristiane Curi; SILVA, Maria Lúcia da. O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017.
LACAN, Jacques. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos (1973). In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LACAN, Jacques. Seminário, livro 06: o desejo e sua interpretação. [1958-59] inédito. CD-ROM.
LACAN, Jacques. Seminário, livro 15: o ato psicanalítico. [1967-68] inédito. CD-ROM.
MAIO, Marcos Chor (Org.). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo – Virgínia Leone Bicudo. São Paulo: Sociologia e Política, [1945] 2010.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra (Critique de la raison nègre). São Paulo, n-1, 2018.
MUNANGA, Kabengele. Conflitos: traumas e memórias. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 5, n. 11, p. 220-234, out. 2013. ISSN 2177-2770. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/198. Acessado em: 11 de maio de 2020.
NASCIMENTO, Gabriel. Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
OSTEN, Suzanne. Um skinhead no divã (Tala! Det är så mörkt). Filme. Suécia, 1993.
RAMOS, Lázaro. Programa Espelho. Entrevistadas: Neusa Santos Souza e Mãe Meninazinha D’oxum. 2009. Disponível em: https://youtu.be/eugWGvhG48o. Acessado em: 17 de maio de 2019.
SILVA, Maria Lúcia da. Impactos do racismo não são reconhecidos pela psicanálise. Entrevista. Luciana Console, jornalista. Brasil de Fato. São Paulo (SP), 31 jul. 2017.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
SPIELBERG, Steven. Amistad. Filme. Estados Unidos da América: DreamWorks Pictures, SKG e Home Box Office (HBO), 1997.
Agradecimentos
Agradeço a Sergio Lopes de Oliveira (Diretor do Instituto Langage), Júnia da Silva Costa e Ana Carolina Martins Gil pelas riquíssimas interlocuções que contribuíram para a elaboração deste artigo.
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[1] Originalmente publicado na Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 13, n. 37, p. 246-260, ago. 2021. O boletim online do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae agradece à ABPN por autorizar nossa publicação deste artigo.
[2] Professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Baixada Santista, vinculado ao curso de graduação em Serviço Social e ao Departamento de Saúde, Educação e Sociedade e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Vivências Artísticas, Culturais e Periféricas. É graduado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Tem especialização Multiprofissional em Saúde Mental e Psiquiatria pela Escola de Educação Permanente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (EEP HCFMUSP) e em Arte-Educação pelo Centro Universitário SENAC. Mestre (bolsista do Ford Foundation International Fellowships Program, turma de 2010) e doutor em Serviço Social pela PUC-SP. Pós-doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Em formação em psicanálise no Instituto Langage. Ex-aluno do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma I e II, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É arte-educa(a)dor, rapper e poeta conhecido como Vulgo Elemento.
[3] Neusa Santos Souza (1948-2008), psiquiatra, psicanalista e escritora baiana, ao ser entrevistada por Lázaro Ramos e Sandra Almada, no Programa Espelho, exibido em 2009, após a sua morte, apresenta reflexões de sua importante obra Tornar-se negro. Na ocasião, expõe as suas novas concepções acerca da psicanálise e do negro no Brasil, dando ênfase ao aspecto singular de como cada negro lida com o racismo que sofre. (RAMOS, 2009).
[4] De acordo com Gonzalez (1988b), é necessário o reconhecimento dos valores africanos na relação com a formação histórico-cultural do Brasil, bem como da América Latina/ “Améfrica Ladina”. Nessa perspectiva, a autora considera também os atravessamentos na formação do inconsciente do sujeito negro.